Lei do Bem e o uso de amortizações de ativos intangíveis gerados internamente

Com a publicação da Lei 11.638/07[1], alterada pela Lei 11.941/09[2], o Brasil iniciou o processo de convergência das normas contábeis para o padrão internacional.

Na exposição de motivos da Lei 11.638/07 consta que os objetivos das mudanças dos critérios contábeis aplicáveis no Brasil em relação à elaboração e divulgação de demonstrações financeiras eram o de “modernizar e harmonizar as disposições da lei societária em vigor com os princípios fundamentais e melhores práticas contábeis internacionais”.

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Nesse contexto, a Lei 11.941/09 alterou a legislação tributária federal e criou o chamado Regime Tributário de Transição (RTT). Referido regime estabelecia que as alterações na legislação que, eventualmente, modificassem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas, não iriam impactar a determinação do lucro real, devendo ser considerado, para fins tributários, os critérios vigentes em 31 de dezembro de 2007. Por efeito, o RTT seria aplicado até que entrasse em vigor uma lei que disciplinasse os efeitos tributários das inovações trazidas.

Posteriormente, a Lei 12.973/14[3] (fruto da conversão da MP 627/13[4]) revogou o RTT e disciplinou os efeitos tributários decorrentes da adoção dos novos critérios contábeis. Em linhas gerais, referido dispositivo legal mantém o regime de dependência parcial da contabilidade para apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSL. Inclusive, permanece vigente o art. 6º do Decreto-Lei 1.598/77[5], pelo qual o lucro real é calculado a partir do lucro líquido do exercício, ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária.

Para além destas breves considerações a respeito da convergência contábil brasileira aos padrões internacionais, para uma melhor compreensão sobre o tema, também se faz necessário examinar o regramento contábil relacionado aos ativos intangíveis constantes no Pronunciamento Técnico CPC 04 (R1) – Ativo Intangível[6].

De acordo com a regra contábil, o “ativo intangível é um ativo não monetário identificável sem substância física”. Ainda, aderente a essa primeira classificação, os itens 21 a 23 do referido CPC 04 estabelecem que o reconhecimento de um ativo como intangível exige que a entidade demonstre:

  1. Um ativo intangível deve ser reconhecido apenas se: (a) for provável que os benefícios econômicos futuros esperados atribuíveis ao ativo serão gerados em favor da entidade; e (b) o custo do ativo possa ser mensurado com confiabilidade.
  2. A entidade deve avaliar a probabilidade de geração de benefícios econômicos futuros utilizando premissas razoáveis e comprováveis que representem a melhor estimativa da administração em relação ao conjunto de condições econômicas que existirão durante a vida útil do ativo.
  3. A entidade deve utilizar seu julgamento para avaliar o grau de certeza relacionado ao fluxo de benefícios econômicos futuros atribuíveis ao uso do ativo, com base nas evidências disponíveis no momento do reconhecimento inicial, dando maior peso às evidências externas.

No que se refere ao ativo intangível gerado internamente, objeto da presenta análise, o item 51 e seguintes do CPC 04 estabelecem os critérios e requisitos necessários para o seu adequado reconhecimento. De maneira geral, referido registro acaba sendo deveras criterioso, especialmente pela dificuldade de separar seus custos de formação dos demais custos relacionados à atividade econômica como um todo.

O reconhecimento destes valores acaba se restringindo aos projetos internos em fase de pesquisa, desde que a entidade atenda aos seguintes requisitos: (i) viabilidade técnica para concluir o ativo intangível de forma que ele seja disponibilizado para uso ou venda; (ii) intenção de concluir o ativo intangível e de usá-lo ou vendê-lo; (iii) capacidade para usar ou vender o ativo intangível; (iv) forma como o ativo intangível deve gerar benefícios econômicos futuros; (v) disponibilidade de recursos técnicos, financeiros e outros recursos adequados para concluir seu desenvolvimento e usar ou vender o ativo intangível; e (vi) capacidade de mensurar com confiabilidade os gastos atribuíveis ao ativo intangível durante seu desenvolvimento[7].

Superado os requisitos previstos no CPC 04 para o reconhecimento de um ativo intangível gerado internamente, passamos a avaliar as previsões legais da Lei do Bem juntamente com a seção XVIII da Lei 12.973/14, que trata sobre a amortização dos ativos intangíveis.

Os incs. I e IV do art. 17 da Lei 11.196/05 (Lei do Bem) estabelecem o seguinte:

Art. 17. A pessoa jurídica poderá usufruir dos seguintes incentivos fiscais:

I – dedução, para efeito de apuração do lucro líquido, de valor correspondente à soma dos dispêndios realizados no período de apuração com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica classificáveis como despesas operacionais pela legislação do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ ou como pagamento na forma prevista no § 2º deste artigo; (…)

IV – amortização acelerada, mediante dedução como custo ou despesa operacional, no período de apuração em que forem efetuados, dos dispêndios relativos à aquisição de bens intangíveis, vinculados exclusivamente às atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, classificáveis no ativo diferido do beneficiário, para efeito de apuração do IRPJ; (grifo nosso)

Uma análise que merece ser feita a respeito dos dispositivos legais citados se refere a distinção entre os benefícios tributários: o primeiro deles (inc. I) trata da dedução dos dispêndios realizados com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica[8] classificáveis como despesas operacionais pela legislação do imposto sobre a renda, enquanto o segundo (inc. II) alcança a amortização acelerada de ativos intangíveis adquiridos no período.

Ademais, os arts. 41 e 42 da Lei 12.973/14 dispõe:

Art. 41. A amortização de direitos classificados no ativo não circulante intangível é considerada dedutível na determinação do lucro real, observado o disposto no inciso III do caput do art. 13 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995.

Art. 42. Poderão ser excluídos, para fins de apuração do lucro real, os gastos com desenvolvimento de inovação tecnológica referidos no inciso I do caput e no § 2º do art. 17 da Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, quando registrados no ativo não circulante intangível, no período de apuração em que forem incorridos e observado o disposto nos arts. 22 a 24 da referida Lei.

Parágrafo único. O contribuinte que utilizar o benefício referido no caput deverá adicionar ao lucro líquido, para fins de apuração do lucro real, o valor da realização do ativo intangível, inclusive por amortização, alienação ou baixa. (grifo nosso)

As tratativas da amortização dos ativos intangíveis previstas na Lei 12.973/14 trouxeram[9]: (i) regra geral (art. 41), aos dispor que após a convergência das normas contábeis, a amortização dos direitos classificados no ativo não circulante intangível será dedutível na determinação do lucro real (desde que intrinsicamente relacionado com a produção ou comercialização dos bens e serviços, nos termos do inc. III do art. 13 da Lei 9.249/95), e (ii) exceção (art. 42), referente aos ativos intangíveis gerados internamente no âmbito da Lei do Bem, dado sua remissão ao inc. I do art. 17 da lei de regência do benefício.

Por efeito, referidos dispositivos acabaram por equiparar os impactos tributários, no âmbito da Lei do Bem, dos ativos intangíveis adquiridos com os ativos intangíveis gerados internamente. Isso porque, para a primeira categoria, o inc. IV do art. 17 da Lei do Bem prevê a possibilidade de amortização acelerada/integral no período de apuração em que os dispêndios relativos à aquisição ocorrerem, enquanto para o segundo grupo de intangíveis, a Lei 12.973/14 permite a exclusão na determinação do lucro real no período em que ocorrido os dispêndios, ainda que registrados no ativo não circulante.

O potencial ponto de tensão que pode surgir desse dispositivo legal guarda relação com o benefício previsto no art. 19 da Lei do Bem, que trata sobre a exclusão adicional de 60% a 100% dos dispêndios realizados no período de apuração com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica classificáveis como despesas operacionais pela legislação do IRPJ.

Em outras palavras: para além da dedutibilidade no período de apuração, os ativos intangíveis gerados internamente, quando atendidos os critérios contábeis citados acima para tal classificação, poderiam ser imputados na base da exclusão adicional de 60% a 100% previsto no art. 19 da Lei do Bem?

Considerando o arcabouço legal que trata sobre o tema, entendo que sim. Especificamente em relação aos valores relacionados ao benefício fiscal de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, a legislação tributária deixa claro que a classificação contábil como intangível não altera sua natureza tributária, qual seja: despesa operacional pela legislação do imposto sobre a renda da pessoa jurídica.

Nesse contexto, consta no item 49 da exposição de motivos da MP 627/13 (convertida na Lei 12.973/14) que o art. 40 (atual art. 42 da Lei 12.973/14) permite a exclusão, na apuração do lucro real e no período em que incorridos, dos gastos com desenvolvimento de inovação tecnológica registrados no ativo intangível, devendo ser adicionados nos períodos seguintes, à medida da amortização do ativo. Dessa forma, se mantém o benefício fiscal previsto no inc. I e do art. 17 da Lei 11.196/05, sem que o contribuinte tenha que registrar esses gastos como despesa operacional.

Ademais, não seria lógico que determinando valor, ainda que classificado como ativo intangível, claramente recebendo o tratamento tributário de despesa operacional pela legislação do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas não computasse a base da exclusão adicional.

O art. 19 da Lei do Bem faz remissão expressa ao conteúdo do inc. I do art. 17 do mesmo dispositivo legal. Além disso, o art. 42 da Lei 12.973/14 também se refere nominalmente ao inc. I do art. 17 da Lei do Bem. Ou seja, o regramento tributário sobre a matéria é notoriamente circular em relação as tratativas que devem ser dadas aos valores que se amoldam a regra.

Sendo assim, em um contexto macro de interpretação legislativa, conforme já mencionado, é possível verificar que o legislador preservou os efeitos tributários anteriores às mudanças contábeis para as situações em que os ativos intangíveis são gerados internamente e se amoldem aos dispositivos da Lei do Bem.


[1] BRASIL. Lei nº 11.638 de 28 de dezembro de 2007. Conteúdo disponível em:

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11638.htm>. Acesso em 09 de fev. 2025.

[2] BRASIL. Lei nº 11.196 de 21 de novembro de 2005. Conteúdo disponível em:

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11941.htm>. Acesso em 09 de fev. 2025.

[3] BRASIL. Lei nº 12.973 de 13 de maio de 2014. Conteúdo disponível em:

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12973.htm>. Acesso em 09 de fev. 2025.

[4] BRASIL. Medida Provisória nº 627 de 11 de novembro de 2013. Conteúdo disponível em:

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/Mpv/mpv627.htm>. Acesso em 09 de fev. 2025.

[5] BRASIL. Decreto-lei nº 1.598 de 26 de dezembro de 1977. Conteúdo disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1598.htm>. Acesso em 09 de fev. 2025.

[6] COMITÊ DE PRONUNCIAMENTOS CONTÁBEIS. Pronunciamento Técnico CPC 04 (R1). Conteúdo disponível em: <https://s3.sa-east-1.amazonaws.com/static.cpc.aatb.com.br/Documentos/187_CPC_04_R1_rev%2021.pdf>. Acesso em 09 de fev. 2025.

[7] SANTOS, Ramon Tomazela. FAJERSZTAJN. A amortização fiscal linear de ativo intangível com prazo de duração limitado – divergências entre os critérios contábeis e fiscais após a edição da Lei nº 12.973/2014. Conteúdo disponível em:<https://www.marizadvogados.com.br/wp-content/uploads/2018/09/NArt.11-2018.pdf>. Acesso em 07 de fev. 2025. Artigo publicado no livro Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A – Controvérsias após a Lei n. 12973. Coords. Sérgio André Rocha, Vol. V. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2018, p. 77-106.

[8] Nos termos do inc. II do art. 2º do Decreto nº 5.798/06 (que regulamenta os incentivos fiscais da Lei do Bem), são consideradas pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica as seguintes atividades: (i) pesquisa básica dirigida: os trabalhos executados com o objetivo de adquirir conhecimentos quanto à compreensão de novos fenômenos, com vistas ao desenvolvimento de produtos, processos ou sistemas inovadores; (ii) pesquisa aplicada: os trabalhos executados com o objetivo de adquirir novos conhecimentos, com vistas ao desenvolvimento ou aprimoramento de produtos, processos e sistemas; (iii) desenvolvimento experimental: os trabalhos sistemáticos delineados a partir de conhecimentos pré-existentes, visando a comprovação ou demonstração da viabilidade técnica ou funcional de novos produtos, processos, sistemas e serviços ou, ainda, um evidente aperfeiçoamento dos já produzidos ou estabelecidos; (iv) tecnologia industrial básica: aquelas tais como a aferição e calibração de máquinas e equipamentos, o projeto e a confecção de instrumentos de medida específicos, a certificação de conformidade, inclusive os ensaios correspondentes, a normalização ou a documentação técnica gerada e o patenteamento do produto ou processo desenvolvido; e (v) serviços de apoio técnico: aqueles que sejam indispensáveis à implantação e à manutenção das instalações ou dos equipamentos destinados, exclusivamente, à execução de projetos de pesquisa, desenvolvimento ou inovação tecnológica, bem como à capacitação dos recursos humanos a eles dedicados.

[9] Os ativos intangíveis, como por exemplo as marcas e patentes, recebiam o tratamento tributário conferido pelo art. 58 da Lei nº 4.506/64. A Lei nº 12.973/14, de maneira geral, estendeu esse tratamento para a amortização de todos os direitos classificados como intangível. Contudo, a nova legislação, ao invés de especificar a natureza do elemento patrimonial, direcionou a dedutibilidade para a amortização, exigindo que o ativo esteja intrinsicamente relacionado com a produção ou comercialização dos bens e serviços, nos termos do inc. III do art. 13 da Lei nº 9.249/95.

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