Self-preferencing no Brasil: deve-se regular antes de entender?

Regulações ex ante de mercados digitais — como o Digital Markets Act da União Europeia (DMA), o Digital Markets, Competition and Consumers Act (DMCC) do Reino Unido e a Seção 19a da Lei Concorrencial alemã — vêm buscando coibir práticas consideradas prejudiciais à concorrência e aos consumidores, incluindo a cada vez mais debatida conduta de self-preferencing.

Esses regimes assimétricos impõem proibições e obrigações a um número limitado de grandes empresas de tecnologia. Por exemplo, o DMA proíbe gatekeepers de favorecerem seus próprios produtos em rankings e indexações; o DMCC veda que empresas com strategic market status usem suas vantagens de dados para beneficiar seus próprios serviços; e a seção 19a da Alemanha impede empresas “de importância central para a concorrência entre mercados” de privilegiar suas ofertas em detrimento das de concorrentes.

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O Brasil parece seguir caminho semelhante. O PL 2768/2022, atualmente em análise no Congresso, exigiria que plataformas digitais com “poder de controle de acesso essencial” tratassem de forma isonômica e não discriminatória os usuários profissionais e finais.

Apesar desse movimento, nem a literatura econômica nem a jurisprudência do Cade justificariam uma presunção geral de ilicitude ou uma proibição ampla à prática da self-preferencing no Brasil. Ao contrário, ao invés de tratar como inerentemente anticompetitiva, o enforcement brasileiro tem seguido, até o momento, uma abordagem contextual, caso a caso. Assim, este artigo sustenta que a proibição geral do self-preferencing não parece ser o caminho regulatório mais adequado a ser seguido.

O Dicionário de Direito da Concorrência da Concurrences define o self-preferencing como uma forma de alavancagem abusiva: “entre os abusos exclusionários de posição dominante, o self-preferencing se enquadra na categoria mais geral de alavancagem abusiva, pressupondo que uma empresa abuse de sua dominância em um mercado para estendê-la a um mercado relacionado, em detrimento dos concorrentes neste segundo mercado”.

Em termos clássicos concorrenciais, a prática pode ser entendida como um tipo específico de alavancagem ou de aumento de custos dos rivais (RRC). Assim, a conduta pode ser considerada ilícita quando uma empresa dominante favorece seus próprios produtos ou serviços em um mercado verticalmente relacionado, impedindo a concorrência efetiva.

Apesar de o termo self-preferencing ter ganho força no debate sobre mercados digitais, a prática em si não é nova. Ela sempre foi comum em setores tradicionais como varejo e supermercados, onde empresas verticalmente integradas promovem suas próprias marcas. Vários comportamentos rotineiros — como restaurantes oferecendo “vinho da casa”, postos vendendo sua própria gasolina ou construtoras utilizando insumos de subsidiárias — podem, dependendo da moldura regulatória, ser caracterizados como self-preferencing.

Contudo, o termo continua conceitualmente vago. A doutrina ainda não chegou a um consenso se self-preferencing é uma nova categoria voltada para mercados digitais ou apenas uma nova nomenclatura para práticas já conhecidas como alavancagem, venda casada ou RRC.

Ademais, caso se aplique aos mercados digitais e não digitais, os elementos típicos das plataformas digitais — efeitos de rede, economias de escala, uso intensivo de dados etc. — adicionam outras dúvidas.

Tais características alteram o raciocínio antitruste? Criam nova teoria do dano? Ou apenas influenciam a análise contextual da conduta, sem modificar sua base teórica? Essas questões permanecem sem resposta. Como destaca o professor Pablo Colomo, o termo virou um “epíteto” que abrange uma diversidade de situações, prejudicando sua utilidade jurídica.

Do ponto de vista econômico, favorecer produtos próprios é, muitas vezes, um comportamento racional e esperado. O professor Michael Salinger, ex-diretor do Bureau of Economics da FTC, observa que o self-preferencing pode decorrer de estratégias legítimas — como a integração vertical para eliminar a dupla marginalização (EDM), com efeitos pró-competitivos e redução de preços.

Esse racional está alinhado à teoria da integração vertical, especialmente à luz da teoria dos contratos incompletos de Oliver Hart, Prêmio Nobel. Segundo Hart: “Quando é muito custoso especificar todos os direitos desejados sobre os ativos de outro, pode ser ótimo adquirir todos os direitos residuais de controle”. Assim, em estruturas verticalmente integradas, espera-se que a empresa use seus próprios insumos, o que, por consequência, gera o self-preferencing. Contrário sensu, a integração tende a ser economicamente irracional.

A lógica se aplica também ao comportamento dos consumidores. Economistas como Daniel Kahneman e Richard Thaler, também Prêmios Nobel, identificaram o “efeito posse” — a tendência de atribuir mais valor a bens que já possuímos. Embora psicológico, esse viés ajuda a explicar por que consumidores naturalmente favorecem seus próprios bens, assim como, pelo lado da oferta, empresas favorecem seus próprios produtos.

Do ponto de vista empírico, Geoffrey Manne analisou estudos sobre plataformas digitais e concluiu que práticas de self-preferencing geralmente produzem efeitos positivos ou neutros sobre o bem-estar. Com base nisso, critica a presunção de ilicitude em condutas verticais: “o problema [com as críticas à discriminação vertical dever ser presumidamente ilegal] não se baseiam nem em boa teoria econômica nem em evidência empírica”.

Um estudo mais recente chegou à mesma conclusão, afirmando que “os efeitos de bem-estar do self-preferencing dependem da forma específica da conduta e do ambiente de mercado em que ocorre”, indicando que a análise concorrencial deve ser feita caso a caso. Emilie Feyler e Veronica Postal, ao estudar algoritmos de precificação, também concluíram que não há consenso na literatura sobre os efeitos pró ou anticompetitivos do self-preferencing algorítmico. Logo, a intervenção regulatória para corrigir tal falha não possui respaldo empírico sólido.

Até mesmo autoridades concorrenciais que estão debatendo a regulação de mercados digitais reconhecem esse cenário. A Comissão Australiana de Concorrência e Consumidor (ACCC) afirmou que, embora o self-preferencing pode gerar preocupações de alavancagem de poder de mercado se não tiver racionalidade pró-competitiva clara, eles são condutas geralmente benignas.

Diante desse panorama, a análise do self-preferencing depende fundamentalmente dos fatos e do contexto econômico de cada caso. A literatura atual não sustenta uma presunção de ilicitude — muito menos uma proibição ampla e irrestrita. É claro que o self-preferencing pode causar danos e deve ser analisada sob critérios legais e econômicos. Mas propor sua ampla proibição, neste momento, parece prematuro.

No Brasil, a jurisprudência do Cade ainda é extremamente limitada, mas relevante. No caso Google Shopping, a Comissão Europeia impôs multa de € 2,42 bilhões ao Google por favorecer o seu próprio serviço de comparação de preços. Já o Cade, em 2019, arquivou o caso com base no parecer técnico do DEE, que entendeu que a conduta era uma inovação pró-competitiva voltada à melhoria do mecanismo de busca — e não um abuso.

A decisão apontou ausência de provas robustas e analisou os efeitos líquidos da prática, concluindo por eficiências para o consumidor. Ou seja, no leading case internacional de self-preferencing (Google Shooping), o Cade adotou posição distinta da UE, arquivando a prática de self-preferencing. Essa divergência internacional de conclusões é adotada pela doutrina.

Uma pesquisa recente do Instituto Legal Grounds analisou quantitativamente os casos julgados pelo Cade sobre self-preferening. A conclusão principal foi clara: não há número suficiente de condenações para justificar uma proibição geral. “Nos últimos 10 anos, a taxa de condenação em casos de self-preferencing no Cade foi de apenas 27%”.

O estudo também apontou que o Cade vê essas condutas como, muitas vezes, pró-competitivas: “Mesmo nos casos com condenação, houve divergência entre os conselheiros — inclusive em mercados digitais —, o que mostra a ausência de certeza sobre a conduta, incompatível com uma regra per se”.

Além disso, o relatório afirma: “Não há histórico no Cade de condenações por self-preferencing em mercados digitais. Argumenta-se que essa suposta leniência seria motivo para mudar o enfoque. Mas proibir ex ante a prática pode ser uma medida radical que inverte a lógica de uma conduta vertical potencialmente benéfica para os consumidores”. Em outras palavras, os dados reforçam a tese deste artigo.

A conclusão deste breve artigo é direta. Atualmente, (1) o self-preferencing, apesar da incerteza em sua definição, é presumivelmente lícito sob a ótica do Cade, dado seus potenciais pró-competitivos. O próximo passo lógico (2) seria construir uma jurisprudência sólida com condenações quando houver a comprovação de danos efetivos à concorrência – uma vez que, no cenário atual, conforme destacado pelo estudo do Legal Grounds, o Cade nunca condenou uma prática de self-preferencing em mercados digitais.

Com uma extensa base jurisprudencial, (3) faria sentido discutir uma presunção de ilicitude para a conduta, com uma possível inversão do ônus da prova ou outras ferramentas procedimentais que facilitassem a condenação de self-preferencing. Apenas se o estágio (3) fosse observado, (4) dever-se-ia considerar uma regulação ex ante e sua proibição geral – uma vez que estaria fortemente demonstrado que self-preferencing lesa a concorrência e os consumidores e que o risk de over-enforcement é baixo.

Ainda que se possa criticar a lentidão da evolução jurídica do antitruste, saltar do atual estágio (1) diretamente para a regulação rígida (4), como propõe o PL 2768/2022, ignora fundamentos jurídicos e econômicos necessários. Assim, não se pode considerar tal abordagem como boa prática regulatória.

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