Gratuidade da justiça e inflação de litígios: análise econômica da benevolência judicial

No complexo e avolumado sistema judiciário brasileiro, surge um paradoxo preocupante: a busca pelo acesso à justiça, princípio fundamental da Constituição Federal, parece, em certas nuances, alimentar a própria mazela que almeja combater – a crescente avalanche de demandas judiciais.

A facilitação excessiva e irrestrita do acesso ao Poder Judiciário, sob o manto da gratuidade e, em certos casos, da leniência com a má-fé processual, contribui para a “inflação” de litígios, sobrecarregando o sistema, onerando a sociedade e desvirtuando o propósito de uma justiça célere e eficaz.

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O paradoxo do acesso à justiça

É incontestável que o acesso à justiça constitui um pilar fundamental do Estado democrático de Direito. Contudo, é fundamental distinguir o direito de acesso à justiça, em sua acepção ampla e principiológica, do direito de acesso ao Judiciário, entendido como o sistema formal de tribunais e processos. Enquanto o primeiro representa um ideal a ser perseguido e um valor a ser protegido, o segundo, em sua concretude, configura um sistema complexo, oneroso e, por vezes, limitado em sua capacidade de resposta.

E é nesse ponto que o aparente “altruísmo” do Judiciário, ao minimizar os custos e riscos da litigiosidade, pode gerar distorções e efeitos colaterais indesejados, contribuindo para o fenômeno da “inflação de litígios” que assola o sistema.

A economia dos incentivos no Judiciário

Um dos pilares da análise econômica se encontra na premissa de que os indivíduos reagem a incentivos. Em outras palavras, as decisões humanas são, em grande medida, influenciadas pelos custos e benefícios percebidos em cada escolha.

Nesse contexto, a oferta de um serviço “gratuito” ou a um custo substancialmente reduzido, como o acesso ao judiciário facilitado pela gratuidade da justiça e pela ausência de sanções efetivas em casos de litigância temerária ou de má-fé, inevitavelmente impacta a demanda por esse serviço.

Para ilustrarmos o poder dos incentivos e, em particular, o impacto do “preço zero”, imagine um cenário hipotético em uma degustação de chocolates. Suponha que dois tipos de chocolate dois tipos de chocolate são oferecidos, um premium e outro popular, sendo escolhidos pelos consumidores com base em suas preferências e orçamento. O premium tem preço mais alto, e o popular é mais acessível.

No entanto, se em determinando momento o popular for oferecido gratuitamente, sua demanda dispara de forma desproporcional. Esse fenômeno, conhecido como “efeito do preço zero”, ocorre porque a gratuidade ativa um gatilho psicológico que intensifica o desejo, atraindo até quem preferia o premium ou não consumia chocolate, levando muitos a migrar para o produto gratuito.

Essa mesma lógica, impulsionada pelo “efeito do preço zero”, pode ser aplicada ao contexto do acesso ao Judiciário e à gratuidade da justiça. Quando o sistema judicial se torna acessível de forma praticamente gratuita, inclusive com a ausência de condenação em honorários de sucumbência, cria-se um incentivo poderoso para o aumento da demanda por esse serviço, criando um ambiente de risco para o aumento de ações frívolas.

O custo oculto da ‘gratuidade da justiça’

A ideia de “justiça gratuita” não significa propriamente ausência de custos, pois a atividade jurisdicional envolve despesas estruturais, operacionais e humanas. Quando um consumidor ingressa com uma ação sem arcar com custas, honorários ou perícias, esses valores são repassados à parte adversa ou absorvidos pelo Poder Judiciário, financiado por impostos pagos por toda a sociedade. Embora a gratuidade possa ser justificável sob a ótica do acesso à justiça, seu uso abusivo e irrestrito gera ônus desproporcional para toda a sociedade.

Para as empresas, especialmente aquelas que atuam em setores com alta litigiosidade como bancário, telecomunicação, aviação, energia, o custo dessa benesse, mesmo nas ações julgadas improcedentes, se manifesta de diversas formas: elevadas provisões financeiras, honorários contratuais, despesas processuais, além de recursos humanos mobilizados para os litígios.

Portanto, quando desvirtuada, a gratuidade da justiça torna-se um “barato que sai caro”, impondo custos ocultos que sobrecarregam o sistema judiciário e impactam negativamente a economia e a sociedade como um todo.

A radiografia do aumento da litigiosidade em dados

Os dados do Poder Judiciário evidenciam o crescimento acelerado da litigiosidade no Brasil. Segundo o EnAJUS (2023), enquanto a média europeia é de 2 processos cíveis por 100 habitantes, no Brasil são 5,7 na primeira instância e 1,4 na segunda. De acordo com o CNJ, em 2023 foram distribuídos 35,2 milhões de processos novos, um aumento de 9,4% em relação a 2022.

As despesas judiciais também cresceram. Segundo o CNJ, em 2023 os gastos do Poder Judiciário atingiram R$ 132,8 bilhões, 9% a mais que em 2022. A taxa de congestionamento processual, indicador da dificuldade do sistema em dar vazão ao volume de processos, permanece em torno de 70%, impactando o tempo médio de tramitação, que, na Justiça Estadual, segundo o Justiça em Números 2024, foi de 3 anos e 2 meses na fase de conhecimento e 4 anos e 7 meses na fase de execução.

A gratuidade da justiça também cresceu, representando 27,2% dos pedidos em 2023. Estudo realizado pelo CNJ em parceria com o Insper mostra que 30% dos recursos no STJ vieram de beneficiários desse direito. O estudo aponta, ainda, para uma tendência de aumento da proporção de recursos com gratuidade no STJ ao longo dos anos, e identifica que grande parte desses recursos são interpostos por pessoas físicas e consumidores em ações de massa, áreas onde a concessão da gratuidade é mais frequente.

Como ter um sistema de justiça mais justo e equilibrado?

A análise do sistema judiciário brasileiro evidencia a necessidade de um modelo mais equilibrado e eficiente, sem restringir o acesso à justiça, mas garantindo seu uso responsável. Para isso, é essencial aprimorar os critérios de concessão da gratuidade, focando em quem realmente necessita, com critérios mais objetivos em relação à renda e patrimônio. Além disso, a responsabilização processual deve ser reforçada, aplicando sanções por má-fé e permitindo a condenação em honorários de sucumbência.

O estímulo aos Métodos Alternativos de Solução de Conflitos (MASC), como mediação e conciliação, a criação de câmaras especializadas, pode reduzir a judicialização e oferecer soluções mais ágeis e eficazes. Investir em tecnologia também é fundamental: sistemas integrados e mais intuitivos, inteligência artificial e a estruturação e análise de dados podem otimizar a gestão judicial, impulsionar a celeridade processual e tornar a justiça mais ágil, transparente e responsiva às demandas da atual sociedade digital.

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