Diante da preocupação crescente com a saúde mental dos jovens e os impactos da hiperconectividade, o legislador brasileiro respondeu com a Lei 15.100/2025, regulamentada pelo Decreto 12.385/2025. Longe de constituírem soluções inteligentes para problemas complexos, tais normas revelam o traço autoritário ainda enraizado nas políticas educacionais nacionais, apostando na repressão em detrimento da formação crítica.
Apresentadas como meio de proteção, ocultam contradições internas, violações de direitos fundamentais e favorecimentos econômicos velados, além de aprofundarem o descompasso entre a escola e a realidade vivida pelos estudantes ao ignorarem a natureza do mundo contemporâneo.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Este artigo propõe uma análise crítica dessa legislação, expondo suas fragilidades jurídicas, suas consequências pedagógicas e seu equívoco no enfrentamento dos problemas que a própria lei pretende resolver.
Uma lei contraditória
À primeira vista, a lei parece clara: proíbe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante as aulas, os recreios e os intervalos. No entanto, o próprio texto abre inúmeras exceções, permitindo o uso para fins pedagógicos, de acessibilidade, de saúde ou para assegurar direitos fundamentais.
Essa estrutura gera um paradoxo, pois proíbe-se amplamente para, depois, permitir exceções vagas que fragilizam e confundem. Como escolas já sobrecarregadas julgarão, em tempo real, a legitimidade do uso de dispositivos e administrarão a exigência de laudos e interpretações subjetivas sobre tais direitos?
A insegurança jurídica é clara e tende a estimular a judicialização das relações escolares, gerar conflitos entre famílias, escolas e autoridades, fragilizar a autoridade pedagógica e expor as instituições a riscos que a legislação deveria prevenir, não fomentar.
A violação de direitos e a falácia do combate à nomofobia
A repressão tecnológica imposta pela lei colide frontalmente com princípios constitucionais caros ao Estado Democrático de Direito. A liberdade de expressão, o acesso à informação e a autonomia pedagógica são todos restringidos sem demonstração de necessidade, adequação e proporcionalidade — requisitos tradicionais do controle de constitucionalidade.
A educação pública e privada não pode ser tratada como mera extensão do aparato disciplinar do Estado. O artigo 206 da CFRB/1988 é claro ao garantir a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento. Ao impor uma política autoritária sobre o uso de tecnologias, sem considerar contextos pedagógicos diversos, o legislador trai a promessa constitucional de pluralismo e democracia educacional.
Além disso, ao obrigar escolas a custodiar os dispositivos móveis, criam-se obrigações logísticas e financeiras sem correspondente previsão orçamentária, atingindo danosamente instituições públicas, em afronta ao princípio da eficiência.
Entre as justificativas para a repressão, destaca-se a alegação de combate à nomofobia — o medo irracional de ficar sem acesso a dispositivos. Trata-se, no entanto, de uma simplificação perigosa: combater um sintoma sem atacar suas causas profundas é tão ineficaz quanto medicar febre ignorando a infecção.
A nomofobia não decorre do uso escolar do celular, mas da lógica de hiperconectividade incessante imposta pelo capitalismo de vigilância, como analisa Shoshana Zuboh. Aplicativos, redes sociais e mecanismos de recompensa digital moldam comportamentos e dependências.
Banir celulares na escola não forma sujeitos autônomos; apenas alimenta o fetichismo da tecnologia proibida, empurra o problema para a clandestinidade e impede o desenvolvimento da literacia digital crítica. Lidar com a nomofobia exige educação para o autocontrole e para a gestão saudável da vida digital — e não medidas proibicionistas superficiais.
Interesses econômicos?
A exigência de guarda obrigatória dos dispositivos gera um mercado milionário para empresas fornecedoras de lockers e estruturas de armazenamento. Trata-se de uma privatização disfarçada do espaço escolar, onde recursos destinados à educação são redirecionados para soluções logísticas ineficazes. Esse movimento ilustra, com precisão cirúrgica, a crítica de Naomi Klein: a captura de crises sociais como oportunidades de lucro privado.
Enquanto professores carecem de formação em educação digital e estudantes enfrentam crises de saúde mental não tratadas, o mercado de lockers floresce. O Estado, ao invés de educar, se converte em facilitador de negócios privados.
A ilusão do banimento e a urgência da autonomia digital
Embora os argumentos favoráveis ao banimento dos dispositivos partam de diagnósticos legítimos, eles conduzem a soluções equivocadas. É inegável que os celulares podem ser fontes de distração e queda de rendimento, mas a repressão absoluta elimina também o potencial educativo da tecnologia, ao invés de ensinar a gestão da atenção. As interações tóxicas online, associadas ao cyberbullying e aos riscos à saúde mental, são problemas sérios; contudo, o banimento apenas desloca essas práticas para espaços não supervisionados, sem enfrentá-las de fato.
Quanto à desonestidade acadêmica, embora o uso de dispositivos para fraudes seja um risco real, ele revela mais uma falha na concepção pedagógica e nas práticas de avaliação do que um defeito intrínseco à tecnologia. Mesmo a perturbação de aulas, é sintoma da ausência de uma educação adequada para o comportamento digital, não da presença dos celulares.
Por outro lado, o uso consciente dos dispositivos revela benefícios estruturais inegáveis. Dispositivos ampliam o acesso a ferramentas educacionais, como pesquisas, bibliotecas digitais e produção de conteúdo. Também fortalecem a comunicação e a colaboração, favorecendo o trabalho em grupo e a interação entre alunos e professores.
Em casos de emergência, celulares se tornam instrumentos essenciais de proteção e comunicação rápida. Ademais, políticas inteligentes de flexibilização — já adotadas com sucesso em diversas escolas ao redor do mundo — demonstram que é possível integrar o uso da tecnologia de maneira pedagógica e estratégica.
Portanto, enquanto o banimento constitui um atalho simplista que tenta mascarar a complexidade dos problemas contemporâneos, a educação para o uso consciente enfrenta esses desafios com maturidade crítica e visão de futuro.
O século XXI é dominado pelo mundo VUCA — volátil, incerto, complexo e ambíguo. Cidadãos incapazes de lidar criticamente com tecnologias são cidadãos vulneráveis, manipuláveis e socialmente excluídos.
Enquanto Finlândia e Canadá investem na educação digital crítica, o Brasil reforça um modelo punitivo ao banir a tecnologia. Educar para o mundo contemporâneo exige coragem para enfrentar as ambiguidades, para ensinar a navegar a incerteza e para construir autonomia intelectual. Banir celulares é, ao contrário, recuar à lógica da contenção disciplinar do século 19.
Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!
Enfrentar a complexidade, sem atalhos
A análise comparada das evidências internacionais revela que o impacto dos celulares nas escolas é, de fato, uma questão séria. Pesquisas acadêmicas indicam que o uso irrestrito de dispositivos em ambiente escolar pode afetar negativamente o desempenho acadêmico, gerar distrações significativas e agravar problemas como o cyberbullying e a desonestidade acadêmica.
Dados do Programm for International Student Assessment (PISA), conduzido pela OCDE, mostram que cerca de dois terços dos estudantes relatam distrações frequentes relacionadas a dispositivos durante as aulas de matemática. Estudos específicos, como o da London School of Economics (2015), apontaram que o banimento dos celulares em certas escolas inglesas resultou em melhoras no desempenho acadêmico, especialmente para alunos de baixa renda.
Contudo, uma leitura crítica dessas pesquisas — como destacado em análises posteriores do King’s College London e do próprio Parlamento do Reino Unido — revela limitações importantes: as melhorias observadas ocorreram sobretudo em escolas com graves problemas disciplinares e não são generalizáveis; seu impacto depende da cultura escolar e da implementação colaborativa, podendo inclusive agravar desigualdades quando não acompanhado de projetos educativos.
Em outras palavras, o banimento de celulares pode funcionar como medida emergencial em contextos específicos de crise disciplinar, mas não constitui, por si só, uma solução universal nem estrutural para os desafios da educação contemporânea, cujo problema central reside na ausência de uma cultura de uso consciente e estruturado da tecnologia.
A abordagem adotada pelo legislador brasileiro ignora essas nuances e limitações. Em vez de construir políticas públicas inteligentes, capazes de integrar a tecnologia de forma crítica, optou-se pelo caminho mais fácil — o atalho da repressão indiscriminada.
Trata-se de uma escolha regressiva por várias razões: ignora o desafio pedagógico central do século 21 — formar cidadãos autônomos para o mundo VUCA; reforça práticas disciplinares autoritárias, em detrimento do protagonismo estudantil e da autonomia pedagógica; privilegia interesses privados, em prejuízo da educação pública; e gera a falsa impressão de solução, ocultando a urgência da formação digital crítica.
Ao contrário do discurso simplista do banimento, a educação digital não é luxo, mas necessidade democrática. Em tempos de algoritmos, deepfakes, vigilância e manipulação, formar para o uso consciente é formar para a liberdade.
As melhores práticas internacionais apontam para políticas mais sofisticadas, como regulamentos flexíveis que possibilitem o uso pedagógico dos dispositivos, a formação contínua de professores em educação digital, a participação da comunidade escolar na definição modal de uso e a integração da tecnologia em programas de alfabetização midiática.
A escola do século 21 não pode ser uma fortaleza contra as tecnologias: precisa ser uma fábrica de consciências críticas, preparadas para enfrentar o mundo como ele é — e não como gostaríamos que fosse.
Proibir celulares revela medo; educar, coragem. E é com coragem, não com atalhos autoritários, que se constrói a educação libertadora prevista em nossa Constituição.
OECD DIRECTORATE FOR EDUCATION AND SKILLS. Students, digital devices and success. <https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/reports/2024/05/students-digital devices-and-success_621829A/9e4c0624-en.pdf>. Acesso em 26/04/2025
BECK, M. Mobile phones in schools: Mandating a ban?
<https://lordslibrary.parliament.uk/mobile-phones-in-schools-mandating-a-ban/#ref 3>. Acesso em: 26/04/2025.
MURPHY, L. P. B. R. Ill Communication: Technology, Distraction & Student Performance. <https://cep.lse.ac.uk/pubs/download/dp1350.pdf>. Acesso em: 26/04/2025.
ZUBOFF, S. The Age of Surveillance Capitalism. NY. PublicAhairs, 2019.
KLEIN, N. A Doutrina Do Choque. A Ascensão Do Capitalismo Do Desastre. Nova Fronteira, 2008.