O Estado pode sumir com você? O caso Abrego e o fim do habeas corpus

Nos livros de direito constitucional, chamamos isso de habeas corpus. No
mundo real de Trump 2.0, parece mais com habeas cadaver. O caso Kilmar
Armando Abrego Garcia, deportado ilegalmente para El Salvador e enfiado
numa prisão de segurança máxima sem ter sequer o direito de recorrer à
justiça americana, é mais do que um erro. É um ensaio geral para o
autoritarismo.

O governo admitiu que errou. Mas em vez de tentar corrigir o erro, decidiu que
errou com convicção – e que ninguém pode impedi-lo. Em parecer à Suprema Corte, o governo sustenta que nenhum tribunal federal tem jurisdição para tirar
alguém de um cárcere ilegal no exterior, mesmo que tenha sido jogado lá por
engano (ou capricho). O precedente? Stalin. A lógica? A Lei de Inimigos
Estrangeiros de 1798, a mesma que justificou o internamento de nipo-
americanos na Segunda Guerra.

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E a Suprema Corte? Empatada entre os que ainda leem a Constituição e os
que a tratam como uma peça de museu. A juíza Sonia Sotomayor, com um
voto digno de antologia jurídica e resistência histórica, não deixou pedra sobre
pedra:

“As implicações da posição do governo são que não apenas estrangeiros, mas
também cidadãos dos Estados Unidos poderiam ser retirados das ruas,
forçados a embarcar em aviões e confinados em prisões estrangeiras, sem
qualquer oportunidade de recurso.”

Quer dizer: se amanhã você contrariar o poder – ou apenas for confundido com
alguém que o fez – poderá acordar no presídio de Mariona, sem advogado,
sem juiz, sem país. O que está sendo normalizado aqui é a
desconstitucionalização do inimigo, conceito que Carl Schmitt aplaudiria de
pé (e Goebbels bateria palmas do inferno).

Kilmar não é o único. Outros 200 venezuelanos foram removidos sumariamente
sob a acusação genérica de pertencerem a uma gangue. Sem audiência, sem
direito à defesa. Um juiz suspendeu, o governo ignorou. A lei virou sugestão. O
habeas corpus virou piada. O Estado de Direito virou meme.

E a resposta da Casa Branca à ordem judicial? Que a juíza mande um zap pro
Bukele. Isso mesmo. Despacharam um americano legalmente residente para
um gulag centro-americano e agora dizem que o problema é com o presidente
local. O Judiciário? Que se vire com a diplomacia.

Essa doutrina da extraterritorialidade totalitária – o Estado pode desaparecer
você e o Judiciário americano não pode fazer nada – transforma a Constituição
dos EUA numa colcha de retalhos e o presidente numa figura que está acima

dela. Jefferson disse que o habeas corpus era um dos pilares essenciais da
República. Trump diz que é opcional – como usar cinto de segurança em um
ônibus desgovernado.

O caso Kilmar é o protótipo do que vem por aí: um Estado policial com
terceirização da tortura, offshoring da prisão e impunidade garantida pelo voto
de uma maioria cúmplice na Suprema Corte. A lição? Se você acha que isso
não pode acontecer com você, é porque ainda não incomodou o poder o
suficiente.

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Este não é um “caso de imigração”. É um experimento político com alto
potencial de contágio. E como todo bom vírus autoritário, se espalha na
surdina, até que não reste ninguém para dizer: “isso é inconstitucional”.
Se o Estado pode jogar um cidadão numa masmorra e proibir o Judiciário
de abrir a porta, então isso já não é mais uma democracia. É só uma cela
esperando por você.

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