Entre a segurança jurídica e a uniformidade

A Lei 14.905/24 trouxe novos critérios para atualização de dívidas civis, mas sua aplicação temporal em processos em andamento gera um dilema: uniformidade retroativa ou segurança jurídica? Este artigo defende que, mesmo após o REsp 1.795.982/SP, a melhor solução é respeitar as práticas consolidadas em cada tribunal até 30/8/2024, unificando os critérios apenas a partir desta data.

Em agosto de 2024, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp 1.795.982/SP, reafirmou por maioria apertada (6 a 5) que a taxa de juros moratórios do artigo 406 do Código Civil é a taxa Selic. Contudo, este julgamento não enfrentou diretamente a questão da aplicação temporal, especialmente em processos em andamento.

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O acórdão não estabeleceu modulação temporal dos efeitos da decisão, deixando uma lacuna significativa. O placar apertado e o voto divergente do ministro Luis Felipe Salomão revelaram que a aplicação da taxa Selic não era um entendimento consolidado nos tribunais estaduais, que majoritariamente aplicavam correção monetária acrescida de juros de 1% ao mês.

Ademais, o acórdão só foi publicado em 23/10/2024, mais de um mês após a entrada em vigor da Lei 14.905/24, dificultando a adaptação dos tribunais e das partes ao novo entendimento.

A jurisprudência emergente após a Lei 14.905/24

Os tribunais estaduais, especialmente o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), têm adotado uma solução equilibrada: preservar os critérios anteriormente adotados até 30/8/2024 e aplicar o novo regime apenas a partir desta data.

Nos Embargos de Declaração 1007553-78.2023.8.26.0001/50000, a 24ª Câmara de Direito Privado do TJSP decidiu:

Até 30.08.2024 deverá incidir correção monetária de acordo com a tabela prática deste Egrégio Tribunal de Justiça, além de juros de mora de 1% ao mês; a contar de 30.08.2024, passarão estes a incidir de acordo com o regramento estipulado nos artigos 398, parágrafo único, e 406, ambos do Código Civil, com a redação dada pela Lei n. 14.905/2024“.

Este entendimento foi reiterado em diversos outros julgados, demonstrando a consolidação de uma jurisprudência que privilegia a segurança jurídica.

O tratamento dos encargos contratuais após a Lei 14.905/24

A Lei 14.905/24 trouxe alterações que valorizam a autonomia da vontade. Conforme a Apelação Cível 1004181-81.2023.8.26.0176 do TJSP:

Em relação à correção monetária, será aplicado o índice contratualmente eleito ou, caso não seja convencionado, será o IPCA”.

A partir de 30/8/2024, os tribunais estão respeitando a prevalência dos índices contratuais, aplicando o IPCA apenas subsidiariamente. Da mesma forma, os juros moratórios pactuados prevalecem sobre a taxa legal: Selic deduzida do IPCA.

Títulos judiciais e execuções em andamento: a Solução do STJ

Títulos judiciais com encargos expressamente fixados

O STJ, nos embargos de declaração no AREsp 2723247/RS, estabeleceu um princípio fundamental: quando uma sentença já definiu expressamente os índices de juros e correção monetária, estes devem ser mantidos integralmente, mesmo após 30/8/2024, em respeito à coisa julgada.

O ministro Marco Aurélio Bellizze rejeitou embargos que questionavam a manutenção dos índices fixados em título judicial anterior à Lei 14.905/24, afirmando que “a alteração dos índices estabelecidos no título judicial configura violação à coisa julgada”.

Execuções sem definição expressa de encargos

Por outro lado, para execuções onde não houve definição expressa dos índices ou quando a sentença apenas menciona “juros legais”, aplica-se a sistemática anterior até 30/8/2024, e a partir desta data, aplica-se a nova sistemática da Lei 14.905/24.

A confirmação definitiva do marco temporal pelo STJ

A tese do marco temporal recebeu confirmação inequívoca do STJ no Recurso Especial 2161359/RS. A ministra Maria Isabel Gallotti estabeleceu com clareza a existência de dois regimes jurídicos distintos:

Anoto que os juros de mora legais são regidos pelas sucessivas leis em vigor durante o período de mora. Assim, a partir da entrada em vigor da Lei 14.905/24, devem as novas parcelas de juros ser calculadas com base na redação conferida ao art. 406 do Código Civil pela referida lei”.

Na parte dispositiva, a ministra foi ainda mais incisiva:

Dou provimento ao recurso especial para determinar a incidência da Taxa SELIC até a entrada em vigor da Lei 14.905/24, quando deverá incidir a regra do art. 406 da referida lei”.

Esta decisão confirma três pontos fundamentais:

  • Aplicação do princípio tempus regit actum: cada período deve ser regido pela lei então vigente;
  • Estabelecimento do marco temporal: há um “antes” e um “depois” da Lei 14.905/24; e
  • Solução para a transição: taxa Selic (conforme interpretação anterior) até a entrada em vigor da Lei 14.905/24, e a partir daí a nova regra.

Somada às decisões anteriormente analisadas – o EDcl no AREsp nº 2723247-RS e o AREsp 2598169-SC – esta decisão completa o quadro jurisprudencial que respalda integralmente a solução do marco temporal.

A convergência entre os tribunais estaduais e o STJ

O que inicialmente se apresentava como uma solução dos tribunais estaduais agora encontra respaldo definitivo na jurisprudência do STJ: manter os critérios anteriores até 30/8/2024 e aplicar o novo regime a partir desta data.

Esta convergência demonstra que a solução do marco temporal não é apenas pragmática, mas juridicamente consistente com os princípios do direito intertemporal brasileiro, especialmente o tempus regit actum e a teoria do isolamento dos atos processuais.

Conclusão

A transição para o novo regime de atualização de dívidas judiciais encontrou seu equilíbrio na solução respaldada tanto pelos tribunais estaduais quanto pelo STJ: respeitar as sistemáticas específicas de cada tribunal até 30/08/2024, unificando os critérios apenas a partir desta data.

Esta solução:

  • Respeita o princípio tempus regit actum;
  • Preserva a coisa julgada;
  • Protege as expectativas legítimas das partes;
  • Evita o caos processual de recalculações retroativas; e
  • Permite uma transição ordenada para o novo regime

A jurisprudência do STJ confirma que esta solução não é apenas pragmaticamente desejável, mas juridicamente correta, alinhada com os princípios fundamentais do direito intertemporal brasileiro.

O marco temporal de 30/8/2024 representa, portanto, a solução mais equilibrada para a transição entre os diferentes regimes de atualização de dívidas judiciais, com o respaldo inequívoco da jurisprudência do STJ.


BRASIL. STJ. REsp nº 1.795.982/SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Rel. p/ acórdão: Min. Raul Araújo. J. 21/08/2024. DJe 23/10/2024.

BRASIL. STJ. EDcl no AREsp nº 2723247-RS. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. J. 24/10/2024. DJe 30/10/2024.

BRASIL. STJ. REsp nº 2161359-RS. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. J. 15/12/2024.
BRASIL. Lei nº 14.905, de 28/06/2024. DOU 01/07/2024.

BRASIL. CMN. Resolução nº 5.171, de 30/08/2024. DOU 31/08/2024.

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