Foi o robô que fez?

Recente relatório[1] do Escritório dos Estados Unidos para os Direitos Autorais (USCO) concluiu ser desnecessária a promulgação de leis para tratar da proteção autoral de obras criadas por meio ou com auxílio de inteligência artificial.

Além de considerar as fontes já em vigor como suficientes para lidar com o tema, ressaltou que a simples utilização dos sistemas informáticos não gera direitos autorais[2]. Talvez as considerações aí tecidas ajudem a reduzir a desconfiança, o pânico e a sensação de impotência dos criadores (logo, humanos) de obras autorais.

Não são novas as reações pessimistas em face de novas tecnologias capazes de emular, substituir ou superar as capacidades humanas[3]. Afinal, como se teoriza com boas razões, é possível que autônomos inteligentes não tardem a caminhar ao nosso lado ou, alternativamente, sobre nossos corpos prostrados…

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Nesse sentido, toda tecnologia é ambígua: aumenta as capacidades humanas e, ao mesmo tempo, a necessidade do trabalho humano. Decerto, poucos sugeririam tirar o boi da frente do arado para empregar mais gente no plantio. No curto prazo, porém, robôs substituem trabalhadores da indústria automotiva e o streaming fagocita cadeias de locadoras de DVDs, para desespero dos franqueados. O recente desenvolvimento da inteligência artificial, assim, pois profissionais e artistas em polvorosa. Nesse escopo, há na economia[4] a noção de destruição criativa e de obsolescência.

Do ponto de vista dos produtores de conteúdos criativos – sejam literários, musicais, pictóricos ou audiovisuais – a possibilidade de substituir criadores humanos por máquinas bem adestradas resulta claramente distópica. O próprio éthos do artista evoca, como característica essencial da criatividade, uma centelha criativa própria da inspiração como experiência individual. Ainda que haja os 99% de transpiração, sem o 1% de inspiração não haverá arte. E é exatamente esse 1% que justifica, sob controversa perspectiva, a proteção jurídica dos direitos do autor sobre a obra.

Nesse sentido, contesta-se a possibilidade de um ser sem alma ser capaz de infundir aura na obra, como sugeriria Walter Benjamin[5]. Entretanto, os resultados apresentados por instrumentos de inteligência artificial vêm passando com sucesso no teste de Turing e pode ser bastante difícil confirmar se a obra tem ou não tem aura apenas observando o resultado, sem conhecer seu processo de criação.

Nesse contexto, é interessante observar as conclusões do USCO na segunda parte do Relatório sobre Direitos Autorais e Inteligência Artificial[6], publicado no dia 29 de janeiro de 2025. Trata-se, aí, da extensão da proteção autoral sobre obras criadas por IA.

A abordagem parte de uma constatação importante: não há processo gerativo, por meio de IA, que não seja parcialmente dependente de contribuições humanas. O hardware e o software são, originalmente, desenvolvidos a partir da produção material e intelectual humanas. O material textual, sonoro, imagético e sequencial também deriva de elementos criados ou captados por humanos.

O processo de geração do texto é, comumente, orientado por instruções dadas por um humano. Por fim, mas não com menor importância, o resultado de uma produção por IA pode ser, posteriormente, alterado por humanos – tal como uma benfeitoria ou pertença imaterial, quiçá especificação civil.

Tendo como ponto de partida o Direito estadunidense, constituído por uma complexa interação de legislação e jurisprudência nas esferas estaduais e federal, o relatório do USCO conclui pela ausência de proteção a obras geradas exclusivamente por inteligência artificial e a “material sem controle humano suficiente sobre os elementos expressivos[7]”.

Deixa-se muito claro, portanto, haver apenas e exclusivamente proteção autoral sobre a criação humana. A questão posta é de quais tipos de intervenção humana e em qual grau deve ocorrer para haver a correspondente proteção jurídica[8].

Assim, a proteção autoral não é voltada a remunerar a eventual prestação de serviços de IA. O resultado gerado por meio de atividades informáticas generativas não é, em si, objeto juridicamente protegido por direito autoral no presente sistema jurídico estadunidense, conforme o relatório do USCO.

Isso não implica a impossibilidade de estabelecer contratualmente deveres ao tomador do serviço de IA a respeito de sua utência, nem desse controlar contratualmente seu uso a jusante. Tais limites, porém, não são oponíveis aos terceiros. Assim, no relatório ora analisado, a participação humana na construção dos instrumentos e organização dos processos informáticos constitutivos da IA gerativa não aparece como razão para a proteção autoral dos resultados.

Por outro lado, sempre que os resultados gerados por IA incorporarem elementos autorais perceptíveis, este resultado será protegido por direito autoral. Tais elementos podem derivar da alimentação intencional de um autor humano. É o caso do escritor que alimenta o serviço de IA com um texto de sua autoria (insumo) para que o sistema promova alterações e ajustes (reformas). Enquanto houver elementos discerníveis que remetam à composição autoral, o resultado será uma obra atribuível ao autor.

Pode ocorrer, porém, o aparecimento de resultado com elemento autoral perceptível em razão do uso de bases de dados amplas para a alimentação dos sistemas de IA. Nessa situação, caso exista suficiente semelhança entre obra autoral e aspectos do resultado do emprego da IA, o autor terá seus direitos reconhecidos.

Observe-se que, nos termos do relatório do USCO, a atribuição dos direitos autorais não decorre da recomposição ou rastreabilidade do processo de geração por IA, mas da verificação que seu resultado tem suficiente semelhança (estética, formal) com trabalho reconhecidamente autoral. Assim, identificada a similitude, será desnecessário comprovar qualquer vínculo com a obra originária.

Além disso, a seleção criativa, coordenação e arranjo dos resultados da IA também é considerada, no relatório, como coberta por direito autoral de quem a tenha realizado. O próprio relatório esclarece que o preenchimento do prompt não é suficiente para tanto, considerando não haver suficiente controle dos resultados. Ressalta, nesse sentido, o fato de o próprio uso do mesmo prompt em distintas ocasiões leva a resultados diferentes, indicando uma dificuldade de controle. A atribuição do direito de autor, portanto, deve ser avaliada caso a caso, nos termos das fontes normativas já existentes.

Por fim, reconhece-se a modificação criativa dos resultados como capaz de dar causa à proteção. Não se trata, aqui, de quantas alterações são processadas, mas de sua qualidade: deve haver criação. Não é, nesse sentido, tão diferente do grande mestre da pintura que completa os detalhes do rosto de um quadro feito por seus assistentes, lançando sua assinatura. Assim, pode ser considerado autoral o texto do jurista escrito sobre uma base descritiva da legislação, feita por IA, ao qual o autor imprime a marca de suas interpretações.

A despeito de ser bastante pantanoso o terreno dessa prática, minado por plágios e outras picaretagens, é possível discernir, por vezes com clareza, as pinceladas criativas de um Rembrandt. Em regra, beirarão a mera desonestidade os ajustes feitos pelo estudante preguiçoso; razão pela qual é fundamental que as Instituições de Ensino Superior (IES) venham a tecer molduras hermenêuticas estreitas para qualquer uso de IA na elaboração de labores acadêmicos.

Esses três aspectos, grosso modo, correspondem à alimentação, realização e edição do resultado da IA. Embora os processos sejam mais relevantes para a caracterização da intervenção humana nos dois últimos casos, a abordagem do relatório do USCO se caracteriza por:

  1. proteger apenas a criatividade humana, em consonância com o Direito vigente;
  2.  deixar a uma análise caso a caso do resultado, quiçá obra, para aferição de se a proteção autoral é devida; e
  3. tomar como pressuposta a ausência de proteção intelectual de um objeto, a menos que se evidencie a participação humana em sua feitura.

Conforme o relatório do USCO, os robôs não criam. Fazem, geram, ajustam, escrevem, rascunham, pintam e, até, tocam e cantam. Mas não criam. Robôs originam, ou melhor, robôs derivam a partir de insumos humanos.

É uma posição capaz de tranquilizar os temores de muitos. É ingênuo, porém, pressupor a insignificância da IA para o mercado da produção artística, afinal, os auxiliares do atelier poderiam perder o emprego para os robôs. E isso é pouco, pois deve haver consequências potencialmente disruptivas para toda a estrutura social da criação artística, empurrada para o campo de relações econômicas mediadas pelo mercado.

As tensões em torno da atribuição do rótulo “autoral” não são meramente simbólicas. A concessão de proteção equivalente à autoral, ainda que com outro nome, para os resultados da IA poderia acelerar e aprofundar tais processos de transformação e, contanto, afetar ainda mais as estruturas e fluxos da produção artística e cultural.

Nesse ponto, é importante indagar qual a resposta do Direito brasileiro. A Lei de Direitos Autorais brasileira, em seu artigo 7º, define como obras intelectuais protegidas as que são “criações do espírito” e, portanto, em consonância com a delimitação mais básica do Direito estadunidense: produção criativa humana. É possível, porém, que lá e cá surjam pressões significativas para o reconhecimento, legal ou jurisprudencial, da criatividade da IA, mesmo a existente hoje e ainda muito distante da “IA geral”. Pressões de tal sorte são de cunho plutocrático, mas não humanistas e muito menos includentes.

O resultado dos embates em torno do assunto é impossível de ser previsto, pois dependerá de ajustes sociais, políticos e econômicos. Por enquanto, porém, a criatividade dos nossos companheiros eletrônicos ainda é obra de ficção científica.


[1] Disponível em https://www.copyright.gov/newsnet/2025/1060.html.

[2] Deve-se advertir que se optou por uma correspondência entre “copyrights” e “direitos autorais”, embora não exista sinonímia técnica entre ambos esses conceitos em seus contextos linguísticos originais.

[3] ABBOTT, Ryan Benjamin. The reasonable robot. New York: Cambridge University Press, 2020, p. 5.

[4] SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 106.

[5] BENJAMIN, Walter Benedix Schönflies. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. In BENJAMIN, Walter Benedix Schönflies. DETLEV, Schöttker. SUSAN, Buck-Morss MIRIAM, Hasen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Tradução Marijane Lisboa e Vera Ribeiro; organização Tadeu Capistrano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 13.

[6] Relatório disponível em https://www.copyright.gov/ai/Copyright-and-Artificial-Intelligence-Part-2-Copyrightability-Report.pdf, acessado aos 2 de fevereiro de 2025. Para uma resenha em português, veja-se Direitos Autorais, IA Generativa e as orientações do USCO. – GEDAI, consultado aos 5 de fevereiro de 2025.

[7] Relatório USCO, página iii.

[8] Permita-se remissão a BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Diálogos entre a Propriedade Intelectual e a Inteligência Artificial. In: Silmara Juny de Abreu Chinellato; Eduardo Tomasevicius Filho. (Org.). Inteligência Artificial. Visões Interdisciplinares e Internacionais. São Paulo: Almedina, 2023, v. 1, p. 91-126 e BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Autoria de Bens Intelectuais e as Criações de Inteligência Artificial. In: TEPEDINO, Gustavo José Mendes & SILVA, Rodrigo da Guia. (Org.). O Direito Civil na Era da Inteligência Artificial. 1ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, v. 1, p. 763-780.

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