Em janeiro de 2025, o serviço de transporte por motocicletas 99Moto estreou em São Paulo como uma alternativa para o deslocamento diário dos moradores. A operação, porém, foi suspensa 14 dias após seu início por um impasse jurídico com a Prefeitura de São Paulo.
O serviço foi proibido na capital paulista por um decreto municipal do prefeito Ricardo Nunes (MDB). No entanto, a proibição contraria a legislação federal, que autoriza essa atividade nos municípios brasileiros.
Embora os motoapps operem em milhares de municípios brasileiros, os moradores da cidade permanecem sem acesso a essa alternativa de locomoção urbana, sem previsão de poder usufruir do serviço que opera legalmente em pelo menos 3.300 cidades.
Impasse legal em São Paulo
A Lei 12.587, de 2012, instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU). Em 2018, a Lei 13.640 alterou a norma e regulamentou o transporte remunerado privado individual de passageiros.
A partir dela, o transporte privado individual por aplicativo foi permitido, sem distinção do tipo de veículo na redação final. Nessa alteração, inclui-se a regulamentação da lei pelos municípios. Contudo, não está descrita a possibilidade de proibição total do serviço pelas prefeituras municipais.
A legislação estabelece que as prefeituras podem regulamentar e fiscalizar o serviço. A jurisprudência indica que a proibição do serviço de motoapp é inconstitucional, entendimento já consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2019.
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Em 2023, a Prefeitura de São Paulo publicou o Decreto Municipal 62.144, que suspende temporariamente o serviço de transporte individual privado de passageiros por aplicativos.
Em recente decisão judicial, o juiz Josué Vilela Pimentel, da 8ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) também considerou que cabe ao município a regulamentação do serviço, não a sua proibição. Na ocasião, o magistrado citou o art. 18, da Lei 12.587, a qual atribui aos municípios o dever de “planejar, executar e avaliar a política de mobilidade urbana, bem como promover a regulamentação dos serviços de transporte urbano”.
“O Supremo já tinha pacificado o entendimento de que o transporte individual privado de passageiros por aplicativos não pode ser vedado pelo Município, independente do veículo. E, pior, a Justiça de São Paulo julgou inconstitucional lei paulistana que proibia este transporte com uso de aplicativos em motocicletas”, disse Floriano de Azevedo Marques Neto, professor da Faculdade de Direito da USP.
O que diz a lei?
Considerada um princípio fundamental da Constituição Federal, o direito à livre iniciativa (art. 170) tem por meta garantir a liberdade das atividades econômicas, em um cenário em que cumpram as normas de segurança e regulamentação.
Ao emitir o Decreto Municipal, a Prefeitura de São Paulo não apenas deixou de regulamentar o serviço, mas também impediu completamente sua operação – que viola o princípio da livre iniciativa. A decisão não tem respaldo legal, tendo em vista que existe legislação que autoriza a atividade.
“No caso dos aplicativos de mobilidade urbana, notadamente agora os motoapps, a livre iniciativa serve para permitir que as empresas tenham interesse em disponibilizar esses serviços e não tenham a atividade estrangulada por marcos regulatórios desproporcionais”, diz Saul Tourinho Leal, advogado constitucionalista.
“O decreto proíbe essa atividade que é lícita no nosso país e endereçada para a população que mais necessita, para a classe trabalhadora que precisa desse tipo de transporte para reduzir as jornadas intermináveis geradas por déficit na prestação de serviço público. É, portanto, uma atividade complementar necessária absolutamente interligada com o ideal de livre iniciativa”, complementa Leal.
Em 2019, o STF declarou inconstitucional a criação de leis municipais de proibição de transporte por aplicativo, de forma que o serviço de motoapp está incluído nessa declaração. De acordo com a Corte, os municípios têm ação sobre regulamentar esses serviços, porém não podem proibir, uma vez que é uma atividade econômica lícita.
“O que os municípios podem fazer é estabelecer normas que disciplinem os serviços em aspectos de segurança, por exemplo, exigir o uso de capacete, vedar que uma moto transporte mais que dois passageiros, instar a cooperação dos aplicativos em temas como o controle da habilitação dos condutores ou a regularidade dos veículos face ao Código Nacional de Trânsito. Esta regulação, ademais, é mais eficiente se for feita dialogando com as empresas de aplicativo”, comenta Marques Neto, da USP.
Outro ponto fundamental é o direito à mobilidade urbana e ao acesso ao transporte. Tanto a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) quanto a Constituição Federal estabelecem diretrizes essenciais sobre o tema.
“O direito ao transporte constitui um dos mais relevantes direitos sociais constitucionalmente previstos. A Constituição também assegura, em um dos parágrafos do artigo 144, o direito à mobilidade urbana eficiente. No artigo 182, fala sobre o direito à cidade, o direito que os moradores da cidade têm em desfrutarem de serviços colocados também pelas forças privadas à sua inteira disposição, com a finalidade de ampliar o seu bem-estar”, explica Leal, advogado constitucionalista.
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Em muitos municípios, tanto em pequenas quanto em grandes cidades, o motoapp é um recurso que auxilia a suprir as lacunas do transporte público, em especial nas zonas periféricas.
Uma pesquisa do Instituto Locomotiva aponta que 96% das mulheres de baixa renda que circulam pela cidade enfrentam riscos de violência, como assédio sexual e roubo. Além disso, cerca de 70% consideram o transporte por motocicleta via aplicativo uma alternativa mais segura do que caminhar a pé.
Dados da 99Moto indicam que, durante o período de operação em São Paulo, mais de 58% dos usuários eram mulheres. Geralmente, as corridas começavam ou terminavam próximas a estações de transporte público, um modo de facilitar o deslocamento até terminais de metrô, trem ou ônibus. Dessa forma, a proibição também traz prejuízo à população ao comprometer a mobilidade urbana na cidade.
O advogado constitucionalista também ressalta sobre a importância de se assegurar o direito à inovação tecnológica, de forma que as novas ferramentas estejam a serviço da população. “Com a proibição, você viola não apenas o direito ao transporte, mas também a vários outros direitos quando pensamos na vida nas cidades”, diz Leal.
Papel dos municípios
A Constituição Federal também prevê as competências e estrutura do município, de forma a incluir a prefeitura como integrante do Poder Executivo local. O seu papel é, essencialmente, gerir recursos, regular, fiscalizar e promover o desenvolvimento do lugar. “O município não pode editar normas proibindo ou restringindo o exercício de uma atividade econômica. A jurisprudência do Supremo é clara neste sentido há décadas”, analisa Marques Neto.
Os municípios têm obrigações sobre a segurança viária, que visam reduzir o risco de acidentes no trânsito, por exemplo. As prefeituras cuidam das vias públicas e estabelecem uma série de mecanismos para aumentar a segurança, como criação de faixas exclusivas de ônibus e motocicletas, instalação de semáforos e criação de ruas para pedestres.
“A prefeitura organiza como vai ser a circulação viária e quando faz isso, ela leva em conta a segurança. Mas isso não significa que por questão de segurança a prefeitura possa dizer que as motocicletas estão banidas da cidade, por exemplo”, diz Carlos Ari Sunfeld, professor de Direito da FGV-São Paulo.
Para o professor, é necessário estabelecer regras de segurança viária pelas prefeituras, sem agir no escopo de outras autoridades. “Se há um problema de segurança com motos, a prefeitura pode estabelecer uma redução de velocidade em grandes vias, assim como faz para carros e ônibus. No entanto, ela não pode pretender ser uma autoridade nacional de trânsito. A legislação nacional é voltada a garantir a liberdade. As prefeituras não podem impedir o exercício da atividade econômica, como dos motoapps”, acrescenta.
Segurança e legislação
Recente levantamento do 99Moto concluiu que, em dois anos de operação em 3.300 municípios brasileiros, foram realizadas mais de 1 bilhão de corridas intermediadas pelo aplicativo. De acordo com dados da 99, apenas 0,0003% das corridas com motocicleta registraram acidentes nesse período. Durante o funcionamento na cidade de São Paulo, em janeiro de 2025, não houve registro de acidentes.
Os especialistas endossam uma diálogo entre as empresas de motoapps e as prefeituras municipais, em particular no caso de São Paulo, de forma a ampliar o impacto social à população beneficiada pelo serviço, além de auxiliar na democratização da mobilidade urbana. De forma que os moradores da capital paulista tenham o mesmo acesso à atividade, assim como milhares de outras cidades, inclusive os 38 municípios da Região Metropolitana de São Paulo.
“Entendo que a única forma de se ter uma regulação eficaz é dialogando com as empresas, usuários e motoristas. O que se tem visto de itens de segurança nos aplicativos parecem bastante adequados e o mesmo vale para fiscalização. Seria possível desenvolver um protocolo para que os aplicativos colaborem na aferição da adequação das motos empregadas aos itens previstos na legislação de trânsito”, finaliza Marques Neto, da USP.