O Brasil, percorrendo um caminho singular no constitucionalismo, conferiu expresso tratamento ao transporte aéreo na Constituição Federal, formalizando uma decisão constituinte que deve ser conhecida, compreendida e, acima de tudo, respeitada.
O transporte é constitucionalmente qualificado como direito fundamental social (art. 6º), uma necessidade vital básica (art. 7º, IV). Ao referir-se ao transporte aéreo especificamente, a Constituição entrega a sua exploração (direta ou por autorização, concessão ou permissão) à União (art. 21, XII, “c”), que também detém a competência legislativa privativa para dispor sobre navegação aérea (art. 22, X). Segundo o art. 178, lei disporá sobre a ordenação do transporte aéreo, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União (atendido o princípio da reciprocidade).
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Trata-se, claramente, de um subsistema jurídico que, para expressar toda a sua eficácia, deve ser combinado com outros dispositivos constitucionais dele diretamente derivados, à luz da necessária interpretação sistêmica.
Logo, qualquer construção política ou jurídica que impacte o desenho normativo orientador do funcionamento das companhias aéreas no país precisa considerar, além dos comandos constitucionais expressos, pelo menos três outros derivados: a defesa do consumidor, a livre concorrência e o interesse público.
Decisões estatais tomadas em nosso nome, no seio da administração pública, por agentes desprovidos de mandatos políticos, precisam ser, ao menos, formal e materialmente fundamentadas. Bem fundamentadas, frise-se.
Exemplo desse tipo de decisão é a transação tributária com a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, envolvendo as companhias Gol e Azul, no valor de R$ 7,5 bilhões (nos termos das Leis 13.988/2020 e 14.375/2022).
Segundo comunicado da Gol, o acordo abrangeu tributos de natureza previdenciária, não previdenciária e outras obrigações tributárias, assim como a aplicação de descontos sobre multas, juros e encargos na forma da legislação, e a possibilidade de abatimento de parte do saldo devedor com prejuízo fiscal e base de cálculo negativa de CSLL.
Os termos postos nesse acordo realizam os comandos da Constituição voltados à defesa do consumidor, à livre concorrência e ao interesse público? A defesa do consumidor (art. 5º, XXXII) é um direito fundamental e um dos fundamentos da ordem econômica (art. 170, V). Ao seu lado está a livre concorrência, igualmente um fundamento da ordem econômica (art. 170, IV).
Uma das formas de prevenir desequilíbrios concorrenciais é por meio da tributação. O art. 146-A da Constituição diz que “lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência da União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo” (concretizado pelo STF na AC 1657 – caso American Virginia). O § 4º do art. 173, por sua vez, diz que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Segundo o art. 219, o mercado há de viabilizar “o bem-estar da população”.
Ora, o acordo entre as autoridades tributárias e duas companhias aéreas teve o cuidado de aferir previamente, por meio dos órgãos com capacidade institucional para tanto, se a iniciativa poderia terminar gerando desequilíbrios concorrenciais? Pode, a medida, incrementar um abuso de poder econômico a ponto de haver dominação de mercado capaz de eliminar a concorrência (num mercado já concentrado)? Ela viabiliza o bem-estar da população? As autoridades envolvidas nessa costura se atentaram para a necessidade de fazer esse tipo de juízo vinculado que decorre da própria Constituição?
A situação faz lembrar a ministra Rosa Weber que, julgando a ADPF 854, pontuou que “os atos praticados pela administração pública devem ser passíveis de conhecimento pelos cidadãos”, recordando, em seguida, as palavras de Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, para quem a publicidade é o remédio para males que afligem as sociedades: “a luz solar é o melhor dos desinfetantes”, disse ele.
Numa República não existe, nas relações entre empresas e o Estado, “pediu, levou”. É como advertiu o juiz da Suprema Corte de Israel, Mishael Cheshin: “no domínio do Direito Público – Direito Constitucional e Administrativo – o ‘capricho’ é uma doença terminal” (Quality Government in Israel v. Attorney-General- HCJ 7367/97).
Dias depois do acordo bilionário, os jornais estamparam a notícia de que a companhia Azul suspenderia operações em 12 cidades brasileiras. Enquanto a Constituição aponta como objetivo fundamental da república reduzir as desigualdades regionais (art. 3º, III), uma companhia privada, após participar de um acordo de R$ 7,5 bilhões, elimina voos para destinos regionais, como Barreirinhas, no Maranhão; Crateús, no Ceará; Parnaíba, no Piauí; Rio Verde, em Goiás, apenas para ilustrar.
Essa decisão é compatível com o interesse público? Esse é um vetor interpretativo que dimana diretamente da ideia de República. Não bastasse, ele está exemplificativamente expresso em vários trechos da Constituição. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem colaborar com cultos religiosos ou igrejas apenas se se tratar de uma “colaboração de interesse público”; na administração pública, a contratação por tempo determinado só se justifica caso atenda ao “excepcional interesse público”; uma das possibilidades de o Presidente da República vetar um projeto de lei é a avaliação de que ele é “contrário ao interesse público” (art. 66, § 1º).
Esse tipo de cuidado é um meio legítimo de prestigiar o Estado Constitucional. É nosso dever defendê-lo sempre que populismos batem à porta, como adverte Andreas Vosskuhle, que presidiu a Corte Constitucional alemã. Usar o Estado para fazer cortesia com o chapéu alheio pode ser uma forma de populismo, prática que, segundo o ministro Ayres Britto, “a Constituição não aceita, repugna” (ADI 4597).
Mesmo a ideia de fusão (ou qualquer equivalente funcional desse instituto) entre companhias aéreas precisa contar com considerações acerca dessa tríade constitucional: defesa do consumidor, livre concorrência e interesse público.
É bem verdade que a Constituição Federal não disciplina os termos sob os quais a fusão entre duas companhias aéreas deve se dar, porém, ela mostra que, sempre que trata sobre fusões, seu texto aponta, detalhadamente, uma teleologia (valor e finalidade) a ser realizada e as limitações jurídicas impostas a essas fusões.
Para ilustrar, o art. 17 assegura a fusão de partidos políticos apenas se resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana (além de outros preceitos). Não sendo possível respeitar esses bens jurídicos constitucionalmente protegidos, não haverá fusão.
Ao tratar da fusão de municípios, a Constituição, no §4º do art. 18, exige lei estadual dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.
Ou seja, fusões (pelos menos as duas constitucionalmente disciplinadas) precisam realizar uma teleologia antevista pela própria Constituição e, ao mesmo tempo, ter o seu âmbito de aplicação controlado por várias limitações jurídicas.
Por isso é tão importante indagar: uma possível fusão de aéreas incrementa ou compromete a defesa do consumidor? Expande ou reduz a livre concorrência? Concretiza ou desmerece o interesse público? Se as respostas sinalizarem uma fragilização da Constituição Federal e do sistema normativo infraconstitucional que orbita em torno dela, então, sinceramente, estamos, todos, diante violações jurídicas praticadas à luz do dia.
É preciso que haja fundamento válido, justificativa robusta, respeito à Constituição e, no caso ora tratado, que elementos centrais como a defesa do consumidor, a livre concorrência e o interesse público obtenham ganhos de funcionalidade sistêmica em cada decisão estatal tomada sobre fatos que possam enfraquecer o núcleo essencial dessas franquias constitucionais relevantes. Se assim não for, o que se tem é algum ato antijurídico cuja fatura pesada será cobrada dos mais vulneráveis muito brevemente.
É preciso refletir melhor sobre esse estado de coisas que tem se abatido sobre o setor aéreo brasileiro. É mais do que um cenário de eventuais micro injustiças pontuais. São constituicídios insistentes que simplesmente precisam acabar.