O concurso de crimes na denúncia contra Bolsonaro – parte 2

Em meu primeiro texto dedicado à temática, enfrentei problemas de conflito aparente entre normas penais que tutelam o Estado Democrático de Direito, tendo por pano de fundo a denúncia que envolveu o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros[1]. Neste segundo texto, examinarei possíveis relações entre o crime de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, incisos I, III, e IV, do CP) e o de deterioração de patrimônio tombado (art. 62, inc. I, da Lei n. 9.605/1998), ambos também imputados pela peça acusatória.

Não ignoro que tanto a Procuradoria-Geral da República quanto alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, ao menos até o momento, aderiram à tese do concurso material – isto é, soma de penas (art. 69, CP) – entre tais delitos. No entanto, desconfio parcialmente desta conclusão, intuindo ser plausível um conflito aparente de normas penais, a inviabilizar o referido acúmulo sancionatório sob certas condições.

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Admito que titubeei em relação à utilidade do presente texto – afinal, é possível que a questão do apenamento ou mesmo da punibilidade dos fatos venha a ser resolvida sem qualquer recurso à dogmática penal, seja via anistia, seja via mudança de penas por novo comando legal mais benéfico (novatio legis in mellius) etc.

Ainda assim, optei por trazer a público estas reflexões, justamente por acreditar que a dogmática segue tendo papel central na contenção do arbítrio estatal e na promoção de previsibilidade das decisões judiciais. E quanto mais o Judiciário renunciar à dogmática na análise de casos tanto mais espaço potencialmente dará para soluções vinda de outros Poderes.

Dito isso, volto ao problema inicial em exame: pode-se imputar e condenar alguém, quanto aos mesmos fatos, pelos crimes de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, I, III e IV, do CP) e de deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da Lei 9.605/1998), em concurso material (art. 69, CP)? A fim de responder adequadamente à questão no contexto da apontada denúncia, darei um passo atrás, em razão da existência de imputação também por crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Explico. Seja no crime de tentativa de golpe de Estado (art. 359-M, CP), seja no crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L, CP), há a elementar “violência ou grave ameaça”. Do mesmo modo, há a determinação explícita da cumulação da pena de tais delitos com “a pena correspondente à violência” (veja-se o preceito secundário de ambos).

Logo, há uma questão prévia a ser examinada, a saber, se os crimes de dano qualificado ou de deterioração de patrimônio tombado imputados poderiam ser consumidos, enquanto crimes-meio, pelos crimes-fim tentativa de golpe de Estado (art. 359-M, CP) e/ou tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito (art. 359-L, CP)[2]. Caso sim, a discussão ora proposta seria, ao menos neste caso concreto, de pouca utilidade.

Uma resposta à questão da possível consunção demanda, todavia, o esclarecimento de ponto que abordei no texto anterior, qual seja, o objeto da violência exigida por tais tipos penais – se apenas pessoas, se também coisas/bens móveis e imóveis ou ainda se instituições em sentido amplo (violência discursiva e simbólica).

Ocorre que condutas que viessem a concretizar a violência exigida em tais tipos penais, caso típicas, poderiam ser absorvidas enquanto meio ou etapa do crime-fim (consunção)[3]. No entanto, para evitar eventual absorção, o legislador expressamente determinou que houvesse a cumulação das penas de certos crimes contra o Estado Democrático de Direito, como o do art. 359-L e o do art. 359-M, ambos do Código Penal, com as penas correspondentes à violência empregada na tentativa.

Disso decorre, a meu juízo, que a eventual punibilidade seja do dano qualificado (art. 163, parágrafo único, incisos I, III e IV, do CP) seja da deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da Lei n. 9.605/1998), à luz da denúncia em exame, dependerá, como ponto de partida, da definição do objeto da violência exigida nos tipos penais dos arts. 359-L e 359-M, ambos do Código Penal.

Tais delitos somente parecem passíveis de punição sem maiores controvérsias caso se admita que coisas/bens móveis ou imóveis são um dos possíveis objetos da violência, não sendo absorvidos (consunção), por expressa determinação do legislador, mesmo quando se relevem concretamente uma etapa da tentativa de golpe de Estado ou de abolição violenta do Estado Democrático de Direito[4].

Acredito que alguns admitiriam que a violência exigida por tais tipos penais poderia ser exercida sobre bens/coisas móveis ou imóveis, não estando necessariamente dirigida a pessoas. Tal interpretação exigirá, ao mesmo tempo, que se admita haver tentativa de golpe de Estado ou de abolição do Estado Democrático de Direito mesmo quando inexistir violência ou grave ameaça a pessoas.

Embora esta ideia seja decorrência lógica da anterior, talvez poucos estejam tão dispostos a admiti-la. De qualquer modo, adotarei como premissa provisória a punibilidade autônoma dos crimes de dano qualificado e/ou de deterioração do patrimônio tombado em relação aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, tal como propôs a peça acusatória, inclusive para promover o exame subsequente, focado no problema de eventual conflito aparente entre ambos.

Não me parece admissível a condenação de alguém, por condutas dirigidas aos mesmos bens móveis/imóveis, concomitantemente pelo crime de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, incisos I, III e IV, do CP) e pelo de deterioração do patrimônio tombado (art. 62, inc. I, da Lei 9.605/1998). Isso porque vislumbro uma relação abstrata entre tais tipos penais, que não seria de especialidade – presente caso a comparação fosse com o dano simples (art. 163, caput, CP) – mas de alternatividade.

Ocorre que, ao se comparar o crime de deterioração do patrimônio tombado com as modalidades qualificadas do crime de dano presentes no Código Penal, o que se verifica são especialidades recíprocas, que mutuamente se repelem. Veja-se que, por exemplo, pode haver especialidade em razão do modo (“com violência à pessoa ou grave ameaça”), da propriedade sobre o objeto (“contra o patrimônio da União, de estado, do Distrito Federal, de município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos”), da qualidade do objeto (“bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial”), das consequências do crime (“com prejuízo considerável para a vítima”) etc.

Nesse contexto, o crime de deterioração do patrimônio tombado, embora localizado na Lei dos Crimes Ambientais, revela-se uma modalidade qualificada do crime de dano do Código Penal, cuja peculiaridade reside na natureza do objeto sobre o qual incide a conduta (“bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial”).

Se, ao fim e ao cabo, o que se está comparando são formas qualificadas de dano, ainda que positivadas em leis diferentes, a relação entre elas é propriamente de alternatividade. Ou seja, os tipos qualificados são reciprocamente especiais, estando ligados por um espectro comum – a deterioração, inutilidade ou destruição de coisa alheia.

Em outras palavras, o crime de deterioração do patrimônio tombado não conteria o de dano qualificado do Código Penal nem vice-versa, havendo apenas uma sobreposição parcial, consistente na figura do dano simples (art. 163, caput, CP)[5]. Uma vez ausente predominância à luz do preceito primário, a decisão sobre incidência haverá de se dar com base no preceito secundário[6] – a preferência lógica é pelo crime de maior pena, nesta hipótese, o do art. 62, I, da Lei 9.605/1998.

Caso esta premissa esteja correta, alguns problemas dogmáticos de outra natureza poderiam surgir à luz do caso concreto, os quais passo a pontuar “por amostragem”. Um primeiro problema poderia vir à tona quando bens com diferentes qualidades fossem atingidos (por exemplo, tombados e não tombados), a gerar, prima facie, a possibilidade de incidência concomitante do crime de dano simples ou qualificado (art. 163, caput, CP ou art. 163, inc. III, CP) com o crime de deterioração (art. 62, I, da Lei n. 9.605/1998).

E mesmo nesta hipótese, seria essencial avaliar a dinâmica dos fatos, investigando se um crime não se apresenta de modo habitual como fato antecedente, concomitante ou posterior coapenado do outro, a gerar concretamente consunção. Para ilustrar, imaginemos que uma simples cerca é danificada durante conduta que deteriora um edifício tombado. Aqui, poderíamos ter um crime de dano em relação à cerca, o qual, contudo, estaria potencialmente absorvido pelo crime de deterioração do patrimônio, enquanto antefato coapenado/impunível.

Um segundo problema residiria no conteúdo do dolo. Uma vez que o agente, para ter dolo direto ou eventual, precisa conhecer todos os elementos fáticos que preenchem o tipo objetivo do crime praticado, então é imperioso definir o que há de se representar/saber para atuar dolosamente em relação ao crime do art. 62, I, da Lei n. 9.605/98, já que se trata de bem “especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial”.

Mais: caso identificado eventual erro de tipo quanto ao crime prevalente – de deterioração do patrimônio tombado –, parece-me possível o resgate do crime de dano do Código Penal, antes afastado em razão de conflito aparente de normas penais, sobretudo porque nele o conteúdo do dolo é menos exigente, já que o objeto da conduta é meramente “coisa alheia”.

Outros problemas dogmáticos poderiam ser abordados, mas acabariam por exceder os objetivos deste artigo. Creio que a pergunta inicial lançada já foi suficientemente respondida, havendo indicativos para sustentar uma conclusão “à lápis” no sentido: (i) da alternatividade entre o tipo legal de deterioração do patrimônio tombado (art. 62, I, da Lei 9.605/1998) e as formas qualificadas do dano (art. 163, parágrafo único, incisos I, III e IV, do CP), com prevalência do crime de maior apenamento (no caso, o de deterioração), desde que a conduta incida sobre um mesmo bem e (ii) quando a conduta incidir sobre bens dotados de diferentes qualidades, sendo alguns tombados e outros não, por exemplo, ainda assim será preciso avaliar, à luz do desenrolar fático, se é possível vislumbrar alguma relação de acompanhamento entre tais tipos penais, a gerar concretamente consunção.

Retornando-se ao caso em exame, será indispensável, para uma devida avaliação da possibilidade de concurso material entre os delitos em questão, que uma eventual condenação: (i) avalie a relação dos crimes de dano qualificado e de deterioração do patrimônio tombado com os crimes que tutelam o Estado Democrático de Direito e, caso reconhecida a punibilidade autônoma daqueles frente a estes, (ii) aponte claramente quais bens e/ou coisas estariam sendo considerados para as imputações de dano qualificado e deterioração.

Caso se trate dos mesmos bens, haveria inviabilidade de concurso material, conforme acima argumentado, em razão de relação de alternatividade entre tais tipos legais, com prevalência daquele dotado de maior pena (i.e., o do art. 62, I, da Lei 9.605/1998). Já caso indicados bens distintos para cada imputação, com pluralidade de condutas, haveria ainda de se avaliar a possibilidade residual de consunção de um tipo pelo outro, no sentido acima explicitado, antes de se cogitar a ocorrência de concurso material.


[1] SCALCON, Raquel. O problema do concurso de crimes na denúncia contra Bolsonaro e outros. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/o-problema-do-concurso-de-crimes-na-denuncia-contra-bolsonaro-e-outros. Acesso em 5 mai. 2025.

[2] Não considero que ambos os delitos possam ser aplicados em concurso material aos mesmos fatos, como já sustentei (Cf. SCALCON, Raquel. O problema do concurso de crimes na denúncia contra Bolsonaro e outros. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/o-problema-do-concurso-de-crimes-na-denuncia-contra-bolsonaro-e-outros. Acesso em 5 mai. 2025).

[3] Veja-se por exemplo o caso do crime de roubo, que absorve, mesmo na sua modalidade simples (art. 157, caput, CP), eventual crime de lesão corporal leve (art. 129, caput, CP) ou crime de ameaça (art. 147, caput, CP).

[4] Um contra-argumento possível à ideia desenvolvida seria no sentido de que os crimes de dano e de deterioração do patrimônio tombado teriam um desvalor não exaurível nos referidos crimes contra o Estado Democrático de Direito, mesmo caso limitado o objeto da violência a pessoas, sendo, pois, merecedores de punição autônoma. Prima facie, discordo desta ideia, porque veja uma probabilidade significativa de crimes de dano acompanharem os referidos crimes contra o Estado Democrático de Direito, de tal forma que os seus preceitos secundários haveriam de abarcar esse desvalor.

[5] Sobre o critério da alternatividade no concurso de leis penais, conferir HORTA, Frederico. Elementos fundamentais da doutrina do concurso de leis penais e suas repercussões no Direito Penal Brasileiro Contemporâneo. In: Eugênio Pacelli; Nefi Cordeiro; Sebastião dos Reis Júnior. (Org.). Direito penal e processual penal contemporâneos. 2019, p. 70 ss.

[6] Cf. HORTA, Frederico. Elementos fundamentais da doutrina do concurso de leis penais e suas repercussões no Direito Penal Brasileiro Contemporâneo. In: Eugênio Pacelli; Nefi Cordeiro; Sebastião dos Reis Júnior. (Org.). Direito penal e processual penal contemporâneos. 2019, p. 70 ss.

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