Precisamos de uma Polícia Municipal em São Paulo?

No final de fevereiro, a cidade de São Paulo tentou acelerar um tema que provavelmente exigirá meses de debate. Na sessão do dia 27[1], a Câmara Municipal discutiu o Projeto de Emenda à Lei Orgânica do Município 8, de 2017, de autoria da vereadora Edir Sales (PSD), que propõe alterar a nomenclatura da Guarda Civil Metropolitana (GCM) para Polícia Municipal de São Paulo.

Embora o projeto pretenda, em tese, promover apenas uma mudança de nomenclatura, na prática, envolve uma retórica polêmica sobre a inclusão das guardas municipais na estrutura da segurança pública, atualmente ocupada pelas polícias estaduais e federais. Uma instituição anteriormente dedicada à vigilância de bens, serviços e instalações municipais, com função coadjuvante na segurança pública, estaria legitimada a exercer atribuições de policiamento[2].

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O tema surge em um contexto em que o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário 608.588 (Tema 656), com repercussão geral, tratando dos limites da atuação legislativa municipal na definição de atribuições das guardas.

Em síntese, o STF reconheceu a constitucionalidade das ações de segurança urbana realizadas pelas GCMs, incluindo o policiamento ostensivo comunitário, desde que observadas as competências dos demais órgãos de segurança pública previstas no artigo 144 da Constituição Federal.

Parte do fundamento utilizado pelo STF na decisão está relacionado à Lei 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e que reconhece as guardas municipais como integrantes operacionais do sistema (art. 9º, § 1º, VII).

No contexto paulistano, o debate ganhou novos contornos e alterou a tradicional correlação de forças políticas da Câmara Municipal.

De um lado, os governistas argumentaram que o projeto representa um justo reconhecimento à GCM como uma corporação que, na prática, já exerce funções de polícia há bastante tempo. A ala favorável à proposta, formada por apoiadores do prefeito e diversos vereadores ligados às forças de segurança (sargentos, majores e policiais civis), sustentou que São Paulo pode assumir uma posição de vanguarda em relação às demais cidades do país, tornando-se a primeira a instituir uma polícia municipal.

A ala também argumentou que, ao reconhecer as guardas como policiais municipais, São Paulo se tornará mais capacitada para prender “marginais”, fortalecendo uma popular política de segurança urbana intitulada Smart Sampa, que utiliza videomonitoramento por meio de câmeras espalhadas pela cidade, recentemente criticada devido ao seu potencial viés racista[3].

Em contraponto, os vereadores de oposição ao projeto, principalmente da esquerda, mas também de um segmento mais radical e barulhento da direita, reconheceram a pertinência do projeto, criticando o seu uso demagógico pela Prefeitura, que parece querer apressar a aprovação sem o devido debate.

Embora, a princípio, não se oponham à mudança do nome da GCM, denunciaram que essa alteração deveria ser acompanhada de um debate mais amplo, que assegure mais direitos e condições de trabalho aos servidores, por meio de um regime especial de aposentadoria, de assessoria jurídica gratuita em caso de necessidade e da criação de uma controladoria externa.

Os vereadores de esquerda também enfatizaram que a nova polícia municipal não pode herdar os antigos problemas observados na atuação das polícias militares e, antecipadamente, defenderam o uso de câmeras corporais nas fardas dos servidores.

Entre discursos inflamados e o uso de diversas táticas de obstrução, como a apresentação de substitutivos, requerimentos de verificação de presença e pedidos de adiamento da discussão, a sessão foi encerrada sem que o projeto fosse apreciado. No entanto, o episódio seguirá despertando algumas curiosidades para qualquer analista da agenda.

A primeira curiosidade refere-se à tentativa do campo progressista de se reaproximar da agenda da segurança pública, reconhecendo-a como essencial para o amadurecimento da democracia brasileira. Esse movimento, encabeçado pelo governo Lula na busca pela estruturação do SUSP, também tem sido vocalizado por parlamentares de todo o Brasil, que se apropriaram da pauta e demonstram preocupações legítimas em discutir o problema para além das velhas retóricas.

Historicamente capturada pela direita, a pauta da segurança pública acabou se tornando parte da estratégia política de setores conservadores, que denunciam o problema da criminalidade, geralmente apresentam soluções populistas, mas que, quando implementadas, não têm qualquer efeito sobre a realidade.

A segunda curiosidade refere-se ao estranho consenso entre as forças políticas sobre a necessidade de uma polícia local, que atue de maneira complementar às forças estaduais e federais. A discussão que começa em São Paulo e ganha repercussão nacional tende a se popularizar em muitos municípios brasileiros, com abordagens variadas, como ocorreu com a instalação de câmeras corporais nas fardas dos agentes de segurança e a possibilidade de armamento das GCMs[4].

Mesmo na estrutura atual de segurança pública, que se mantém ao longo das últimas décadas, o sentimento de insegurança é apontado como o pior problema de São Paulo, segundo pesquisa publicada no início de 2025[5].

Resta saber se a criação de uma polícia municipal, ou seja, a legitimação de um número maior de servidores públicos para andarem armados pelas ruas e realizarem policiamento ostensivo, é, de fato, a melhor solução para alterar esse cenário, ou se a resposta está em aprimorar a estrutura vigente, por meio da atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública, ainda que com a participação dos agentes municipais, conforme propõe o SUSP.


[1] A sessão completa pode ser consultada no portal da Câmara Municipal de São Paulo, por meio do seguinte link: <https://www.youtube.com/watch?v=8w8YmjSxR2U>. Acesso em 28 fev. 2025.

[2] Segundo a Lei Municipal 10.115/1986, que criou a GCM, a corporação teria funções relativas à proteção e à vigilância dos bens, serviços e instalações municipais, além da colaboração na segurança pública.

[3] Sobre o tema, o Ministério Público de São Paulo instaurou um inquérito para investigar, dentre outros assuntos, a base de dados que a Prefeitura pretende utilizar para realização do reconhecimento facial. Para mais, ver: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/01/promotoria-abre-inquerito-para-investigar-programa-de-reconhecimento-facial-em-sp.shtml>. Acesso em 28 fev. 2025. Nessa linha, a Prefeitura também inaugurou recentemente o “Prisômetro”, painel do Smart Sampa que apresenta publicamente o número de foragidos capturados, presos em flagrante e pessoas encontradas. Para mais, ver: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/sp/prefeitura-inaugura-prisometro-em-sao-paulo-nesta-terca-25/>. Acesso em 28 fev. 2025.

[4] Segundo estudo do IBGE, a quantidade de guardas municipais armadas tem crescido em todo o Brasil, passando de 23,8% em 2019 para 30% em 2023. Para mais, ver: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/10/31/guardas-municipais-armados-brasil-ibge.htm>. Acesso em 28 fev. 2025.

[5] Para mais, ver pesquisa “Viver em São Paulo: Qualidade de Vida (Janeiro 2025)”, produzida pela Rede Nossa São Paulo. Disponível em: <https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2025/01/Pesquisa-Viver-em-SP-2025_Qualidade-de-Vida-final-2.pdf>. Acesso em 28 fev. 2025.

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