Lobos em pele de cordeiro?

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou, na última semana, o exame do Tema Repetitivo 1.198. O debate jurídico deveria estar circunscrito em definir os limites que o juiz tem, dentro do Poder Geral de Cautela, de exigir requisitos extravagantes (e não expressos em lei) para admitir repetidas ações judiciais promovidas por consumidores contra fornecedores de bens e serviços.

Contudo, o que chamou mais atenção da comunidade jurídica foi o que a Advocacia-Geral da União, bancos, operadoras de planos de saúde, concessionárias de energia e aéreas convencionaram, até pouco tempo atrás, apelidar de “litigância predatória”.

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Em texto publicado neste JOTA[1] (30/10/2024), Luciano Timm se valeu da expressão referida para, em sua concepção, descrever:

“(…) advogados em situação de prática de atos de angariamento de clientes contrariamente aos ditames do Código de Ética (CEOAB), falsificação de procurações, entre outras práticas condenáveis que podem ser explicadas pela AED[2]”.

Em termos simplificados, ele propagou ser necessário “frear o avanço das demandas fraudulentas”[3], presumindo que a má-fé imbuiria advogado de consumidores que, no exercício regular da profissão, propusesse grande número de ações judiciais, em pleitos idênticos, contra atores relevantes de mercado.

O inusitado, depois de mais de três décadas e meia de vigência do Código de Defesa do Consumidor e da cláusula constitucional da vulnerabilidade (art. 5º, XXXII), foi a curiosa afirmação de que associações civis e advogados de consumidores seriam fatores de ameaça ao setor econômico e à Justiça.

Sem precedentes históricos, legais ou doutrinários que deem suporte a essa narrativa construída, só se encontra socorro na perene lição de uma das mais conhecidas fábulas de Esopo: o lobo e o cordeiro[4]. Nela, o ilustre grego de Delfos descreveu, sinteticamente, o discurso que uma fera teria proferido para justificar um ataque fatal à sua presa.

O lobo, ao saciar sua sede em um riacho translúcido, redarguiu um cordeiro que, mais abaixo da ribeira, lhe turvava a água. O caprino respondeu, de onde estava, que seria impossível incomodar. O canino, insolente, avançou-lhe ceifando a vida.

Sobre essa mesma passagem, séculos depois, La Fontaine tomou a conclusão de que “a razão do mais forte é a que vence ao final”[5], pouco importando dados, argumentos ou motivações apresentadas em peleja, pois, vulneráveis tendem a sucumbir.

Parece banal citar uma fábula para tema dessa relevância, mas, detrás de historietas e fantasias, a editora Oxford publicou estudo de Jeremy Lefkowitz a respeito da importante correlação que pode existir entre comportamentos de animais irracionais e fenômenos sociais humanos[6].

Para Jeremy, estereótipos faunísticos podem emprestar uma rica simbologia para enxergar e apontar problemas reais da humanidade[7]:

“Os animais tornam-se relevantes para questões sociopolíticas quando se chama a atenção para potenciais paralelos entre a concessão de voz, pela fábula, aos animais sem voz e o suposto empoderamento de membros da sociedade que estão igualmente silenciados”.

A concentração de força tende a impor suas ações independentemente (ou pouco importando) o discurso adotado para tais fins. No entanto, a infeliz escolha do estereótipo de que os maiores demandantes da Justiça brasileira seriam os vulneráveis e um setor específico da advocacia, de tão absurda, desafiou a fábula de Esopo.

Amadurecido o assunto, agora, é possível revelar alguns bastidores da origem desse discurso, assim como retomar quem é presa e quem é predador à beira do riacho.

A origem da expressão “litigância predatória (associativa)” surgiu nos idos de 2017, em peças processuais de contestação-padrão apresentadas por bancos, plano de saúde e empresas aéreas. O fundamento chegou a ser acolhido e citado principalmente em acórdãos de Agravos de Instrumento que extinguiam, sumariamente e em bloco, ações judiciais de diferentes consumidores representados por um mesmo advogado, contra um mesmo fornecedor[8].

Em seguida, apareceram explicações mais sofisticadas[9]. Em insistência paulatina, observou-se o trabalho de visitação sistemática e eventos promovidos pelo setor corporativo de fornecedores (Febraban, CNSeg, Abear, CEF, AGU), apto a mudar o foco atuação de tribunais e do CNJ em relação ao que vinha sendo feito, até ali, modificar a postura dos “maiores litigantes”[10] do Brasil (União federal e fornecedores de bens e serviços massificados).

A empreitada ganhou corpo a partir do aparelhamento de Centros de Inteligências nas cortes estaduais (conhecidos como Nupemedes) que passaram a policiar, entre outros exemplos, qualquer “causídico com atuação em distribuição de demandas temerárias e práticas abusivas para obtenção de ganhos mediante condenações em dano moral”[11].

A novidade foi a mudança de rumos tomada, onde a política judiciária do CNJ que se sedimentou para promover acordos e a cessação de condutas ilegais massificadas cedeu lugar à “Diretriz Estratégica 7”, da Corregedoria do mesmo Conselho, assim formalizando e incorporando o “combate à litigância predatória”[11].

O viés numérico do fenômeno foi lastreado em números sempre vultosos que, a exemplo do que fez constar o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (em sua Nota Técnica 01/2022-CIJMG-TJMG), teria custado mais de R$ 10 bilhões aos cofres daquela corte, apenas para processar e julgar determinados casos de consumo.

Emplacada a fala de 2022 para cá, não foram raras as notícias de operações policiais contra advogados e escritórios que, em comum, foram devassados e tiveram seus nomes desabonados na mídia em operações policiais instauradas a partir desse novo contexto criado.

Rotativos do meio jurídico difundiram, com frequência destacada, casos de magistrados extinguindo dezenas, centenas[13] e até milhares[14] de ações judiciais em uma só tacada, tendo em comum o escopo do tal combate aos predadores.

Por outro lado, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, nesse mesmo período, passou a receber centenas de pedidos para intervenção das Comissões de Prerrogativas e de Defesa do Consumidor (das seccionais e da Federal), em situações que, apuradas devidamente (e com sigilo profissional legal exigido), apresentaram raríssimas confirmações de ilícitos pontuais cometidos por advogados, muito longe do enredo predatório.

Os Tribunais de Ética das seccionais, por sua vez, não captaram aumento de denúncias, muito embora tenham processado e julgado, sem condenações antecipadas, acusações de fraudes cometidas em processos. Isso porque, até então, tornou-se normalizada a punição ética de causídicos determinada diretamente por magistrados.

A OAB, aliás, jamais foi omissa ao tema e, tanto atuou como Amiga da Corte no julgamento do Tema 1.198, como também apresentou diversos estudos para o Conselho Nacional de Justiça demonstrando a eficiência de seus aparatos internos de fiscalização de abusos, embora não tenham sido absolutamente considerados com a expedição da Recomendação 159/2024-CNJ (votada e aprovada, aliás, enquanto as duas cadeiras de conselheiros da advocacia estavam vagas).

Sucedeu que o encerramento do julgamento do Tema 1.198, do STJ, trouxe um desfecho não esperado por aqueles que apostavam que colariam tanto a propaganda da “litigância predatória” quanto a estigmatização da advocacia de massa.

O aprofundamento das análises se deveu, em boa parte, ao ministro relator do caso, Moura Ribeiro, que, em sua costumeira sensibilidade, convocou audiência pública com paridade de voz aos setores afetados, especialmente aos vulneráveis (todos alinhados contrariamente à ideia figurativa de predadores).

Na audiência pública foi possível identificar que muito mais que discutir pressupostos processuais, assistiu-se a um show de números estrondosos que imputaram a profissionais liberais e brasileiros, uma nova espécie de culpa exclusiva pelo número excessivo de processos judiciais e seus respectivos impactos orçamentários.

A numerologia provavelmente extraída da já citada “AED”, de tão alardeada, foi reprisada no voto do ministro relator, e aquilatada pelo voto-vista do ministro Felipe Salomão. Este último propôs a ampliação indistinta de hipóteses para extinção de ações judiciais versando sobre direito do consumidor, bastando as conhecidas presunções acusatórias, in limine litis, de procurações falsas, endereços equivocados e teses frívolas.

Mas, ao fim e ao cabo, o entendimento final da Corte Especial se balizou em grande parte pelos relevantíssimos posicionamentos trazidos no voto divergente do ministro Humberto Martins, os quais – não pelos mesmos fundamentos – foram contemporizados pelo ministro Herman Benjamin. O presidente da corte ajustou a tese final em um ponto de equilíbrio, sobretudo no que diz respeito às garantias processuais de inversão do ônus da prova (art. 6º, inciso VIII, do CDC – que persiste como Direito Básico dos consumidores).

Na dicção de Herman, parece restabelecida a justiça narrada por Jeremy Lefkowitz. Enquanto o professor norte-americano quebrou a lógica de La Fontaine para destacar que minorias têm lugar de fala, Herman Benjamin votou de modo edificante ao quebrar os estigmas impingidos injustamente a diversos advogados brasileiros. Em trecho digno de destaque, S. Exa. expressou que:

“(…) o número de ações propostas por um advogado, 10, 1.000, 10.000, 100.000, não é indicação, per se, de litigância predatória ou abusiva. Como nós sabemos, os escritórios se especializam em determinadas áreas. O fenômeno que estamos tratando aqui é de uso abusivo das vias judiciais, mas abusivo por uma série de pecados processuais, mas, não pelo número, pura e simplesmente de ações propostas. … Diante dos números, é importante que o número sozinho não é razão para nós impugnarmos a atuação profissional de um advogado, porque nós corremos o risco de deixarmos sem proteção aquelas vítimas de comportamentos ilegais que só terão advogado neste contexto, de uma litigância massificada, o que não quer dizer litigância predatória ou abusiva”[15].

Após a manifestação de Benjamin, parece que a dicção final da corte se realinhou à lógica biológica da predação, da qual todos têm conhecimento: predador é quem se eleva em força, energia, capacidade destrutiva e dominação exercidas e, por isso – no sentido antropomórfico – está no topo da cadeia alimentar (os predadores), sobrepostos àqueles que ocupam sua base (as presas)[16], e não o contrário. Benjamin descreveu, no que intitulou “litigância predatória reversa”, que:

“(…) eu trago em obiter dictum acerca da litigância predatória reversa, porque isto não está em debate, mas é importante que nós alertemos a doutrina e os juízes que existe a litigância predatória reversa. Grandes litigantes, empresas que normalmente se recusam a cumprir decisões judiciais, súmulas, repetitivos, texto expresso de lei, não buscam – e quando são chamados – não mandam representante (ou mandam sem poderes para transigir) nos casos dos órgãos administrativos que fazem a mediação, e nós estamos muitas vezes falando de 200.000, 500.000 litígios provocados por um comportamento absolutamente predatório por parte de um dos agentes econômicos ou do próprio Estado. Porque o Estado também pode praticar, e pratica (nós sabemos) comportamentos predatórios”[17].

Neste ponto específico do voto, percebe-se que o julgador já não está a falar em litigância abusiva, mas, diversamente, em nova modalidade predatória (para além das conhecidas modalidades de práticas comerciais e cláusulas contratuais abusivas do CDC), a ser desferida naturalmente pelo setor que acumula maior poder no mercado (ou, alusivamente, na cadeia alimentar).

Empiricamente, já sob o domínio dos números apresentados nos votos, percebe-se que o orçamento do Poder Judiciário tem e sempre terá investimentos (e não gastos) para manter ativa a capacidade de pacificar conflitos submetidos pelos brasileiros. Por outro lado, a conta apresentada e imputada a demandantes judiciais não faz cócegas aos lucros que, apenas a título de exemplificação do maior banco privado do país, em 2025, só pode ter suas práticas abusivas regradas por um artefato da envergadura do Judiciário (inexistindo, vis a vis, outro ator público apto tal).

Ao final, entre as lógicas de La Fontaine e a campanha daqueles que atuam em oligopólios operantes e na incessante captura de agências reguladoras, mantendo uma multidão de clientes insatisfeitos, parece que tudo não passou da velha tentativa antevista pelo evangelista Mateus (7:15), quase contemporâneo a Esopo: são lobos em pele de cordeiro.

Os discursos lupinos da tal “AED” (embora enviesados para conter cordeiros, ao invés de lobos) pareceram se arrefecer, agora alterando versões mais suaves de que não estariam, jamais, atacando vulneráveis no afã de reduzir o contencioso judicial de fornecedores sem as vias da conformidade ou da conciliação. No entanto, o que se viu na beira do riacho, com advogados sérios e trabalhadores expostos à carnificina midiática, não voltará atrás.

A advocacia consumerista brasileira, por intermédio da OAB, suas seccionais e de entidades civis de defesa dos consumidores, mantém-se ordenada, mas também altiva e atenta às violações legais diárias que o brasileiro sofre. A porta do Poder Judiciário, conforme vaticinou o presidente do Superior Tribunal de Justiça, não será fechada aos brasileiros, aliás, porque jamais foi fechada para quem mais dela se utiliza para rolar dívidas e se opor à regulação: os maiores litigantes do país, dentre eles, o Poder Público, bancos, planos de saúde, empresas aéreas e outros concessionários de serviços públicos (sejam eles predadores ou não).


[1] Disponível em: “https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-economia-mercado/litigancia-predatoria-ou-abusiva-um-caso-de-analise-economica-do-direito”. 30/10/2024.

[2] E, por isso, são originadas da “Análise Econômica do Direito”, e não das fontes formais do Direito.

[3] Consoante publicado pelo sítio de Veja <<https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/a-litigancia-predatoria-afeta-economia-e-os-negocios-diz-especialista>> e Estadão << https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/litigancia-predatoria-um-problema-etico-sistemico-e-concorrencial/?srsltid=AfmBOoq-In2tCFys79zHbI14Tr6-cg2HjOtuV-Okle54axbpSFX67QPq>>, ambas tendo o mesmo professor Timm como fonte.

[4] KELLER, John E.; KEATING, L. Clark. Aesop’s fables: with a life of aesop. Univ. of Kentucky, p. 09, 2014.

[5] LA FONTAINE, Jean de. Fábulas de la Fontaine; tradução Milton Amado e Eugênio Amado. Itatiaia, p. 97, 2003.

[6] LEFKOWITZ, Jeremy B. Aesop and animal fable. The Oxford Handbook of Animals in Classical Thought and Life. Oxford University Press, p. 16, 2014.

[7] Op. Cit, p. 18.

[8] É o que se lê dos julgados que embasam, por exemplo a Nota Técnica nº 1/2022, do Centro de Inteligência da Justiça de Minas Gerais, referindo-se a dados de 2020. Disponível em: << https://www.tjmg.jus.br/data/files/49/80/E5/70/DF212810B8EE0B185ECB08A8/NT_01_2022%20_1_%20_1_.pdf>>.

[9] O arranjo foi declaradamente oriundo da Análise Econômica do Direito.

[10] Na Política Judiciária originária do Conselho Nacional de Justiça, e. g.,: BRASIL. CNJ. “Relatório 100 Maiores Litigantes, 2012” disponível em <<https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/100_maiores_litigantes.pdf>>

[11] Op. Cit. da Nota Técnica mineira: p. 6.

[12] BRASIL. CNJ. Disponível em: <<https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/metas-e-diretrizes-estrategicas/metas-2023/>>.

[13] (05/07/2024) <<https://www.migalhas.com.br/quentes/410754/narrativas-frivolas–juiz-extingue-acao-por-litigancia-predatoria>>; (10/09/2024) << https://www.migalhas.com.br/quentes/414976/por-litigancia-predatoria-juiz-extingue-acao-com-13-casos-similares>>.

[14] (28/03/2023) <<https://www.migalhas.com.br/quentes/383770/juiz-extingue-1-476-processos-com-indicios-de-litigancia-predatoria>>.

[15] BRASIL, STJ. Disponível em: << https://www.youtube.com/watch?v=fo1jyCDzr_Y&t=5191s>>.

[16] DELONG, John P. Predator ecology: evolutionary ecology of the functional response. Oxford University Press, p. 1, 2021.

[17] BRASIL, STJ. Disponível em: <<https://www.youtube.com/watch?v=fo1jyCDzr_Y&t=5191s>>.

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