Cada vez mais o setor agropecuário brasileiro enfrenta uma crescente pressão global por maior rastreabilidade, legalidade e transparência em suas cadeias produtivas.
Regulamentações nacionais e internacionais, políticas corporativas de sustentabilidade e exigências de investidores têm impulsionado mudanças estruturais no modo como produtos agrícolas são monitorados, verificados e comercializados. A geração de dados, então, se torna pilar importante para garantia não só para a evolução de procedimentos e como também para sua efetividade.
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Nesse contexto, a ausência de dados acessíveis e atualizados sobre Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV) – ou documentos equivalentes que atestam a legalidade de desmatamentos – se torna uma lacuna crítica. Esses documentos, geralmente gerenciados por órgãos estaduais, são uma das formas de comprovação da conformidade de áreas agrícolas com a legislação ambiental brasileira. Entretanto, por serem de difícil acesso, os esforços de verificação para conformidade legal ficam estagnados.
A publicação padronizada das ASVs em nível nacional traria não apenas benefícios para a imagem e a competitividade do agronegócio brasileiro, como também fortaleceria a governança ambiental na garantia de cumprimento da legislação, quando são documentos que autorizam a retirada de vegetação nativa em propriedades rurais dentro dos limites estabelecidos pelo Código Florestal, especialmente em áreas de uso alternativo do solo fora das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e das Reservas Legais (RLs).
A falta de publicidade dessas informações limita não apenas a fiscalização por parte dos órgãos públicos, mas também prejudica o setor privado em seus esforços de avançar no compliance e na rastreabilidade da cadeia. No contexto atual, em que compradores internacionais, financiadores e certificadoras exigem garantias de origem, essa opacidade representa um obstáculo relevante à competitividade da produção brasileira.
Além disso, a indisponibilidade dessas autorizações dificulta o enfrentamento de um dos maiores desafios do debate ambiental: distinguir com clareza o desmatamento legal do ilegal. Sem dados públicos, a narrativa de que “o desmatamento é permitido no Brasil” — frequentemente utilizada como argumento para relativizar críticas externas — carece de verificação empírica, o que compromete sua força argumentativa tanto em fóruns nacionais quanto internacionais.
Transparência é um elemento essencial para qualquer sistema de governança eficaz, seja ele público ou privado. No caso do Brasil, país que abriga a maior biodiversidade do planeta e desempenha papel central no abastecimento global de alimentos, isso torna-se uma necessidade estratégica.
A publicidade das ASVs pode atuar como ação catalisadora de um ciclo virtuoso que envolve fortalecimento institucional, aprimoramento de políticas públicas e maior responsabilização dos diferentes atores envolvidos na conversão de vegetação nativa de maneira desrespeitosa à legislação.
A simples existência de uma base de dados pública e auditável já funcionaria como inibidor de práticas irregulares, uma vez que seria facilmente verificável. Além disso, facilitaria o trabalho de cruzamento de informações com outras bases – como CAR, Prodes, Deter etc. – para detecção de inconsistências, fraudes ou padrões de risco, algo que empresas do setor privado poderiam utilizar para aprimoramento de seus sistemas de controle e implementação das estratégias de expansão, verificar a compatibilidade entre produção agrícola e legalidade fundiária, e direcionar recursos de forma mais eficiente para o cumprimento de compromissos ESG e de desmatamento zero.
Empresas exportadoras e compradores internacionais têm se mobilizado para comprovar que a soja brasileira não está associada a desmatamento ilegal, isto face a exigência de mercado global. No entanto, essa tarefa torna-se quase impossível sem uma base pública, abrangente e atualizada de ASVs.
Do ponto de vista da formulação de políticas públicas, a sistematização dessas informações permitiria um monitoramento mais preciso da atuação dos estados na gestão ambiental. Hoje, o governo federal tem dificuldades para avaliar a efetividade da aplicação da legislação ambiental nos entes federativos, justamente pela ausência de dados padronizados e integrados.
Num cenário perfeito, seria possível identificar as unidades da federação com maior incidência de supressões autorizadas, avaliar o volume de áreas sob uso alternativo do solo e monitorar tendências que possam demandar respostas específicas, como zonas de pressão por expansão agrícola. Seria também possível atuar no reforço à fiscalização, aprimoramento tecnológico de sistemas de monitoramento e otimização dos esforços das Secretarias Estaduais de Meio Ambiente.
Maior transparência também contribuiria para qualificar o debate público, muitas vezes capturado por polarizações ideológicas ou por argumentos não fundamentados. Em um cenário onde há grande controvérsia sobre a proporção de desmatamento legal e ilegal, o acesso a dados oficiais confiáveis é fundamental para trazer racionalidade, precisão técnica e credibilidade às discussões — tanto no Brasil quanto no exterior.
A expansão da produção sojícola no Brasil, especialmente no bioma Cerrado, tem sido um dos principais vetores de pressão internacional por maior rastreabilidade e comprovação de legalidade ambiental. Em 2023/24, o Brasil plantou aproximadamente 45 milhões de hectares de soja, dos quais cerca de 60% estão localizados no cerrado, segundo dados da Conab e de mapeamentos por sensoriamento remoto. Esse bioma, por ainda possuir mais de 50% de vegetação nativa e estar no centro da expansão agrícola recente, tem atraído a atenção de reguladores, consumidores e instituições financeiras globais.
Em estudo publicado no site da Abiove, temos que aproximadamente 96% da expansão da soja na safra 2022/23 no cerrado ocorreu em áreas já antropizadas, ou seja, sem supressão recente de vegetação nativa. Apenas 4% da expansão ocorreu sobre áreas conversação de vegetação, e, dessas, uma parcela relevante apresenta CAR ativo e regular perante o Código Florestal.
No entanto, a ausência de informações públicas sobre as ASVs impede a confirmação objetiva da legalidade desses casos e compromete a capacidade de validação externa, inclusive por parte de iniciativas privadas de monitoramento e verificação.
Essa lacuna de dados se torna ainda mais crítica diante de estudos como o publicado na revista Science, intitulado “The Rotten Apples of Brazil’s Agribusiness”, liderado por Raoni Rajão. O artigo afirma que entre 20% e 25% da soja produzida no cerrado pode estar associada a algum grau de irregularidade fundiária ou ambiental, incluindo desmatamento ilegal. Embora o estudo tenha sido contestado por entidades do setor, faltam dados públicos que permitam uma resposta técnica e precisa a essas alegações.
Nesse contexto, o cerrado é emblemático: trata-se do bioma mais pressionado pela expansão da fronteira agrícola e, ao mesmo tempo, o mais exposto à ausência de mecanismos públicos e estruturados de transparência ambiental. A criação e publicação de uma base nacional de ASV, georreferenciada, interoperável e acessível, seria uma resposta concreta e tecnicamente viável a esse desafio.
Diante destes desafios, mas também oportunidades, é urgente que tanto o poder público quanto o setor privado adotem medidas concretas para fortalecimento da transparência ambiental no Brasil, com foco especial na publicidade das ASVs e/ou documentos equivalentes.
E não apenas deixar público, mas garantir que o uso do dado seja eficiente, por meio da padronização deste documento em todas as esferas estaduais; e viabilizar o cruzamento com outras bases, em especial, o CAR, assim garantindo a possibilidade de vincular esta informação às propriedades rurais de forma que as empresas do setor privado possam fazer a verificação adequada; considerando-se, inclusive, a crescente demanda internacional por cadeias produtivas livres de desmatamento, combinada com o avanço de legislações alienígenas.
O setor sojícola pode ser um dos primeiros a puxar essa agenda, mas os benefícios da medida se estenderiam a diversas outras cadeias agropecuárias e florestais. Trata-se, portanto, de uma ação transversal, que pode pavimentar o caminho para um novo ciclo de governança ambiental no país, com mais transparência, confiança e competitividade.