A aviação civil brasileira, caracterizada por altos custos fixos e uma estrutura de mercado concentrada, desempenha papel estratégico para o desenvolvimento nacional. No período de 2010 a 2025, o setor passou por transformações profundas, impulsionadas por fusões empresariais, crises econômicas e pela pandemia de Covid-19.
Nesse contexto, a atuação regulatória da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tornou-se ainda mais relevante para assegurar um ambiente concorrencial justo, eficiente e sustentável.
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Este texto discute os principais avanços regulatórios, com ênfase na análise crítica dos precedentes mais relevantes do Cade e da Anac, e aponta os principais desafios enfrentados na promoção da concorrência no setor aéreo brasileiro.
Regulação econômica no setor aéreo: fundamentos e objetivos
A regulação econômica no setor aéreo visa corrigir falhas de mercado típicas de mercados concentrados, como barreiras à entrada e riscos de práticas monopolistas. No Brasil, a atuação da Anac e do Cade é orientada tanto pela promoção da eficiência produtiva, alocativa e dinâmica quanto pela necessidade de garantir segurança operacional e acessibilidade.
A teoria do interesse público justifica a intervenção estatal, enquanto a teoria da captura regulatória alerta para o risco de que interesses privados influenciem excessivamente a atuação das agências reguladoras. Assim, a eficácia da regulação depende da capacidade de formular políticas técnicas, transparentes e imparciais.
O Programa Voo Simples e a modernização normativa
Entre as medidas mais significativas do período destaca-se o Programa Voo Simples, lançado em 2020. Este programa teve como principais objetivos:
- Racionalizar as Taxas de Fiscalização da Aviação Civil (redução de 342 para 25 fatos geradores);
- Digitalizar processos como o Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB) e o Diário de Bordo;
- Reformular o Sistema de Aeronaves não Tripuladas (Novo Sisant);
- Facilitar a entrada de empresas estrangeiras no mercado brasileiro;
- Atualizar a legislação setorial por meio da Lei 14.368/2022 (Lei do Voo Simples), que alterou mais de 100 dispositivos do Código Brasileiro de Aeronáutica.
Essas medidas buscaram simplificar procedimentos, reduzir custos e alinhar a regulação brasileira às práticas internacionais. No entanto, surgiram preocupações quanto à preservação da segurança operacional e à necessidade de vigilância constante sobre o impacto da desregulamentação, motivo pelo qual se analisam neste artigo os principais precedentes do Cade no tocante ao setor aéreo.
Precedentes relevantes do Cade (2010-2025)
Fusão TAM-LAN (2011)
A aprovação da fusão entre a brasileira TAM e a chilena LAN, que originou a Latam Airlines, foi um dos marcos mais importantes da década. O Cade condicionou a aprovação à adoção de medidas para mitigar riscos à concorrência, como a saída da empresa da aliança global de companhias aéreas à qual pertencia.
Apesar dessas medidas, a operação consolidou a Latam como líder no mercado latino-americano, levantando questionamentos sobre os limites das contrapartidas impostas e os efeitos sobre a concorrência no longo prazo.
b) Fusão Azul-Trip (2013)
Outro precedente relevante foi a fusão entre Azul e Trip Linhas Aéreas. O Cade aprovou a operação, mas impôs restrições, como a rescisão do acordo de compartilhamento de voos (codeshare) da Trip com a TAM e a obrigação de utilizar slots no Aeroporto Santos Dumont com 85% de eficiência mínima.
Essas condições visavam evitar o subaproveitamento de infraestrutura aeroportuária e assegurar a concorrência em mercados regionalizados.
c) Codeshare Azul-Gol (2025)
Em 2025, a Superintendência-Geral do Cade arquivou o processo de análise prévia do acordo de compartilhamento de voos (codeshare) entre Azul e Gol. A decisão foi baseada no entendimento de que o acordo não configurava um ato de concentração econômica sujeito a notificação obrigatória, mas determinou a possibilidade de reavaliação caso o acordo perdurasse por mais de dois anos.
O caso evidenciou a complexidade das novas formas de cooperação entre companhias aéreas e a necessidade de monitoramento contínuo para prevenir efeitos anticompetitivos.
d) Possível fusão Gol-Azul
Ainda em 2025, a possível fusão entre Gol e Azul foi anunciada, acendendo alertas sobre a concentração de aproximadamente 60% do mercado doméstico em um único grupo. A análise dessa operação será crucial para avaliar a eficácia das práticas concorrenciais no setor e o compromisso do Cade em evitar a formação de um oligopólio ainda mais consolidado.
Atuação da Anac: avanços e limites
A atuação da Anac no período também apresentou avanços importantes:
- Atualização das normas de tarifas de armazenagem e capatazia (Resolução 765/2025);
- Revisão das regras de alocação de slots em aeroportos congestionados (Resolução 682/2022);
- Apoio à acessibilidade aérea em regiões isoladas, como a Amazônia Legal, através da simplificação de requisitos para operações em localidades sem aeródromo cadastrado.
No entanto, desafios persistem, sobretudo na necessidade de alinhar as políticas de fomento à concorrência com a regulação técnica da segurança operacional, especialmente em um ambiente de mercado cada vez mais concentrado.
Cooperação entre Cade e Anac
Em 2024, foi firmado um acordo de cooperação técnica entre Cade e Anac para promover a troca de informações e estudos conjuntos. Essa parceria é vista como estratégica para assegurar maior coerência nas decisões regulatórias, especialmente em casos de fusões e aquisições.
O fortalecimento dessa cooperação institucional é fundamental para que a análise de atos de concentração econômica leve em conta tanto aspectos concorrenciais quanto requisitos técnicos de segurança e operação.
Entre 2010 e 2025, a regulação econômica no setor aéreo brasileiro passou por avanços significativos, sobretudo no esforço de modernizar procedimentos, promover a concorrência e ampliar o acesso aos serviços aéreos. A atuação do Cade e da Anac revelou sensibilidade às novas demandas do mercado, embora ainda existam fragilidades que precisam ser superadas.
A concentração de mercado permanece como um desafio estrutural. As intervenções regulatórias precisam ser continuamente avaliadas quanto à sua capacidade de preservar a concorrência efetiva e proteger o interesse público, especialmente frente à pressão de grandes grupos econômicos.
Fortalecer a atuação coordenada entre Cade e Anac, adotar metodologias de análise mais rigorosas e reforçar mecanismos de monitoramento são passos indispensáveis para garantir um ambiente aéreo mais justo, eficiente e acessível, consolidando os avanços e enfrentando as limitações ainda presentes na regulação do setor.