É possível que um município seja obrigado a realizar concurso público para contratação de médicos e equipe de enfermagem para um hospital municipal, uma unidade de pronto atendimento ou uma unidade básica de saúde em vez de celebrar contrato de gestão para que uma organização social gerencie a unidade?
A resposta do STF foi dada por meio da tese de repercussão geral relativa ao Tema 698, segundo a qual, nos serviços públicos de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais e OSCIPs.[1]
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Apesar da clareza e especificidade da decisão do Supremo Tribunal Federal, ainda persistem dúvidas sobre a aplicação de restrições normativas relacionadas à participação privada complementar no Sistema Único de Saúde (SUS), referida no parágrafo primeiro do art. 199 da CF/88.[2] Essas dúvidas dizem respeito ao procedimento a ser adotado pelo Poder Público antes de celebrar contratos de gestão com organizações sociais no setor de saúde.
Isso ocorre porque a regulamentação da complementaridade prevista no parágrafo primeiro do artigo 199 da CF/88, dada pelo artigo 24 da Lei Orgânica da Saúde e por sua disciplina infralegal, traz alguns requisitos específicos a serem preenchidos para que reste autorizada a celebração de ajustes com entidades privadas para a prestação de serviços públicos de saúde.
Aqui reside o tema central para a compreensão da complementaridade no SUS. É dizer, os requisitos da complementaridade trazidos pela Lei n. 8.080/90 referem-se à hipótese distinta daquela materializada pelos contratos de gestão com organizações sociais.
A Lei Orgânica da Saúde e sua regulamentação: a complementaridade externa ou de serviços
Logo após a promulgação da CF/88, a Lei Orgânica da Saúde, regulamentou o parágrafo primeiro do artigo 199 da Constituição, trazendo um condicionamento à contratação de serviços privados em caráter complementar ao SUS. Trata-se da “insuficiência de disponibilidades do SUS para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área”. Veja-se:
Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.
Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.
Como se percebe, a LOS trouxe uma restrição em sua hipótese legal (“insuficiência da disponibilidade”) para fins de incidência de seu mandamento (“recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada”).
Dessa análise, pode-se concluir sem qualquer margem de dúvida, que uma vez configurada no mundo fático a hipótese de insuficiência da disponibilidade para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, incide no mundo jurídico o mandamento segundo o qual é possível que o Sistema Único de Saúde recorra aos serviços ofertados pela iniciativa privada.
A dicção legal é clara. A Lei 8.080/90 condiciona a hipótese de contratação pelo SUS de “serviços ofertados pela iniciativa privada”. Se os serviços são ofertados pela inciativa privada, eles logicamente são prestados em sua própria estrutura privada, cuja estrutura passa, por meio do contrato de direito público ou do convênio, a atender parcial ou integralmente pacientes do SUS ampliando sua capacidade instalada.
Essa interpretação é reforçada pela Portaria de Consolidação MS 1/2017, resultado da conversão da Portaria MS 2.567/16, que revogou a Portaria 1.034/10, assim dispõe:
Art. 130. Nas hipóteses em que a oferta de ações e serviços de saúde pública próprios forem insuficientes e comprovada a impossibilidade de ampliação para garantir a cobertura assistencial à população de um determinado território, o gestor competente poderá recorrer aos serviços de saúde ofertados pela iniciativa privada.
Resta evidenciado, como se percebe, que a regulamentação legal e infralegal da complementaridade na saúde corresponde à contratação de serviços privados de assistência à saúde pelo SUS. Essa contratação pode ocorrer apenas quando as disponibilidades do SUS forem insuficientes para garantia da cobertura assistencial (Lei 8.080/90) e desde que comprovada a impossibilidade de ampliação dos serviços públicos de saúde (atual Portaria de Consolidação 01/17).
Complementaridade interna ou de gestão: os contratos de gestão com organizações sociais
O contrato de gestão corresponde ao vínculo por meio do qual uma entidade privada qualificada como organização social recebe o repasse de recursos financeiros, humanos e materiais para gerir estruturas públicas em setores como o de saúde.[3]
Em vez de agregar serviços privados ao SUS de modo a complementá-lo, o contrato de gestão com organizações sociais instrumentaliza o particular assumir a gestão de um serviço público, financiado com recursos públicos, prestado em estrutura pública, para usuários 100% públicos e com observância de todos os princípios do serviço público.
Em tal hipótese, o poder público não recorre aos serviços privados ofertados pela iniciativa privada, como se refere textualmente o artigo 24 da Lei 8.080/90, a antiga Portaria 1.034/10, e a atual Portaria de Consolidação 01/17, mas celebra com entidade privada e sem fins lucrativos um modelo de ajuste por meio do qual atribui a ela bens, equipamentos, recursos e, por vezes, pessoal para a gestão de uma unidade pública de saúde.
Daí que a participação das organizações sociais no SUS por meio de contratos de gestão materializa “complementaridade interna ou de gestão”, a qual não atrai a incidência do artigo 24 da Lei 8.080/90. Neste caso não são agregados serviços ao SUS, mas adotado modelo de gestão tida por mais eficiente, conforme reconheceu o STF na ADI 1.923. [4]
Assim, as condicionantes de “insuficiência dos serviços próprios’ e ‘indisponibilidade de sua ampliação” logicamente não se aplicam à celebração de contratos de gestão com organizações sociais. Afinal, por meio deles a Administração Pública busca intensificar a prestação de seus “próprios serviços”, que continuam integrando a própria capacidade instalada estatal. Por essa ordem de ideias, o contrato de gestão configura hipótese de complementaridade interna ou de gestão não submetida aos condicionantes da Lei 8.080/90 e de sua regulamentação.
Conclusões
A decisão administrativa pela adoção do modelo de gestão por organizações sociais deve observar o procedimento previsto na lei federal e nas legislações locais que regem os contratos de gestão, atendendo aos requisitos contratuais, financeiros e orçamentários cabíveis. O ônus argumentativo do gestor público é o de sempre: demonstrar tecnicamente a racionalidade da medida adotada — nem mais, nem menos.
É nesse ponto que entra a LINDB. Seu artigo 20 proíbe decisões públicas baseadas apenas em valores jurídicos abstratos, exigindo motivação compatível com os efeitos concretos esperados. Isso vale tanto para a escolha de um modelo de gestão indireta quanto para sua revogação. A opção pela celebração de contrato de gestão não exige, portanto, um ritual de justificação extraordinária. Tampouco depende da demonstração de que todas as alternativas — como concurso público ou ampliação direta — são inviáveis. Exigir isso seria impor um modelo único de gestão à revelia da Constituição, que nunca o fez.
Não há — nem no texto constitucional, nem na regulamentação infraconstitucional — qualquer regra que determine a preferência abstrata pela gestão direta dos serviços de saúde. A ideia de que a atuação estatal deve ser exaurida antes de se admitir a celebração de um contrato de gestão parte de uma leitura equivocada do conceito de complementaridade. A Constituição fala em complementaridade, sim — mas não em exclusividade, nem em hierarquia entre modelos legítimos de atuação estatal.
Em síntese, o contrato de gestão com organizações sociais configura uma forma de participação complementar no SUS, mas distinta daquela regulada pela Lei 8.080/90. Trata-se de uma complementaridade interna, voltada à modernização da atuação estatal em suas próprias estruturas, e não da compra de serviços externos. Por isso mesmo, não se submete aos requisitos legais e infralegais aplicáveis à contratação de serviços privados preexistentes.
Reconhecer essa distinção é essencial para garantir segurança jurídica, respeitar a discricionariedade técnica do gestor público e permitir que o SUS continue a se desenvolver com responsabilidade, qualidade e pluralidade de instrumentos.[5]
[1] Tema 698: “1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado. 3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).” BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 684.612/RJ. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 03 de julho de 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4237089&numeroProcesso=684612&classeProcesso=RE&numeroTema=698. Acesso em: 10 mar. 2025.
[2] § 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
[3] MÂNICA, Fernando. Instituições do Terceiro Setor. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 129.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923/DF. Rel. designado: Min. Luiz Fux., 17 de dezembro de 2015. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1739668. Acesso em: 19 jul. 2024.
[5] Este artigo foi escrito a partir de edição científica publicada em: MÂNICA, Fernando Borges. Complementaridade e discricionariedade para a celebração de contratos de gestão com Organizações Sociais de saúde. In: JUSTEN, Monica Spezia; PEREIRA, Cesar; JUSTEN NETO, Marçal; JUSTEN, Lucas Spezia. Uma visão humanista do direito: homenagem ao professor Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2025, v. 2, p. 469-479. ISBN 978-65-5518-916-2.