Com denúncia contra Bolsonaro, STF terá de traçar limite entre cogitação e tentativa de golpe

Com a proximidade da apresentação de uma denúncia formal pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro pela suposta articulação de planos golpistas, o Supremo Tribunal Federal (STF) precisará se debruçar sobre os limites legais do desejo e da ação, para definir quando uma ideia golpista passa para a prática — e configura um crime contra a ordem democrática. 

“Essa linha é razoavelmente nebulosa também em outros crimes. Não existe uma fórmula matemática que claramente distingue o que é tentativa de ato preparatório”, diz Davi Tangerino, professor de Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e colunista do JOTA..

“É difícil estabelecer essa fronteira num crime que na verdade é contra um bem jurídico coletivo”, avalia Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). “E além, isso tudo no Brasil é muito novo. Temos uma legislação muito nova quando falamos de defesa do Estado Democrático de Direito”.

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Segundo a PF, um dos momentos críticos ocorreu em 7 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro, acompanhado por outros membros do núcleo jurídico da suposta organização, apresentou um decreto golpista aos comandantes das Forças Armadas e ao ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira.

Durante essa reunião, foram identificadas resistências entre os comandantes do Exército e da Aeronáutica, enquanto o Almirante Garnier, da Marinha, teria se colocado à disposição para cumprir as ordens golpistas. O plano não foi adiante devido à resistência dos outros altos comandantes. Segundo ex-chefe da Aeronáutica Carlos de Almeida Baptista Jr., em depoimento à PF, o general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército, durante a conversa, chegou a ameaçar prender Bolsonaro caso ele seguisse com o plano golpista. A redação e a apresentação do decreto poderiam ser o início de uma execução, o “tentar” do Código Penal. Há também aqui a interrupção causada por um agente externo — os comandantes que se recusaram a participar. “Se Freire Gomes adere, o golpe está pronto, instalado”, diz Tangerino. “Porque nem o Supremo nem ninguém tem força para segurar isso. Mas ele reagiu. Faltou a adesão”. 

Conforme informou Felipe Recondo, diretor de conteúdo do JOTA, aos assinantes corporativos do JOTA PRO Poder, pessoas familiarizadas com o processo acreditam que a denúncia do procurador-geral da República, Paulo Gonet, deve chegar ao STF nas próximas semanas. Assim, o recebimento da denúncia já poderia ocorrer em março, e, a partir de então, haveria a instrução da ação penal. 

A expectativa dos ministros do STF é que a denúncia não inclua a totalidade dos envolvidos na trama golpista. O fatiamento de denúncias já foi utilizado inclusive nos processos dos condenados pelo 8 de janeiro. A ideia é que, desta forma, a Corte possa julgar mais rapidamente. O ministro Gilmar Mendes, inclusive, já afirmou em entrevista neste mês que gostaria que a Corte se debruçasse sobre o caso ainda em 2025, “para evitar tumultos em 2026, com o ano eleitoral já começado”. 

Outro fator que pode acelerar o andamento do julgamento, segundo apuração do JOTA, é a usual rapidez na liberação dos casos pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele deve levar o processo para ser julgado na Turma, com apenas cinco magistrados, e não no plenário. A 1ª Turma do STF, em que o inquérito e depois a ação penal serão julgados, é composta pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Luiz Fux e Flávio Dino. 

No entanto, segundo análise do JOTA, é difícil saber se a expectativa de Mendes vai ser cumprida – mas é possível que seja. O caminhar do julgamento depende de procedimentos como intimações e prazos legais, e também de quantas e quais pessoas serão denunciadas juntamente com o ex-presidente.

Nesse percurso, os ministros do STF terão o desafio de determinar quando intenções e articulações políticas se traduzem em ações concretas capazes de configurar crimes previstos no Código Penal, como tentativa de golpe e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. A resposta pode estar não só no que foi colocado em prática por alguém — mas no que outros deixaram de fazer.

Quando um golpe se torna golpe?

A diferença entre cogitação, preparação, execução e consumação é o primeiro ponto para responder a essa pergunta, segundo o professor Thiago Bottino, da FGV Direito Rio. Na linha do tempo de um crime, o primeiro passo, cogitar ou intencionar cometê-lo, não é algo punível. Mas o próximo movimento, de fazer preparativos, é passível de punição.

“Os atos preparatórios puníveis são exceções, aqueles que o legislador apontou como crimes”, diz Bottino. “Por exemplo, há o crime de fazer moeda falsa e outro crime que é possuir uma máquina capaz de fazer isso. É só um ato preparatório, não houve execução. Mas o legislador achou que seria importante criminalizar a posse do apetrecho”. O mesmo vale para outros exemplos, como o crime de terrorismo e o crime de realizar atos preparatórios de terrorismo. 

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O segundo ponto é considerar a caracterização no Código Penal Brasileiro, que, no artigo 359-L,  criminaliza, com pena de 4 a 8 anos, “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito”. Assim, não é necessário que o golpe seja consumado para que atos preparatórios sejam considerados crimes, afirmam especialistas ouvidos pelo JOTA. (Aliás, se golpes forem bem-sucedidos, há reversão do Estado Democrático de Direito, e consequentemente, deturpa-se a discussão sobre o que é um crime ou não.)

“Essa redação aqui não fala em realizar ato preparatório de golpe, não fala em associar-se para fazer algo no futuro. Mas ela fala de ‘tentar’, e fala de usar ‘violência ou grave ameaça’”, aponta Bottino. Isto é, o texto prevê que, após atos preparatórios, há o início de uma execução, com uso de violência. Além disso, “há o sentido de tentar mais adequado para o caso, que é o que consta no Código Penal, de tentar e ser interrompido por motivos externos”, diz Tangerino, da UERJ. 

“É difícil prever o que vai ser apontado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, mas podemos ter uma ideia pelo relatório da PF”, diz Pierpaolo Bottini. O relatório da Polícia Federal sobre o caso sugere que Bolsonaro e aliados realizaram uma série de atos que poderiam configurar a direção de um golpe, e foram frustrados por ações de terceiros. Entre as evidências citadas estão reuniões que abordaram a possibilidade de uso das Forças Armadas para legitimar a empreitada. De acordo com o relatório, os encontros tiveram “a finalidade de cobrar dos ministros de Estado presentes a promoção e a difusão de desinformações quanto à lisura do sistema de votação”. 

Esses acontecimentos podem ser considerados atos preparatórios por alguns. Mas outras ações ainda podem indicar mais claramente o início de uma execução, uma tentativa com uso de violência, e interrupção por fatores externos – o que, sim, está tipificado, para os professores ouvidos. E neste ponto, a reunião com os chefes das Forças Armadas pode ser fundamental para traçar a linha entre cogitação e início da tentativa de golpe.

Segundo o relatório da PF, uma minuta de decreto que foi apresentada nessas reuniões foi revisada diversas vezes por Jair Bolsonaro e seus aliados, como um mecanismo jurídico para justificar intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e impedir a posse do governo eleito. O documento incluía “considerandos” que alegavam supostas interferências do Poder Judiciário no Executivo e sugeria a decretação de um estado de defesa no TSE, criando uma Comissão de Regularidade Eleitoral para investigar o processo de 2022.

Outro plano apontado pela PF também traz o componente da violência – outro elemento para a tipificação do crime. O relatório do órgão descreve um plano que incluía ações violentas contra líderes do governo eleito e do Judiciário. A operação denominada “Punhal Verde Amarelo” previa o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes. O ápice da operação teria ocorrido em 15 de dezembro de 2022, quando uma equipe de pelo menos seis integrantes de Forças Especiais monitorava o cotidiano e os itinerários dessas autoridades. 

O plano também trazia métodos como uso de explosivos e envenenamento, como uma tentativa de criar caos suficiente para desencadear o golpe de Estado. O relatório da PF detalha que essas ações incluíram monitoramento contínuo das movimentações de Alexandre de Moraes, com uso de técnicas de mensagens criptografadas, com o objetivo de subsidiar a execução de um plano de eliminação física caso o golpe fosse consumado. “Esse parece ser um caminho meio paralelo à pressão feita às Forças Armadas”, diz Tangerino. “Talvez haja dois núcleos diferentes de tentativa de golpe, mas ambos ligados ao Bolsonaro”. 

Provas

“É como se esse tipo de crime fosse um verdadeiro quebra-cabeça”, diz Alessandro Soares, professor de Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Há uma articulação subjetiva e objetiva, um grau de realismo político, o contexto de determinado momento – e, como sempre, é preciso provar tudo isso, todas essas peças”.

Para Tangerino, da UERJ, ainda falta a “amarração delas para o Bolsonaro”. Isso não impediria uma eventual condenação, no entanto. “Temos precedentes para isso no Supremo. Para condenar o Zé Dirceu, parte-se da ideia de que ‘não tinha como ter acontecido sem a ciência dele’. Se esse parâmetro for mantido, o mesmo vale aqui”. José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil nos dois primeiros governos de Lula, foi condenado pelo STF em duas ocasiões diferentes, no Mensalão e na Operação Lava Jato. Na primeira delas, o conceito do domínio do fato foi utilizado, central para sustentar sua responsabilidade no esquema, mesmo sem provas diretas de sua participação nos atos específicos de corrupção. 

Segundo o relatório da PF, uma série de itens que compõem o conjunto probatório contra Jair Bolsonaro e seus aliados foram encontrados, apreendidos ou identificados durante a investigação, muitos a partir da delação de Mauro Cid, ex-assessor do ex-presidente.  A minuta do decreto golpista, por exemplo, foi encontrada na residência de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública. O documento estava em formato físico e apresentava detalhes do plano para decretar um estado de defesa. Já os planos vinculados à Operação “Punhal Verde Amarelo” foram revelados em mensagens criptografadas trocadas entre membros das Forças Armadas e aliados políticos. Depoimentos e registros de reuniões confirmaram a discussão sobre a mobilização de recursos humanos e logísticos para executar o plano.

Além disso, mensagens de WhatsApp e Telegram associadas ao núcleo político de Bolsonaro contêm provas de que materiais de propaganda antidemocrática foram produzidos e disseminados estrategicamente, diz a PF. Esses materiais incentivaram manifestações em frente a quartéis após as eleições de 2022 e promoviam narrativas falsas sobre fraude eleitoral, segundo o relatório.

Além da minuta do decreto, a investigação apreendeu uma série de documentos, armazenados em dispositivos usados por Cid e em servidores eletrônicos de assessores do Planalto, que reforçam a narrativa de preparação para uma ruptura institucional. Entre eles estão rascunhos de discursos, relatórios sobre possíveis consequências do golpe e registros de financiamento de eventos antidemocráticos.

O relatório ainda descreve uma organização com dezenas de envolvidos, incluindo militares, políticos, influenciadores digitais e membros da segurança institucional. Cada grupo tinha uma função definida e agia em coordenação com o então presidente. Esses pontos da investigação da PF podem ajudar em outro aspecto essencial, segundo Bottino: individualizar as condutas. “Se são provas, são provas do comportamento de quem? Eu posso acusar 10 pessoas, mas, durante o julgamento verificar que só parte delas, ou mesmo nenhuma, estava associada a elas”. Um ponto do relatório da PF que pode pesar contra Bolsonaro é o de que ele, pessoalmente, teria ajustado a minuta do decreto golpista. A evidência disso estaria em mensagens trocadas entre Cid e outros integrantes do núcleo. 

O terceiro e último passo, segundo Bottino, é, tendo as provas e as autorias, “é fazer a avaliação sobre se essas ações provadas de fato tinham a viabilidade e a intenção de abolir o Estado Democrático de Direito”. “Quem invadiu o Capitólio, nos Estados Unidos, queria abolir? Ou sabiam que não iam conseguir e era um protesto? As pessoas queriam “apenas” invadir e depredar um prédio no 8 de janeiro em Brasília? Ou havia planos de fazer algo a mais? São discussões que vão ter de ser feitas. O papel do Supremo vai ser de decidir uma ação que não tem paralelo”. 

Defesa de Jair Bolsonaro

Após ser indiciado, o ex-presidente Jair Bolsonaro publicou uma mensagem em suas redes sociais no dia 25 de novembro, que indica uma possível linha de defesa. Na postagem, Bolsonaro repetiu que, durante seu governo, sempre atuou dentro das “quatro linhas da Constituição” e que nunca incentivou ou participou de qualquer movimento que visasse desrespeitar a ordem democrática. Ele também disse que as reuniões e discussões realizadas com membros de seu governo tinham o objetivo de garantir a transparência e a segurança do processo eleitoral.

Em uma postagem anterior ao indiciamento, o ex-presidente compartilhou um texto do procurador de Justiça Cesar Dario Mariano, do Ministério Público de São Paulo. Nela, ele argumentava que a elaboração de uma minuta de decreto golpista não configuraria crime, já que o documento não foi executado. Além disso, ele mencionou que, à época, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva ainda não havia tomado posse, o que tornaria o governo “não legitimamente constituído”.

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Esses ensaios de defesa feitos por Bolsonaro baseiam-se no conceito de “crime impossível”, previsto no Código Penal, que se refere a atos ilícitos que não poderiam se consumar devido à ineficácia do meio ou impropriedade do objeto, explica Bottino. “Mas se os atos tiverem 1% de chance de atingir seus objetivos, não é crime impossível, é crime punível”. Assim, a posição do então presidente, seu contato com outras pessoas com poder, como generais, e o uso de financiamento de aliados, por exemplo, como indicado pelo relatório da PF, pode indicar que os atos tinham chance de sucesso – e, portanto, não configurariam, nessa interpretação, um “crime impossível”. 

E agora, Jair?

“Como qualquer crime, há conjunto de artimanhas para encobri-lo, e isso passa pela atuação em zonas nebulosas”, diz Soares, do Mackenzie. “Mas há também um contexto, um cenário de afirmações desde antes do início do mandato, todo um enredo que leva a uma probabilidade alta de penalidade”. Aliados de Bolsonaro têm pressionado por anistia, “que depende de uma lei do Congresso e aprovada pelo presidente, um procedimento que demora e precisa de uma boa vontade política”, segundo Pierpaolo Bottini. 

De acordo com levantamento do Paraná Pesquisas publicado neste mês, a sociedade brasileira está dividida sobre o papel do ex-presidente nos eventos investigados. Enquanto para 45,6% Bolsonaro tentou dar um golpe, 44,4% não acreditam nisso. Os números espelham a polarização política que mantém o cenário para a corrida presidencial do ano que vem nebuloso. Bolsonaro está inelegível por determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por um período de 8 anos, devido à prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante as eleições de 2022. Mas ele ainda aparece tecnicamente empatado com o presidente Lula nas intenções de voto divulgadas também pelo Paraná Pesquisas neste mês. Isso significa que ele tem capital político para negociar apoio a um presidenciável – que, se vitorioso, poderia tentar retribuir o favor com um indulto. 

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