Prova, argumento ou performance? Quando a imagem dramatizada desafia o julgamento

A antiga concepção de que a imagem, seja estática ou dinâmica, contém uma tal aura de realidade que afasta qualquer possibilidade de interpretação vem sendo desmentida pela epistemologia da prova judiciária, que alerta, entre outras coisas, para o potencial persuasivo da fotografia e do vídeo.[1]

Como a capacidade de convencer nem sempre corresponde à aptidão de conhecimento dos fatos – que aqui denominamos capacidade epistêmica –, é sempre necessário refletir sobre os objetivos buscados pelos profissionais do direito ao introduzirem, em juízo, elementos audiovisuais.

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A progressiva naturalização do vídeo nos diversos ambientes forenses já suscitou, em outra ocasião, questionamentos sobre o possível sugestionamento dos jurados diante de conteúdos repulsivos, encenados ou impactantes.[2] Tratava-se, na ocasião, da possibilidade de exibição, perante o Tribunal do Júri, de programas sensacionalistas, filmagens impactantes ou até mesmo documentários que narrassem acontecimentos relacionados à imputação criminal

Já então, a pergunta que se impunha era se o vídeo assim exibido teria caráter demonstrativo, prestando-se a cumprir a finalidade precípua da prova num sistema de persuasão racional, ou se, diversamente, possuía função meramente persuasiva, limitando-se a ilustrar os acontecimentos narrados pela acusação.[3]

Em ambos os casos, mais do que aventar a possibilidade de limitar a exibição dos conteúdos ao júri, impunha-se indagar até que ponto seria justificável a exposição dos jurados a tais conteúdos e, sendo justificável, como conscientizá-los do mito da objetividade do vídeo?

A resposta, contida na fundamentação de antigos julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal,[4] não poderia ser menos esclarecedora. Ao mesmo passo em que mantiveram a admissibilidade dos vídeos, uma das decisões reforçava o caráter emocional e persuasivo deste “elemento de prova”, sob o argumento de que teatralidade do procedimento do júri comportava a utilização de tais recursos pela acusação, cabendo à defesa empregar os mesmos artifícios para afastar o convencimento dos jurados.

Não se cogitou, em nenhum dos casos, da análise da pertinência ou relevância daqueles elementos para a solução de fato; tampouco houve ressalvas aos limites da argumentação das partes perante o Tribunal do Júri.

Como bem argumenta Taruffo, em todo e qualquer procedimento de caráter epistêmico tem importância decisiva o método, ou seja, o conjunto das modalidades com que são selecionadas, controladas e utilizadas as informações que servem para demonstrar a veracidade das conclusões[5].

Um episódio recente, ocorrido na sessão plenária no STF, reacendeu, sob novo enfoque, as questões debatidas a propósito dos vídeos de conteúdo sensível. No dia 20 de março, no julgamento da ADPFs 1.028 e 1.029, a exibição de um vídeo sobre o incêndio no Edifício Andorinha (RJ, 1986), foi interrompida a pedido do ministro Luís Roberto Barroso.

As imagens explícitas de vítimas em momentos de pânico, exibidas a pedido da procuradora do Estado do Rio de Janeiro, integravam a sustentação oral do caso, que versava a inconstitucionalidade de taxas de incêndio. O propósito, provavelmente, era de ilustrar as consequências do julgamento; mas a sensibilização, na visão do ministro presidente, ultrapassou os limites. Sua postura foi reforçada pelo ministro Dias Toffoli, que afirmou não ter prévio conhecimento do conteúdo do vídeo: “Se eu soubesse o que seria exibido, não deixaria”.

Sob novas luzes, o incidente demonstra a importância de se buscar o equilíbrio entre, de um lado, o direito à prova e à argumentação e, de outro, a sensibilidade dos profissionais do direito para lidar com as diversas possibilidades de provas audiovisuais.

No caso, verificou-se o reconhecimento, pelo STF, de que a força emocional da imagem pode ser tão ou mais eficaz na formação da convicção do que a apresentação de dados empíricos pertinentes ao julgamento. O que há tempos não era percebido no âmbito do Tribunal do Júri, foi alvo da sensibilização no bojo de um processo constitucional. Foi também um reconhecimento de que os juízes togados não estão livres do impacto subjetivo do vídeo.

A rigor, o discurso do juiz sobre os fatos deve ser racional, a fim de ser controlável no plano da racionalidade, evitando assim desvios subjetivos, ou pior, um verdadeiro arbítrio judicial[6].

O forte apelo emocional de imagens ou registros audiovisuais pode ser comparado à preocupação manifestada em relação ao vínculo psicológico gerado pela prova ilícita. Nicolò Trocker defende que, na hipótese em que a prova ilícita fosse juntada ao processo, haveria uma hipótese de suspeição do juiz, devendo essa ser desentranhada dos autos e o processo enviado a outro magistrado[7].

Argumenta-se, inclusive, que isso seria uma das razões que levou o legislador brasileiro a incluir o § 5º ao art. 157 do Código de Processo Penal, posteriormente declarado inconstitucional pelo STF[8]. Por outro lado, a se entender que a exibição do vídeo não constituiria prova, mas simples reforço de argumentação fático-jurídica (caráter meramente ilustrativo), a discussão se centraria na existência de possíveis limites ao discurso persuasivo dos profissionais do direito em sede de um processo jurisdicional democrático.

Não cabe aqui um juízo de acerto ou desacerto dos posicionamentos pretéritos do STJ e do STF ou do posicionamento recente da Corte Suprema. Mas, se antes o âmbito do debate estava restrito ao preparo de todos os profissionais do direito para lidar com tecnologias que então constituíam uma excepcionalidade; a partir da difusão dos conteúdos digitais no âmbito do processo, uma nova realidade se delineia e, espera-se, a percepção de que o Direito não poderá pairar inerte diante dela.

Diversamente do que se decidiu no passado, a corte admitiu que nem mesmo os ministros da mais alta corte do país estão imunes à força bruta da imagem. E que, portanto, o debate sobre os efeitos dos vídeos — dramatizados ou não — no processo brasileiro não é apenas uma questão acadêmica. É uma urgência institucional.


[1] “Uma distinção bastante antiga é aquela entre documentos ditos diretos, como a fotografia, e documentos ditos indiretos, como o desenho. […] A ideia de que documentos como a fotografia seriam diretos […] levaria à impressão de que a fotografia conteria um sentido direto, unívoco e ‘transparente’, não necessitando de intérpretes, contextos etc. Como se fosse possível simplesmente ver a fotografia, a filmagem, e (como aparece na jurisprudência) ‘ver’ ‘demonstrado’ diretamente um fato, um nexo de causalidade, ou quem causou incidente.” (De Paula Ramos, Vitor. Prova documental. 4ª ed., Jus Podivm: 2025, p. 153).

[2] Guedes, Clarissa Diniz; Nardelli, Marcella Mascarenhas. O vídeo como prova no júri e a aptidão epistêmica dos documentários e vídeos dramatizados. In: MORAES, Amanda de et al (org.). Desafios do processo penal brasileiro contemporâneo: homenagem aos professores Diogo Malan e Flávio Mirza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 135-151.

[3] Conferir, sobre isso: SILBEY, Jessica. Judges as film critics: new approaches to filmic evidence. University of Michigan journal of law reform, vol. 37, 2, 2004, p. 519 e s.

[4] Na ocasião do julgamento do STJ, HC 31181 (rel. Min. Gilson Dipp, j. 3.8.2004), foi invocado – e transcrito – o parecer da Sub-Procuradoria de Justiça, cujos termos eram os seguintes: “Cabe à defesa, contrapondo-se ao tom ‘dramático e fantasioso da acusação’, dar aos fatos o colorido que entende ser correto…. Essa é a encenação própria de um júri, cada um dando a sua própria versão aos fatos, defendendo as suas teses, dando aos jurados todos os elementos que precisam para decidir com justiça.”  Cf., no mesmo sentido, HC n. 65.144/BA, rel. Min. Gilson Dipp, j. 7/11/2006, DJ de 18/12/2006. No âmbito do STF, a discussão se limitou à possibilidade de se alertar o júri para o conteúdo emotivo da fita exibida em plenário (STF, AI 855774 AgR, rel. Min. Gilmar Mendes).

[5] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução Vitor de Paula Ramos. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 164.

[6] POLI, Roberto. Logica e Razionalità nella Ricostruzione Giudiziale dei Fatti. Modena: Mucchi Editore, 2021, p. 31. Tradução livre.

[7] TROCKER, Nicolò. Processo civile e constituzionale. Milano: Giuffrè, 1974, p. 633.

[8] VALE, Luís Manoel Borges do. Teoria geral do processo tecnológico/ Luís Manoel Borges do Vale, João Sergio dos Santos Soares Pereira. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2014, p. 189

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