Introdução: o valor dos dados pessoais na economia digital
Em Admirável mundo novo, Aldous Huxley descreve um sistema de controle social no qual as pessoas acreditam ser livres porque apenas desejam aquilo que lhes é previamente autorizado desejar. Essa manipulação artificial das vontades, travestida de harmonia social, é uma crítica feroz à perda da liberdade em nome de uma falsa estabilidade. Mais de 80 anos depois, a metáfora continua atual — sobretudo quando observamos a realidade da economia digital e o destino silencioso dos nossos dados pessoais.
Atualmente, estima-se que apenas 4% da população mundial têm consciência de que seus dados são monetizados por terceiros. Um percentual ainda menor sabe que essa atividade gera lucros bilionários para as empresas envolvidas. De fato, a economia digital já representa cerca de 15,5% do PIB global, com projeções de crescimento significativamente superiores às indústrias tradicionais.
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A coleta massiva de dados alimenta algoritmos de inteligência artificial, sistemas de recomendação e campanhas de marketing personalizadas que se tornaram onipresentes. O mercado de dados movimenta bilhões de dólares, sustentando serviços “gratuitos” cujo verdadeiro preço é pago em informações pessoais.
Enquanto isso, o cidadão comum permanece como um objeto passivo nessa engrenagem — um “fornecedor involuntário” de matéria-prima essencial para a economia digital, sem saber, sem escolher e, principalmente, sem receber qualquer compensação.
É nesse ponto que o debate sobre a monetização consciente dos dados pessoais começa a ganhar força: e se, em vez de combater apenas o uso predatório dos dados, passássemos a defender também o direito do titular de decidir — livremente e com plena informação — sobre a exploração econômica dos seus próprios dados?
Da proteção negativa à proteção positiva: repensando o papel do titular
A legislação de proteção de dados, tanto no Brasil como no exterior, nasceu com um viés defensivo: seu principal objetivo era impedir o uso predatório dos dados dos indivíduos. Esse objetivo negativo — empoderar o titular para dizer “não” — ainda é a tônica da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). No entanto, o amadurecimento do debate e a consolidação da “economia de dados” abriram espaço para um novo enfoque: o de permitir ao titular decidir se deseja, voluntariamente, monetizar seus próprios dados, e em que condições.
Essa proposta não é isenta de riscos. Por um lado, representa um caminho possível para a valorização da autonomia individual, permitindo que o titular seja agente ativo no ecossistema digital. Por outro lado, acende alertas quanto à justiça distributiva, às desigualdades estruturais e à capacidade de escolha real — especialmente em sociedades marcadas por assimetrias sociais e informacionais profundas.
A controvérsia da propriedade de dados pessoais
O ponto central do debate sobre a monetização dos dados pessoais reside na questão da “propriedade”. Seriam os dados pessoais bens patrimoniais, sobre os quais se poderia exercer domínio, inclusive para fins econômicos? Ou estariam eles vinculados a direitos da personalidade, sendo, portanto, inalienáveis por definição?
No direito comparado, duas grandes linhas se destacam:
- Nos Estados Unidos, prevalece uma abordagem patrimonialista: os dados pessoais são tratados como ativos passíveis de comercialização, em analogia com bens materiais. A lógica é a de que a atribuição de um valor econômico aos dados amplia a percepção do seu valor e permite ao titular obter uma contraprestação pela sua utilização.
- Já na União Europeia, predomina a visão dos dados como uma extensão da personalidade humana. A proteção de dados é um direito fundamental (art. 8º da CDFUE), inalienável por natureza. Por essa razão, os dados seriam res extra commercium, fora do comércio, e não poderiam ser objeto de disposição irrestrita — ainda que, em determinadas situações, como nos contratos digitais regulados pela Diretiva (UE) 2019/770, reconheça-se que o fornecimento de dados possa equivaler, funcionalmente, a um pagamento.
Apesar disso, mesmo a União Europeia começa a reconhecer a realidade dos fatos: a troca de dados por serviços já é uma prática consolidada. A referida Diretiva passou a admitir que dados pessoais podem, em certas condições, ser objeto de contrato e uma contrapartida em transações digitais. Além disso, diversos autores propõem reformas no direito positivo europeu para lidar com a realidade de fato do mercado de dados, que já opera com os dados como mercadorias, ainda que sem o respaldo explícito da lei.
O Brasil entre o paradigma europeu e a realidade mercantil
No Brasil, há uma tendência em seguir o modelo europeu. A doutrina nacional dominante defende que os dados pessoais integram os direitos da personalidade, com natureza extrapatrimonial, enquanto a LGPD fala em “titularidade”, e não em “propriedade”. Essa escolha terminológica não é acidental: visa justamente expressar uma relação jurídica que combina o controle pessoal com limites éticos e jurídicos à alienação.
A jurisprudência ainda é incipiente, mas a doutrina já identifica um duplo regime jurídico: os dados são simultaneamente expressão da personalidade (portanto, indisponíveis em sua essência) e ativos com valor econômico (portanto, negociáveis em certas condições, uma quase-propriedade).
O fato é que os dados pessoais já são tratados como ativos econômicos. A questão não é “se” eles serão monetizados, mas “por quem”. Hoje, isso é feito unilateralmente pelos controladores. A proposta de permitir que o titular participe dessa economia não é uma rendição aos interesses do mercado, mas uma tentativa de trazer justiça e equilíbrio a um sistema que, até aqui, não o beneficia.
Defender o direito à monetização consciente dos dados pessoais não é, portanto, desvalorizar sua dimensão existencial, mas ampliá-la. É permitir que a autodeterminação informacional não seja apenas um escudo contra abusos, mas também uma alavanca de protagonismo digital.
Essa transformação requer uma revisão da postura tradicionalmente paternalista do direito da proteção de dados, abrindo espaço para uma regulação que reconheça o indivíduo como sujeito ativo da economia digital. Tal como a crítica de Huxley ao mundo onde todos estão felizes por não desejarem mais do que o sistema permite, o direito à autodeterminação deve evitar que a estabilidade digital seja conquistada ao preço da liberdade. A economia dos dados já é uma realidade. Resta saber se os titulares continuarão meros espectadores — ou se finalmente ocuparão o lugar de protagonistas na nova ordem digital.
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Esta é uma série de três artigos com o objetivo de apresentar um recorte introdutório e acessível de um projeto de pesquisa acadêmica mais amplo sobre os desafios e as possibilidades jurídicas da monetização de dados pessoais.
A proposta é provocar a reflexão crítica sobre os limites do modelo atual de proteção de dados centrado exclusivamente na defesa contra abusos e explorar alternativas que considerem também a autonomia do titular como fundamento legítimo para o uso econômico de suas informações.
Uma análise com maior aprofundamento teórico, levantamento de modelos existentes e extenso aparato bibliográfico pode ser acessada nesta versão ampliada do texto. Críticas e sugestões serão bem-vindas.