O título deste artigo também poderia ser “a autonomia do direito e a jurisdição constitucional em tempos de golpismo”. Ou algo assim. Quando a democracia está em risco, o que podemos fazer? A quem devemos recorrer? Defendemo-nos de que modo? A Alemanha tem uma lei específica e um órgão público que trata dessa defesa. Chamamos a isso de “democracia defensiva”.
Após 1988, superado o período da ditadura militar que durou mais de 20 anos, parecia que entraríamos em um período de paz. Democracia duradoira.
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Ledo engano, porque recentemente vimos que por muito pouco não perdemos essa preciosidade chamada “democracia”. Centenas de golpistas já foram condenados. E nos salvamos por meio do direito. E “isso” ainda não acabou.
Em contraponto, não é desarrazoado afirmar que a melhor democracia é a “democracia aborrecida” (aburrida, em espanhol, chata). Se quiserem, democracia tediosa. É como em um jogo de futebol: se o árbitro não aparecer, pode estar correndo tudo bem.
Enrique Krause, historiador mexicano, comentou, há alguns anos, uma análise que o correspondente da The Economist no México na década de 1980, Michael Elliott (que anos depois se tornou editor da Newsweek e da Time) fez sobre a democracia mexicana. Para Elliott, o sinal infalível da eventual adesão do México à democracia seria nada menos que o tédio: “Quando você se tornar ‘aburrido’, será democrático”. “A frase me pareceu ser o discurso de um inglês entediado com o parlamentarismo centenário e encantado com a vida perigosa do México bronco, mas agora me lembro dela como uma profecia. Se o teste da democracia é o tédio, somos quase uma democracia exemplar. E o mais incrível é que não há nada de errado nisso”, completou.
E não há nada de errado nisso, mesmo. Basta que o direito consiga filtrar os seus elementos construtores, como já demonstrarei. Mas, para isso, o direito – por meio da jurisdição constitucional (se for necessário) – deve ter um grau de autonomia. Para resistir aos seus predadores internos e externos, conforme explicito em vários textos.
Então, o que é isto – o direito? Trata-se de um fenômeno que, paradoxalmente, é produto de três elementos: política, economia e moral. Dessa junção exatamente exsurge o direito, esse quarto elemento cuja função é – paradoxalmente – a de filtrar e controlar normativamente os seus fundadores. Isto quer dizer que de algum modo, para esse fenômeno ter funcionalidade, o direito precisa ter um grau de autonomia.
E o que é isto – a autonomia do direito? O problema do significado da autonomia (império) do direito é central porque converge com outros pontos decisivos: a questão do sentido do direito, a interrogação pela sua determinação e sua fundamentação. Trata-se de examinar a sua autossubsistência de sentido e especificidade de seus fundamentos, o que não significa afirmar que o direito deixa de constituir elemento que integra o universo prático global, conforme ensina Castanheira Neves.
A autonomia do direito está ligada, fundamentalmente, à democracia. E ao Estado Constitucional. Mais especificamente, ao Constitucionalismo Contemporâneo. Sustentar a autonomia do direito acarreta compromissos institucionais, como a visão de que a decisão jurídica não é produto de escolhas, mas, sim, é um dever de buscar a melhor resposta à luz do direito e ver o direito na sua melhor luz.
Essa autonomização do direito – que cresce a partir do Constitucionalismo Contemporâneo no interior do qual a Constituição é “norma jurídica” vinculante –é alcançada diante dos fracassos da falta de controle sobre a política (veja-se como quase sucumbimos a um golpe de Estado, ocasião em que a política quase fagocitou o direito) e exsurge no Estado Constitucional forjado a partir do segundo pós-guerra, embora traços de força normativa da constituição já pudessem ser encontrados em autores como Hermann Heller bem antes desse marco temporal.
A autonomia do direito é, nesse sentido, compreendida como a sua dimensão de subsistência autônoma em face à política, à economia e à moral. Mas a autonomia não deve e não pode ser entendida como autonomia em relação às fontes de produção. Autonomia não quer dizer autônoma separação do direito da moral (lato sensu, entendidos como discursos morais também os políticos e os econômicos).
Metaforicamente, a autonomia do direito representa a blindagem ou resistência contra os seus predadores sistêmicos. Há dois tipos de predadores: exógenos e endógenos. Com efeito, a moral, a política e a economia, embora sejam fundadores cooriginários ao direito, institucionalmente passam a buscar espaços na ossatura jurídica estatal. Esse é o jogo democrático.
É do jogo tentar alterar o direito. O que não é do jogo é tentar extingui-lo e, assim, extinguir a democracia. Por isso a Constituição não é um oxímoro, porque não pode admitir que ele mesmo admita, por exemplo, anistia para quem tentou exterminá-la.
Isto é, dentro das regras, é legitimo que os diversos discursos busquem alterar, suprimir ou acrescentar normativas legais-constitucionais. Todavia, qualquer alteração, supressão ou acréscimo feito fora das regras do jogo significará fragilização da autonomia do direito. Exatamente por isso o direito terá que estar blindado. E estar protegido pela Jurisdição Constitucional.
Observe-se que, ao lado dos predadores exógenos, há os endógenos, representados pelos discursos voluntaristas, pamprincipiologismos, ponderações feitas ao arrepio da melhor técnica, dualismos metodológicos, discricionarismos e coisas do gênero, todos voltados a substituir, de algum modo, o direito posto.
Na democracia, voluntarismos e discursos-posturas congêneres não contribuem para o bom funcionamento das instituições. Quando os predadores exógenos atuam dentro das regras institucionais, a democracia se fortalece, oxigena-se. Todavia, os predadores endógenos fragilizam diretamente o direito, porque pretendem substituir o direito posto, produto da cooriginariedade democrática, por intermédio de subjetivismos e meios correlatos a “driblar” regras e princípios jurídicos.
Veja-se o perigo que representou a decisão de 2016 do STF em que se fragilizou a presunção da inocência, decisão corrigida em 2019 (ADC 43, 44 e 54). O STF, naquele HC 126.292 fez uma superinterpretação (U. Eco), típico exemplo de predação interna.
Sustentado no paradigma do Estado Democrático, o direito, para não ser solapado pela economia, pela política e pela moral (para ficar nessas três dimensões), adquire uma autonomia que, antes de tudo, funciona como uma blindagem contra as próprias dimensões que o engendraram, uma vez que é produto de uma conjuminação da política, da economia e da moral.
Não se pode olvidar que a autonomia do direito também está situada na relação entre democracia e constitucionalismo – que na jurisdição constitucional um garante principalmente em jovens democracia. As democracias — fortemente atacadas como a nossa — podem ser salvas pelo direito? Para mim, a resposta é positiva. Sou otimista como o autor de Fragilie Democracies, Samuel Issacharoff. E isso passa pelo papel das Supremas Cortes, mormente em países periféricos. E somos ainda democracia não “aburrida”.
Com o crescente deslocamento do polo de tensão da relação entre legislação e jurisdição em direção a esta última, não é demais referir que a autonomia adquirida pelo direito implica o crescimento do controle da constitucionalidade das leis, que é fundamentalmente contramajoritário. E implica também a necessidade de critérios para a decisão, evitando o poder discricionário dos juízes. Esse poder discricionário, que em países de “democracia não aburrida” beira ao arbitrário decorrente de solispsimos judiciais, é um forte elemento predador da autonomia do direito (entendida nos moldes acima delineados).
Um pouco de história para mostrar o surgimento do voluntarismo-discricionarismo judicial: é inegável que, promulgada a Constituição, ocorreu uma corrida buscando mecanismos que implementassem um novo “juiz dos princípios” (sic) que pudesse “derrotar” o juiz “boca da lei” (sic), sem que a doutrina explicasse o que era isto — o princípio (isso é dito até hoje, quando ainda se repete o enunciado performativo de que “princípios são valores”).
Aliás, o problema conceitual no direito aparece fortemente quando a tese dominante sobre precedentes no Brasil está calcada em algo que não existe: a de que precedentes possam ser feitos para o futuro e como se os Tribunais tivessem legitimidade a “elaborar” precedentes (alguns até falam em fazer “estoques de normas” via “precedentes”).
Parcela majoritária da doutrina mais apostou em seguir o que a jurisprudência passou a dizer; isto é, em vez de prescrever o sentido da normatividade da Constituição, contentou-se em legitimar o uso de um ainda embrionário ativismo que foi se forjando a partir do início dos anos 1990.
No âmbito do Direito Constitucional, foi sendo formatado o constitucionalismo da efetividade, uma mistura de realismo jurídico e altas doses de subjetivismo, dependendo do protagonismo judicial em doses equiparáveis àquilo que Bülow reivindicava dos juízes alemães para a importação do direito romano naquele fim de século 19.
Não esqueçamos que, no ancien regime decorrente do golpe militar de 1964, os juristas críticos buscávamos um acionalismo judicial, a partir de teses alternativistas (baseadas na filosofia da linguagem ordinária e, basicamente — ainda que implicitamente — nos realismos jurídicos escandinavo e norte-americano) e em teorias marxistas que descontruíam o establishment jurídico-político-dogmático. Só que, uma vez promulgada a Constituição, esse acionalismo passou a ser prejudicial, fragilizando a autonomia do direito. O que se quer dizer é que “ativismo judicial” prejudica a autonomia do direito.
É aqui que chegamos ao ponto: a autonomia do direito passou a ficar fragilizada face às apostas no/nesse protagonismo judicial. Mais protagonismo judicial, menos autonomia do direito, uma vez que o direito posto passou a ser substituído por uma espécie de jurisprudencialismo similar ao que Mathias Jestaed denunciou em relação ao Tribunal Constitucional da Alemanha. Isso, aliado às práticas dualistas de invocação da “realidade social” contra a “realidade normativa”, tornou-se, no Brasil, importante fator de enfraquecimento do grau de autonomia do direito.
Nesse sentido, uma vez que a história do direito é uma história de superação do poder arbitrário, podemos afirmar que o que se procura enfrentar/combater é o lócus em que a decisão privilegiada acontece. Nessa medida, a história do direito também é uma história de superação ou do enfrentamento do problema da discricionariedade (arbitrariedade) e de teses realistas como a de que o direito é o que o judiciário diz que é (basta ver a crescente “precedentalização, pelo qual os Tribunais “instituem” “precedentes pro futuro”, substituindo-se ao legislador). O contraponto é o sistema de garantias constitucionais que estabelece, sobretudo, limites à atuação política do Estado.
O Constitucionalismo Contemporâneo aposta na autonomia do Direito para delimitar a transformação das relações jurídico-institucionais, protegendo-as do constante perigo das arbitrariedades políticas – veja-se no Brasil o papel do Supremo Tribunal Federal quando da tentativa de golpe de Estado em janeiro de 2023.
É preciso compreender que a redefinição do papel exercido pelo Judiciário (entendida aqui especialmente por meio da Jurisdição Constitucional para proteção das democracia frágeis de que fala Issacharoff) não elevou sua posição institucional a uma atuação arbitrária, livre de qualquer controle democrático. Em outras palavras, a autonomia do direito e a sua umbilical ligação com a dicotomia “democracia/constitucionalismo” exigem da Teoria do Direito e da Constituição uma reflexão de cunho hermenêutico.
É este o plus do Estado Democrático de Direito: a diminuição do espaço de discricionariedade da política pela Constituição fortalece materialmente os limites entre direito, política e moral. Nesse sentido, a problematicidade atual do direito em um país periférico como o Brasil vai ao ponto de atingir inclusive a sua subsistência.
A discussão da autonomia do direito é permeada pelo debate sobre o seu sentido, subsistência e justificação no universo humano. É condição indispensável para o êxito efetivo da autonomia do direito um ambiente institucional que propicie o amadurecimento dos instrumentos de controle hermenêutico das decisões judiciais.
Cumpre, nesse sentido, ressaltar a importância de um constrangimento epistemológico (do qual trato em diversos livros, em especial o Dicionário de Hermenêutica) que envolva tanto o poder público quanto a formação de seus atores. Não esqueçamos das lições da história, como as tão bem lembradas por autores premiados como Bernd Rüthers, que mostrou, em seu Uma Interpretação Ilimitada, os perigos da não limitação da atuação da política na época da aurora do autoritarismo alemão que culminou no nazismo. Nesse contexto está também a advertência de Michael Stolleis, acerca da degeneração do direito.
Em uma palavra final, em uma “democracia aburrida”, é a política que paga pedágio ao direito — às Constituições.
Ninguém na Europa (Espanha, Alemanha, Portugal, França, Inglaterra) pensa em propor golpes ou alterações constitucionais quando surgem crises políticas ou econômicas. Trata-se de um delicioso tédio democrático.
Por aqui por muito pouco o direito (o Estado Democrático de Direito) não pagou pedágio para o autoritarismo político. E sem passagem de volta. E aqui me “faço” como que imitando o assessor de Clinton, para dizer: É a Constituição, estúpido!
Portanto, dá para vencer o arbítrio! E estabelecer uma democracia aburrida. Por enquanto, por aqui, em vez de termos uma benfazeja democracia tediosa (aburrida), temos o meme: “no Brasil ninguém morre de tédio”. E isso é ruim. O bom é que estamos sobrevivendo!