A nova Lei de concessões e a oportunidade de regulamentação dos Disputes Boards

Após três décadas de vigência da Lei n.º 8.987/1995, que instituiu o regime de concessões públicas, e duas décadas desde a promulgação da Lei n.º 11.079/2004, que regulamentou as Parcerias Público-Privadas (PPPs), a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n.º 7.063/2017. Embora sua ementa indique como objetivo principal a alteração da Lei n.º 11.079/2004 — especificamente para reduzir o valor mínimo dos contratos de PPPs firmados por Estados, Distrito Federal e Municípios —, o texto legislativo vai além: propõe uma ampla modernização da legislação aplicável às concessões de serviços públicos.

A proposta representa um avanço significativo na atualização do regime jurídico das concessões e das PPPs, consolidando-se como um verdadeiro novo marco legal para o setor de infraestrutura no Brasil.

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Não há dúvida quanto à relevância das legislações em vigor para a consolidação de uma política pública voltada para a abertura dos serviços e dos projetos públicos ao investimento privado. No entanto, é igualmente certo que tais normativos vêm se mostrando, progressivamente, insuficientes para suplantar os desafios trazidos pelas inovações regulatórias e contratuais, tanto sob a ótica dos concessionários e parceiros privados quanto da própria Administração Pública.

No atual contexto de retomada do investimento privado, essa limitação normativa se agrava no setor de infraestrutura. Segundo dados da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), o Brasil registrou, em 2024, um volume de R$ 259 bilhões em investimentos no setor — o maior montante da última década, em valores atualizados -— o que representa 2,2% do Produto Interno Bruto (PIB) projetado para o ano. Para 2025, a expectativa é de crescimento real de 11%, reforçando o início de um novo ciclo de expansão.

Nesse contexto, o principal objetivo das alterações aprovadas pela Câmara dos Deputados consiste na introdução de “práticas que hoje já são adotadas por poderes concedentes e por reguladores em todo o país, mas que geram dúvidas e insegurança jurídica em alguns contratos”. Como destacou o Deputado Federal Arnaldo Jardim (Cidadania — SP), relator do PL, a intenção é transformar o contrato em um instrumento “vivo”, ou seja, adaptável às mudanças, mas capaz de preservar o equilíbrio contratual durante o tempo.

Entre as inovações relevantes na proposta legislativa, destaca-se a inclusão do art. 23-A, que dispõe sobre a possibilidade de utilização dos meios alternativos de prevenção e resolução de conflitos, como a arbitragem e os comitês de resolução de disputas (dispute boards) nas concessões públicas.

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Em complemento, os múltiplos desafios para a concretização de obras públicas e a complexidade das demandas originadas nos diferentes setores de infraestrutura deflagram hipótese ainda mais sensível de litigiosidade e sugerem que ocorram abordagens alternativas que busquem efetividade, celeridade e transparência, a fim de não só se resguardar o interesse público, mas também de se manterem os incentivos adequados aos empreendedores e aos investidores envolvidos.

Diante dessa perspectiva, cabe apresentar que a Administração Pública já vem se mostrando mais aberta à utilização de métodos alternativos de conflitos como uma forma de redução da litigiosidade. É dizer, ainda em 1996, a Lei n.º 9.307 já estabelecia a possibilidade de uso da arbitragem pelos órgãos públicos para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Posteriormente, a Lei n.º 13.140/15 estabeleceu a possibilidade de criação de câmaras públicas de prevenção e resolução administrativa de conflitos, inclusive para prevenção e resolução de embates relacionadas ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados com particulares.

As inovações legislativas listadas acima foram reforçadas pela Lei de Relicitações (Lei n.º 13.448/17), pelas últimas alterações da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei n.º 13.655/18) e, finalmente, pela Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei n.º 14.133/21).

A título ilustrativo, a Lei de Relicitações aponta a possibilidade de submissão das questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente à arbitragem ou a outro mecanismo privado de resolução de conflitos. Isto é, durante o processo de relicitação, poderá ser firmado aditivo contratual que estabeleça o uso de métodos alternativos de conflitos para definição dos valores finais a serem transferidos pela Administração Pública ou pelo particular quando se operar a relicitação.

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A Lei n.º 14.133/21 dedica um capítulo inteiro para a previsão de uso de meios alternativos de resolução de controvérsias em licitações e contratos administrativos. O artigo 151, do referido diploma legal, estabelece o uso de meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de disputas e a arbitragem.

Nesse sentido, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), com base na Lei n.º 14.026/20, aprovou a Resolução n.º 209/2024, com o objetivo de estabelecer os procedimentos de mediação regulatória para a resolução dos conflitos entre os titulares, as agências reguladoras e os prestadores de serviços públicos de saneamento básico, em especial na resolução de controvérsias que envolvam a interpretação e a aplicação das normas de referência da ANA sobre o saneamento básico.

A edição da Resolução foi precedida da Nota Técnica n.º 3/2023/COGER/SSB, na qual a Agência reconheceu a necessidade de regulamentação específica para enfrentar o problema regulatório identificado como o “aumento do custo de transação dos atores do setor de saneamento básico, em decorrência da judicialização, causando prejuízos à sociedade”. De acordo com o art. 11 do normativo, o exame de admissibilidade da mediação observará como critérios: i) a competência legal da agência; ii) a pertinência temática do requerimento com o saneamento básico; iii) a viabilidade da solução da controvérsia por mediação, observando a Lei de Mediação; e iv) a relevância socioambiental e/ou econômica para a população, para a região ou para o país.

O citado normativo é relevante para o delineamento geral da consensualidade no setor de saneamento público, mas, apesar do avanço da adoção de uma solução alternativa para resolução de conflitos, a regulamentação não conseguiu avançar quanto à utilização de instrumentos voltados para os conflitos relacionados à modelagem e à execução contratual.

Entre os métodos de alternativos de solução de potenciais conflitos, compreende-se que os Dispute Boards ou Comitês de Resolução de Disputas são importantes ferramentas para os projetos de infraestrutura.

Historicamente, o primeiro contrato de obras de infraestrutura que estabeleceu uma previsão expressa do uso dos Dispute Boards foi o de construção do túnel Eisenhower. Diante de complexas disputas instauradas entre os envolvidos, instituiu-se um comitê de experts para aconselhamento das partes. A introdução do mecanismo foi capaz de evitar uma resolução prematura do contrato, o que foi visto como um grande sucesso pela comunidade do setor.

Na mesma linha, a partir de 1990, o Banco Mundial passou a indicar a necessidade de utilização dos comitês de disputa em todas as construções financiadas com valores provenientes da mencionada instituição. Com isso, o uso de tal alternativa de solução de litígios ganhou ainda mais relevância no contexto internacional.

Com a evolução do tema na esfera internacional, foram introduzidos debates no Brasil sobre a possibilidade de uso dos Dispute Boards. Já no ano de 2020, o Tribunal de Contas da União se debruçou sobre o procedimento de desestatização promovido pela ANTT para outorga dos trechos das rodovias federais BR-163/MT/PA e BR-230/PA, no âmbito do processo n.º 018.901/2020-4. A referida Agência Reguladora havia previsto instauração e funcionamento de Comitê de Resolução de Conflitos para resolução de eventuais disputas travadas nos contratos de concessão a serem pactuados para os trechos rodoviários. Os Ministros da Corte de Contas entenderam que não existiria nenhum obstáculo legal para introdução da ferramenta nos contratos. Entretanto, tal ação só poderia ser finalizada com a devida regulamentação do tema no âmbito da agência, dado que, no momento de análise do caso, não havia qualquer normativo expresso que tratasse sobre o uso dos Dispute Boards.

No ano de 2023, novamente, o Tribunal de Contas da União determinou que a ANTT priorizasse a regulamentação do Comitê de Resolução de Conflitos (Dispute Board) no escopo das concessões rodoviárias. A decisão foi tomada no âmbito do Acórdão n.º 1142/2023-Plenário de relatoria do Ministro Antonio Anastasia. Pontuou-se que, ainda que houvesse uma estipulação anterior da Corte, a Agência Reguladora continuava introduzindo o uso da citada ferramenta em contratos de concessão sem a devida regulamentação da matéria.

Com base nesse cenário, em 2024, a ANTT publicou a Resolução n.º 6.040, que versa sobre as regras procedimentais para uso da autocomposição e da arbitragem no âmbito da agência, a fim de incluir a previsão dos Comitês de Prevenção e Solução de disputas. Dessa forma, deve haver a constituição de Dispute Boards nos seguintes casos: i) execução de serviços e obras; ii) adequação de obras e serviços aos parâmetros regulatórios e contratuais; iii) avaliação de ativos e cálculo de indenizações; e iv) ocorrência de eventos que impactem o cumprimento das disposições contratuais.

O normativo ainda estabelece as questões que não poderão ser objeto de deliberação do Comitê de Prevenção e Solução de disputas na ANTT. São citadas as seguintes demandas: i) divergências que envolvam questões de cunho estritamente jurídico; ii) discussões relacionadas à validade e à legitimidade dos atos praticados pela Agência, no exercício das funções regulatórias; e iii) legalidade de normas regulatórias.

Compreende-se a preocupação decorrente das exclusões empenhadas pelo normativo, uma vez que parece sensível delegar aos Dispute Boards a competência de discorrer sobre a legalidade dos atos das autoridades públicas envolvidas. Porém, é necessário ter o cuidado de não se esvaziar os benefícios intrínsecos à constituição de posicionamento técnico-jurídico pelos Comitês que acompanharão os assuntos de interesse da Agência ainda no curso da gestão dos contratos de concessão. A restrição ao debate sobre questões de direito, por exemplo, pode servir para impulsionar a litigiosidade contratual, evitando a economia e a eficiência intrínsecas ao instituto.

O normativo publicado pela ANTT, além de ser um marco para a institucionalização dos Dispute Boards, reforça a recepção da consensualidade no âmbito da Administração Pública. Entretanto, a regulamentação, até o momento, por uma única agência reguladora impede a disseminação do instituto no setor de infraestrutura.

Em que pese ser discutível a necessidade de regulamentação do instituto, não se discute que o enforcement legal seja um incentivo significativo para materialização da aderência dos setores regulados aos Dispute Boards.

E, nesse particular, convém destacar a oportunidade de o Projeto de Lei n.º 7.063/2017 endereçar a necessidade de instrumentos outros de regulamentação que sejam aplicados de forma transversal nos demais órgãos reguladores ou que integrem os Poderes concedentes.

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