Tudo de novo no front e o Direito Administrativo sitiado

Em formulação tradicional, Schmidt-Aßmann indica que o Direito Administrativo apresenta função dupla: de um lado, ele deve proteger os direitos dos cidadãos frente à Administração Pública e, de outro lado, constituir juridicamente a Administração Pública de tal forma que ela consiga cumprir com seus deveres.[1]

Assim, justamente por situar-se nesse binômio entre liberdade e autoridade, o Direito Administrativo torna-se, naturalmente, alvo quando grupos políticos com projetos autoritários chegam ao poder: seja para desfazer instituições que representem garantias públicas; seja para modelar instrumentos de manejo autoritário do Estado.

É justamente isso que estamos observando nos Estados Unidos da América nos primeiros meses do governo Trump: uma tentativa de reformular o Direito Administrativo daquele país de forma a privilegiar os poderes imperiais do presidente da República, em detrimento de salvaguardas pensadas para proteção da liberdade.

Naquele país, pode-se dizer que o Direito Administrativo (tal qual estabelecido pós-New Deal) está sitiado. O cerco, de forma avassaladora, ataca em diversos fronts.

Front 1: independência das agências reguladoras

No primeiro front, tenta-se destruir a ideia de que agências reguladoras possam ser independentes do Presidente da República.

Em 1935, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que é constitucional a criação de agências reguladoras cujos dirigentes não podem ser demitidos pelo presidente ad nutum.[2] Mais recentemente, em 2010 e em 2020, a Suprema Corte decidiu que, como regra geral, o presidente da República teria o poder de remover os oficiais a ele subordinados. Somente haveria duas exceções a essa regra:

  1. dirigentes de agências independentes com estrutura colegiada que desempenhassem funções de assistência ao Legislativo e ao Judiciário e que alegadamente não exercessem funções executivas;[3]  e
  2. servidores do baixo escalão[4] que tenham jurisdição/autoridade administrativa limitada, mandato e não criem políticas públicas (caso dos consultores independentes encarregados de investigar e processar determinados crimes de funcionários do alto escalão).[5]

O presidente Trump parece obstinado em escancarar a fresta deixada aberta por esses casos da Suprema Corte. Em seu primeiro mês de governo, o presidente já demitiu uma comissária da National Labor Relations Board[6], responsável por implementar as leis trabalhistas americanas, e duas integrantes da Equal Employment Opportunity Comission[7], agência responsável por implementar as leis trabalhistas antidiscriminação. Em todos os casos, as leis americanas garantiriam a tais funcionários estabilidade e, portanto, tais demissões seriam ilegais.

Além disso, em seu primeiro dia de governo, o presidente editou uma ordem executiva de acordo com a qual funcionários seniores devem passar a seguir planos de performance que, se não observados, implicarão a remoção de tais funcionários. Esses planos serão aplicáveis também para as agências reguladoras (até o momento) independentes.[8] Ainda não está claro qual será o conteúdo desses planos de performance.

Como se isso tudo isso não bastasse, no dia 18/02/2025, o presidente Trump editou nova ordem executiva de acordo com a qual a interpretação da lei feita pelo presidente e pelo Attorney General será vinculante para o Poder Executivo. A mesma ordem esclarece que isso se aplica também à emissão de qualquer regulamentação pelas agências reguladoras independentes.[9]

Front 2: organização administrativa

No segundo front, atacam-se regras básicas de organização administrativa. Em seu primeiro dia de governo, o presidente Trump assinou ordem executiva determinando a criação do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE). Diferentemente dos outros 15 departamentos (órgão análogo a um ministério no Direito americano) subordinados diretamente ao presidente, o DOGE, chefiado pelo multibilionário Elon Musk, não foi criado por lei.

Na verdade, o que a ordem executiva fez foi simplesmente renomear o Serviço Digital dos Estados Unidos, originalmente criado para prestar consultoria digital a outros órgãos federais, além de criar uma entidade temporária sob o DOGE encarregada de “promover a agenda DOGE do presidente” (não é possível depreender do texto da ordem o que isso quer dizer ao certo).[10]

Ainda que a criação de um quasi-ministério pudesse ocorrer sem lei, esse novo órgão administrativo deveria, ao menos em tese, respeitar as competências que lhe foram atribuídas. Não é isso que está ocorrendo: ao invés de continuar prestando serviços digitais, o DOGE passou a funcionar como plenipotenciário do presidente, auditando todos os gastos federais e tendo acesso a diversas informações extremamente sensíveis, inclusive o sistema de pagamento de benefícios sociais do Tesouro Americano.[11] 

A inovação e criatividade na organização administrativa não está somente na criação de novos entes, mas também na sua extinção. A Agência de Desenvolvimento Internacional (USAID), incumbida de administrar a ajuda externa americana, foi desconstituída em uma velocidade impressionante.

No dia de sua posse (20/1/2025), o presidente Trump assinou ordem executiva congelando qualquer ajuda externa por 90 dias (incluindo os fundos que já tinham sido alocados por lei pelo Congresso).[12] No dia 3/2/2025, o chefe do DOGE anunciou que a USAID seria fechada. Rapidamente, o site da agência saiu do ar e seus trabalhadores foram colocados de licença.[13]

Até o momento, o destino da USAID é incerto e maior programa de ajuda externa do mundo caiu como um castelo de cartas.

Front 3: estabilidade dos servidores

No terceiro front, busca-se remeter contra a estabilidade dos servidores públicos. Em seu primeiro dia de mandato, o presidente Trump restaurou ordem executiva editada no fim de seu primeiro mandato, de acordo com a qual determinadas posições no governo federal seriam reclassificadas para a Lista F (Schedule F).

Essa lista conteria as posições cujas atribuições incluíssem a determinação, concepção ou defesa de políticas públicas. Aos cargos classificados na Schedule F, não se aplicariam mais as proteções de devido processo legal contra remoção previstas no Civil Service Rules and Regulations.[14]

A medida, confessada e abertamente, visa garantir que os servidores públicos que trabalham com políticas públicas “estejam alinhados à missão do presidente Trump de colocar os Estados Unidos em primeiro lugar[15]. Ainda não se sabe quantos cargos dentro do governo federal americano serão classificados sob a Schedule F, mas, pelas declarações públicas feitas até o momento e o obsessivo desejo de lealdade do presidente, podemos antecipar um segundo passo bastante agressivo na tentativa de colocar o serviço público federal “na linha”.

Defesas

Como visto, as hordas que circundam o Direito Administrativo nos Estados Unidos estão vindo de diversas frentes.

Isso não significa que as investidas não encontrarão resistência dentro da própria burocracia.[16] De acordo com reportes da imprensa, diversas agências – incluindo o Federal Bureau of Investigation (FBI) e o Departamento de Estado – instruíram seus funcionários a não atender aos pedidos de informação sobre suas atividades, requisitadas pelo DOGE para, alegadamente, basear uma avaliação dos recursos humanos da máquina pública federal.[17]

Por outro lado, tudo indica que os Estados Unidos não poderão contar com a SCOTUS como uma aliada na defesa da liberdade contra esse sítio. A Corte não tem hesitado em reverter precedentes que sejam considerados inadequados. Na linha de tiro, o, de longe, mais famoso precedente do Direito Público americano (o caso Chevron) também acabou não sobrevivendo.[18] Com uma divisão cada vez demarcada por linhas partidárias[19] e uma maioria assegurada por Trump ainda em seu primeiro mandato, não seria surpreendente ver a SCOTUS ao lado do presidente nas trincheiras.

Pelos seus primeiros movimentos, o presidente Trump parece agir com método, usando o seu momento de maior prestígio político – justamente o de início do governo – para estabelecer um novo padrão político para a história recente dos Estados Unidos. Se não é completamente inédito, esse movimento do presidente ataca a essência da longa história republicana daquele país.

Convivendo com a democracia há mais de dois séculos e meio, os norte-americanos foram pioneiros em transformar em instituições públicas os princípios do liberalismo político que apontavam para a criação de um Estado impessoal frente os desígnios do seu governante, lastreado pelos interesses comuns, e constrangido pelos direitos dos cidadãos.

Nesse sentido, os ataques de Trump não são esporádicos, e ferem o coração da institucionalidade republicana norte-americana. Ao atacar as agências, o presidente não busca apenas ampliar o seu poder sobre um pedaço da máquina pública. Ele quebra a noção tradicional de um aparelho social que não representa os interesses apenas do Estado, ou de um governo específico.

Nesse mesmo sentido, alterar a máquina administrativa sem respeito às reservas legais típicas daquele regime jurídico, não se trata apenas de desrespeitar uma tecnicidade legal. É antes um enfraquecimento de um dos centros da modernidade política, a repartição dos poderes que deslocou competências legais da autoridade executiva para assembleias, como o Congresso, que pudessem melhor captar a vontade do povo.

Por fim, o fortalecimento do regime de controle sobre os empregados do Estado distorce a própria ideia de serviço público, quebrando a garantia de proteção ao agente público que deveria ser autônomo para cumprir a vontade da lei e do Estado americano, jamais o designío de um único governante.

Todas essas frentes se voltam a enfraquecer a ideia fundamental de um Direito Administrativo democrático e integrado às garantias dos cidadãos: a noção de que o sentido do interesse público não é monopólio do Estado, muito menos daquele que ocasionalmente ocupa o poder executivo. O interesse público é assim o interesse da sociedade americana, o que envolve uma construção manufaturada por atores sociais gerais, que devem poder definir as suas políticas sem sofrerem represálias e pressões por parte da autoridade política da vez.

Essa foi a essência da luta republicana de um país que recusou a monarquia, e estabeleceu instituições democráticas que influenciaram todo o continente americano, exportando ideias que escreveriam um dos mais importantes capítulos da história política do mundo. Daqui, restam dois desejos: que os americanos possam frear os arroubos régios de Donald Trump; e que tais ideias, velhas e autoritárias, não sejam novamente exportadas. Em países com menos tradição democráticas, elas são capazes de produzir estragos quase incomensuráveis.


[1] SCHMIDT-AßMANN, Eberhard. Das allgemeine Verwaltungsrecht als Ordnungsidee. 2ª ed. Heidelberg: Springer, 2006, p. VII.

[2] Humphrey’s Executor v. United States, 295 U.S. 602 (1935).

[3] Esse seria justamente o caso da Federal Trade Commission quando Humphrey’s Executor foi decidido em 1935.

[4] De forma bastante resumida, inferior officers (cuja tradução livre é servidores do baixo escalão) são servidores que estão sob a direção e supervisão de superior officers (sendo estes, por sua vez, nomeados pelo Presidente e aprovados pelo Senado Federal). In: Edmond v. United States, 520 U.S. 651 (1997).

[5] Os casos nos quais essas exceções foram explicadas pela SCOTUS foram Free Enterprise Fund v. PCAOB, 561 US 477 (2010) e Seila Law LLC v. CFPB, 591 US 197 (2020).

[6] Disponível em:  https://www.theguardian.com/us-news/2025/feb/05/gwynne-wilcox-nlrb-lawsuit-trump. Acesso em: 18.Fev.2025.

[7] Disponível em: https://apnews.com/article/trump-eeoc-commissioners-firings-crackdown-civil-rights-c48b973cb32bad97e9da9e354ba627db. Acesso em: 18.Fev.2025.

[8] Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/restoring-accountability-for-career-senior-executives/. Acesso em: 18.Fev.2025.

[9] Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/02/ensuring-accountability-for-all-agencies/. Acesso em: 19.Fev.2025.

[10] Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/establishing-and-implementing-the-presidents-department-of-government-efficiency/. Acesso em: 18.Fev.2025.

[11] Disponível em: https://apnews.com/article/treasury-inspector-general-audit-doge-musk-democrats-d1e2710d0b63f54a8c1fe50fe4f23d4d. Acesso em: 18.Fev.2025.

[12] Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/reevaluating-and-realigning-united-states-foreign-aid/. Acesso em: 18.Fev.2025.

[13] Disponível em: https://www.bbc.com/news/articles/c5y6701gl60o. Acesso em: 18.Fev.2025.

[14] Disponível em: https://trumpwhitehouse.archives.gov/presidential-actions/executive-order-creating-schedule-f-excepted-service/; e https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/restoring-accountability-to-policy-influencing-positions-within-the-federal-workforce/. Acesso em: 19.Fev.2025.

[15] Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/donald-trump-executive-order-schedule-f-unions/. Acesso em: 19.Fev.2025.

[16] Movimentos de resistência burocrática de servidores são bem documentados na literatura norte-americana. V., por exemplo, Jennifer Nou, “Civil Servant Disobedience”, Public Law and Legal Theory Working Paper Series, No. 708 (2019) (detalha o conceito de “desobediência no serviço público” (civil servant disobedience), sua posição relativa aos ideais da democracia norte-americana e fatores que podem legitimar a prática).

[17] Disponível em: https://www.reuters.com/world/us/some-us-agencies-tell-workers-not-reply-musks-what-did-you-do-last-week-email-2025-02-23/. Acesso em: 11.Mar.2025

[18] O caso Chevron – Chevron U.S.A. Inc. v. NRDC, 467 US 837 (1984) – foi revertido recentemente em Loper Bright v. Raimondo, 603 US _ (2024), sob o governo de Joe Biden, mas com os votos de três ministros da Suprema Corte indicados pelo Presidente Trump em seu primeiro mandato. Ainda há muitas dúvidas sobre quão transformadora, na prática, será essa recente decisão da SCOTUS que acaba com a deferência judicial a interpretações feitas pela Administração Pública de conceitos jurídicos indeterminados. Nesse sentido, confira-se: JORDÃO, Eduardo. A Sobrevida da Deferência Pós-Chevron. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 26, n. 148, p. 171-195, nov./dez. 2024 e VERMEULE, Adrian, The Old Regime and the Loper Bright Revolution (December 9, 2024). Harvard Public Law Working Paper Forthcoming, Disponível em: https://ssrn.com/abstract=5049347 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.5049347. Acesso em: 19.Fev.2025.

[19] Para uma avaliação da polarização político-partidária da SCOTUS, v. Lee Epstein Partisanship “All the Way Down” on the U.S. Supreme Court, 51 Pepp. L. Rev. 489 (2024) (apresentando evidências de uma maior polarização na SCOTUS em manifestações de alinhamento e oposição ideológica – partisan leaning e partisan antipathy, respectivamente). Disponível em: https://digitalcommons.pepperdine.edu/plr/vol51/iss3/2. Acesso em: 11.Mar.2025

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