O Brasil está distante da regulação do streaming. O video on demand – em português, o vídeo sob demanda – assumiu uma relevância sem precedentes nos últimos anos, ao passo que as discussões relativas à regulação da referida atividade econômica não só são embrionárias, como inexistentes. Sequer existe uma pauta regulatória estatal e nem mesmo qualquer proposta de discussão nos ambientes especializados da sociedade.
O consumo sob demanda, ao contrário do sistema tradicional de radiodifusão capitaneado historicamente pelas TVs abertas, é um caminho sem volta. Não se trata, por uma obviedade, de propor uma regulação tolhedora desse irreversível cenário. Ademais, o consumo sob demanda possui características consentâneas com a individualidade humana, atendendo aos específicos anseios por entretenimento e informação.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
O arranjo constitucional de comunicação social delineado por nossa Constituição está sendo desconstituído sem que o Estado brasileiro tenha implantado os instrumentos regulatórios para o streaming ou deliberado no sentido da autorregulação.
Nos termos dispostos pela Constituição, compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Tamanha é proteção da constitucional da outorga das atividades econômicas exploradas pelas TVs abertas é que seu prazo de 10 anos só não pode ser renovado por meio de voto nominal de dois quintos do Congresso Nacional.
É esse mecanismo de delegação que vem sofrendo abalos pelo streaming sem que o Estado brasileiro tenha sequer uma dimensão dos impactos irreversíveis para a comunicação social globalmente considerada.
Essa questão assume particular significado na medida em que o sistema clássico está estruturado na vedação ao monopólio e ao oligopólio, na complementaridade dos sistemas privado, público e estatal, na promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente, além de outros princípios de produção e programação.
Outro aspecto que se coloca é que nossa Constituição dispõe que a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no país, sendo que pelo menos 70% do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação.
São esses os aspectos normativos que delineiam nosso arranjo de comunicação social, o qual vem sendo instabilizado pelo streaming.
São irreversíveis os modos como, contemporaneamente, são consumidos conteúdos que, até pouco tempo atrás, eram produzidos ou difundidos pelo que nossa Constituição qualificou como radiodifusão sonora e de sons e imagens. O rádio já há muitas décadas e a televisão nos últimos anos centravam o fornecimento de conteúdo e percebiam a respectiva contraprestação por meio de publicidade que pressupunha do expectador sujeição integral aos horários predefinidos.
Ocorre que atualmente o expectador possui à sua disposição, dentro dos seus próprios critérios de tempo e de espaço, o conteúdo considerado desejável. Não por acaso até mesmo o arranjo clássico de publicidade e de propaganda, centrado nos grandes veículos, está sofrendo mudanças, colocando em risco do modelo de contraprestação das concessões públicas, cada vez menos onipresentes.
Antes a televisão era capaz de repercutir ofertas para abrangentes perfis de consumo. Entretanto, diante da perda de protagonismo, há um sensível deslocamento para ofertas em veículos difusos, tais como em redes sociais e através dos chamados “influenciadores”.
A regulação do streaming é premente. A transnacionalização do poder econômico e da produção do conteúdo requer do Estado brasileiro algum compromisso regulatório. Do contrário, estaremos fadados não apenas ao desmoronamento das concessões públicas, mas também à diluição dos valores irrenunciáveis que nossa Constituição atribuiu à comunicação social.