Uma série de reportagens sobre as filas de atendimento no Sistema Único de Saúde trouxe à tona um problema grave. Entre diversos relatos, como o da mãe de Nova Iguaçu que há mais de cinco anos aguarda atendimento psicológico e fonoaudiológico para seu filho com transtorno do espectro autista, o jornal apurou que, entre 2009 e 2024, o prazo médio de espera para consulta no SUS passou de 18 para 57,4 dias; e o para cirurgia, de 10,2 para 52,2 dias. Não à toa, a saúde é apontada ano após ano como uma das maiores preocupações do brasileiro, à frente, inclusive, do desemprego e da segurança pública.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Para mitigar esse problema, o governo federal publicou na última sexta-feira, dia 30 de maio, a Medida Provisória 1.301/2025, a qual institui o Programa Agora Tem Especialistas. Claramente inspirado no Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), criado pela Lei 12.688/2012, o Agora Tem Especialistas prevê que hospitais privados, com ou sem fins lucrativos, poderão utilizar créditos financeiros decorrentes do atendimentos médico-hospitalares a usuários do SUS para compensar tributos federais, inscritos ou não em dívida ativa da União (art. 5º). O limite anual de renúncia fiscal é de até dois bilhões de reais (art. 4º, §2º) e o Programa está previsto para durar até 2030 (art. 6º).
Diversos aspectos do Programa foram remetidos à regulamentação infralegal. Ao Ministério da Saúde, por exemplo, caberá estabelecer as especialidades a serem preferencialmente ofertadas, além dos procedimentos operacionais e o valor de atribuição dos atendimentos médico-hospitalares. Normativo conjunto das Pastas da Saúde e da Fazenda, por sua vez, disporá sobre as regras de exclusão do Programa (art. 3º, p.u.) e de gradação da multa aplicada às entidades hospitalares que estiverem em desacordo com a legislação vigente (art. 6º, §1º, I).
No que parece ser uma tentativa de evitar questionamentos decorrentes do art. 195, §3º da CRFB, a MP prevê que a pessoa jurídica em débito com a seguridade social deverá estar regularizada como condição prévia para o deferimento de adesão ao Programa Agora Tem Especialistas (art. 3º). Embora o conceito “estar regularizado” refuja aos domínios do Direito Tributário, presume-se que a norma dialoga com a exigência de que adesão ao Programa exigirá o prévio registro da oferta de atendimentos médico-hospitalares em sistema eletrônico de informações mantido pelo Ministério da Saúde (art. 4º, §1º, III); a desistência de impugnações e recursos administrativos que tenham por objeto os créditos tributários a serem compensados e a renúncia a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem as referidas impugnações ou recursos (art. 4º, §1º, IV); e a renúncia a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem ações judiciais ou recursos que tenham por objeto quaisquer créditos tributários a serem compensados, por meio de requerimento de extinção do respectivo processo com resolução de mérito, nos termos do disposto no art. 487, caput, inciso III, do Código de Processo Civil (art. 4º, §1º, V).
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Leitura atenta da MP 1.301/2025 evidencia que o êxito do Programa dependerá, em grande medida, de sistema de dados públicos a ser criado pelo Ministério da Saúde, que exibirá o tempo médio de espera para a realização de consultas, procedimentos, exames e demais ações e serviços da atenção especializada à saúde (art.16, que acrescenta o art. 47-A à Lei 8.080/1990). O sistema deverá garantir a interoperabilidade de dados entre entes federativos, permitindo que as secretarias estaduais, distrital e municipais de saúde registrem numa base comum os pedidos de habilitação, credenciamento e majoração de valores relacionados à prestação dos serviços à saúde. Idealmente, essa ferramenta servirá como pontapé inicial para criação de um sistema público-privado de registro médico, que acompanhe toda a jornada do paciente, sem o qual qualquer tentativa de integração entre a saúde pública e privada se tornará dificultosa, como atualmente se observa no âmbito do sandbox regulatório instituído pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS no âmbito da Consulta Pública nº 151/2024, destinado à criação de um plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames.
Ainda em relação à saúde suplementar, a MP 1.301/2025 prevê que a obrigação de ressarcimento dos planos de saúde por atendimentos prestados a seus usuários pelo SUS poderá ser convertida em prestação de serviços, mediante celebração de termo de compromisso conforme condições estabelecidas em ato conjunto da Advocacia-Geral da União e do Ministério da Saúde (art. 18, que insere o art. 32, §10 na Lei 9.656/1998). A norma, ao que parece, poderá ser de grande utilidade para as operadoras de saúde classificadas como filantrópicas, cooperativas médica e odontológica, e medicina e odontologia de grupo (RN 531/2022, art. 6º), mas terá diminuta aplicação às seguradoras, cujo modelo de negócio se baseia no reembolso de despesas; e às autogestões, salvo se, nesse caso, a legislação seja flexibilizada para admitir que as entidades possam atender pessoas não inseridas no rol de beneficiário (RN 137/2006, art. 2º).
A utilização da oferta ociosa dos serviços privados para desafogar o sistema público de saúde não constitui propriamente uma novidade. Nos anos anteriores à pandemia de COVID, por exemplo, espalharam-se pelo país os chamados “Corujões da Saúde”, nos quais Estados e Municípios encaminhavam pacientes do SUS para hospitais particulares para a realização de exames e consultas em horários de menor demanda, geralmente após as 20 horas. Contudo, diferentemente do que ora se propõe no Programa Agora Tem Especialistas, os Corujões previam o pagamento desses serviços em dinheiro – e não em créditos para compensação tributária.
Embora menos extravagante do que outras propostas veiculadas na imprensa nos últimos meses, como a criação de um plano de saúde popular a cem reais, é difícil antever se o Programa Agora Tem Especialistas será exitoso no seu propósito de diminuir as filas de atendimento do SUS. Entre outras medidas, para o sucesso da iniciativa, é necessário que o Ministério da Saúde demonstre agilidade para editar os atos regulamentares infralegais exigidos pela MP 1.301/2025 e para criar o sistema de dados públicos interoperável entre as diversas esferas políticas. De todo modo, a medida tem um grande mérito, qual seja exorcizar o dogma que o Estado prescinde da iniciativa privada para resolver os graves problemas da saúde pública no país.