O Conselho Federal de Medicina publicou nesta quarta-feira (16) resolução com regras que restringem o acesso a terapias voltadas para pessoas com disforia ou incongruência de gênero.
Apresentado poucos dias depois da decisão de rever as normas sobre o tema aprovadas em 2019 pelo próprio conselho, o texto proíbe, por exemplo, terapias de bloqueio hormonal em crianças e adolescentes que não se reconheçam com o gênero que lhe é atribuído no nascimento.
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A nova norma também eleva de 16 para 18 anos a idade mínima para hormonização, tratamento com hormônios para adequar corpos à identidade de gênero, e amplia de 18 para 21 anos a idade mínima para cirurgia de mudança de sexo que requer a retirada dos órgãos reprodutores.
Cadastro de pacientes
Além da restrição aos procedimentos, a nova norma do CFM determina que serviços que fazem as cirurgias de mudança de sexo cadastrem pacientes e repassem informações para Conselhos Regionais de Medicina.
Especialistas ouvidos pelo JOTA afirmam ter sido surpreendidos com a revisão, anunciada na semana passada. Não houve consulta prévia, o que contrasta com o procedimento adotado na norma anterior, debatida por mais de dois anos.
O bloqueio hormonal é um recurso terapêutico usado quando se quer reduzir as quantidades de hormônio no corpo. A estratégia pode ser adotada em alguns tipos de cânceres, por exemplo, ou quando o atraso da puberdade é importante.
No caso da disforia ou incongruência de gênero, esse recurso é usado para dar mais segurança no processo de acompanhamento.
No Brasil, crianças e adolescentes até agora somente eram submetidas ao tratamento quando acompanhadas por um grupo multidisciplinar e em centros de pesquisa habilitados. São cinco no país.
O bloqueio permite, por exemplo, evitar o crescimento de mamas ou pelos ou de a voz se alterar de forma expressiva enquanto a criança e adolescente é acompanhada. Isso torna também mais efetivo e rápido o tratamento com hormônios para que a pessoa possa ter características mais próximas ao gênero com o qual se identifica.
Os argumentos para as restrições agora impostas são limitados. Uma das justificativas é de que estudos reunidos até aqui não são suficientemente robustos para mostrar os benefícios do bloqueio hormonal.
Mas há alguns pontos importantes a serem considerados. Para começar, os resultados coletados em outros países não podem ser automaticamente usados como parâmetro para centros brasileiros.
No Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, tais terapias até agora eram conduzidas apenas por centros de pesquisa, com critérios rígidos tanto para admissão de pacientes quanto para condução e acompanhamento dos tratamentos. Não bastava vontade do paciente ou o relato de pais para que o processo tivesse início ou fosse concluído.
Justamente por ter critérios rígidos, não são muitos os casos já reunidos pelos centros brasileiros. Portanto, havia necessidade de um acompanhamento maior de casos, o que poderia levar anos, para identificar vantagens e desvantagens da técnica empregada com critérios brasileiros e chancelados até agora pelo próprio CFM.
A resolução do CFM, portanto, trava não o acesso ao tratamento apenas, mas a pesquisa científica que estava em curso no país. Este é um perigoso precedente.
Chama atenção ainda alguns requisitos apontados no texto do CFM. A exigência do registro de pacientes é uma delas. Não é a primeira vez que o conselho mostra interesse em ter cadastros relacionados a informações de pacientes.
Recentemente, uma tentativa frustrada ocorreu com registro de atestados. Uma plataforma foi criada pela entidade para concentrar a emissão e gerenciamento destes documentos, sob o argumento de que isso poderia reduzir fraudes.
O lançamento, contudo, foi suspenso pela Justiça Federal no Distrito Federal. Entre as justificativas estava a de que a plataforma poderia fragilizar o tratamento de dados sanitários e pessoais dos pacientes.
Não há uma justificativa até o momento para a necessidade de o conselho, que tem como objetivo principal zelar pela ética de seus profissionais, controlar quais pacientes foram submetidos a procedimentos.
A decisão do CFM deve provocar uma corrida à Justiça. Associações de pacientes e familiares estão desde a semana passada mobilizados para questionar a legitimidade da entidade para adotar uma medida de tal proporção.
“Embora o texto diga que as pessoas que estão em tratamento poderão permanecer, todos são impactados”, afirmou ao JOTA a presidente da ONG Minha Criança Trans, Thamyres Nunes.
Mãe de uma criança trans em acompanhamento há seis anos, Nunes afirma que a decisão do CFM irá afetar diretamente sua família, assim como inúmeras outras. “Minha filha não havia ainda entrado na idade de iniciar o bloqueio. Mas com a nova regra, ela não poderá fazer. Todo o preparo realizado até o momento cai por terra”, observa.
Da mesma forma, adolescentes que hoje estão na fase de bloqueio terão de esperar por mais tempo para iniciar a hormonização.
Nunes está convicta de que, caso a decisão seja mantida, haverá efeitos negativos importantes para as pessoas trans. “O primeiro deles é a retomada da automedicação”, disse.
A barreira no acesso a tratamentos feitos por meio de protocolos pode ampliar o abuso do uso de hormônios. A existência de um registro de pessoas que fazem procedimentos, além de colocar em risco a privacidade, pode empurrar pessoas a uma busca por clínicas clandestinas.
“Não há a menor dúvida de que essa regra trará ainda um impacto negativo para a saúde mental das crianças, adolescentes e famílias de pessoas trans. Esse grupo já traz algumas vulnerabilidades, que agora se ampliam com essa decisão do conselho”, afirma Nunes.