Os últimos dias foram repletos de intercorrências envolvendo o Direito Parlamentar. Como todas são importantes, e não sendo possível escolher só um tema para a coluna de hoje, optou-se por trazer brevemente cada um dos acontecimentos.
Condenação do deputado Nikolas Ferreira por atuação na tribuna
No último dia 30 de abril, foi amplamente noticiada a condenação do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) ao pagamento de indenização de R$ 200 mil por dano moral coletivo por causa por transfobia, em razão de discurso proferido no dia 8 março de 2023 no plenário da Câmara dos Deputados, quando usou uma peruca loira e se apresentou como “deputada Nikole”.
A condenação se deu no âmbito de ação civil pública (processo 0720279-88.2023.8.07.0001, junto à 12ª Vara Cível de Brasília/TJDFT) proposta pela Aliança Nacional LGBTI+ e Associação Brasileira de Família Homotransafetivas (ABRAFH), que pediram na inicial a condenação do réu ao pagamento de R$ 5 milhões, à publicação de retratação e a frequentar e implementar medidas e mecanismos de compliance antidiscriminatório.
Os dois últimos pedidos foram julgados improcedentes, sob o fundamento de que a indenização já constitui uma resposta razoável à ofensa cometida, que a retratação representaria uma indevida incursão na esfera do direito à liberdade de manifestação do pensamento do réu, forçando-o a expressar algo contrário às suas convicções, e que a imposição de elaborar e implementar políticas públicas em prol da comunidade LGBTI+ seria afrontar os mesmos princípios democráticos que a decisão busca proteger.
No que interessa aos temas tratados nesta coluna, importa destacar os fundamentos apresentados a respeito da imunidade parlamentar.
Em síntese, a decisão considerou: a) que a imunidade parlamentar não é absoluta, mas relativa, exigindo-se o nexo de implicação recíproca (ou seja, que as palavras tenham sido exteriorizadas no exercício do mandato ou estejam relacionadas à função legislativa); b) que o discurso não pode ser utilizado para praticar ou incitar conduta criminosa, ofender, ou difundir ódio contra grupos vulneráveis, porque essas são manifestações abusivas da liberdade de expressão, de acordo com a jurisprudência do STF (citou o HC 82424 – caso Ellwanger); e c) que os dizeres proferidos pelo réu desbordaram dos limites da livre manifestação do pensamento e constituíram verdadeiro discurso de ódio, destacando – nas palavras usadas pela própria decisão – que “A ausência de termos explicitamente ofensivos não desnatura o cunho discriminatório do discurso, evidenciado desde a utilização de uma peruca para escarnecer a transição de gênero por que passam os indivíduos transsexuais até a propagação da ideia de que a existência de mulheres trans põe em risco direitos como a segurança e a liberdade de mulheres cisgênero” e que a gravidade do pensamento transfóbico já foi reconhecida pelo STF no julgamento da ADO 26.
A decisão teve claro cunho pedagógico (objetivo de desestimular novas manifestações semelhantes). Como visto, cita a jurisprudência do STF, que, como sabido, vem retirando conteúdos do âmbito de proteção da imunidade. O perigo é que o precedente acabe incentivando ações indevidas contra manifestações políticas legítimas (que não incitam ódio ou discriminação). A questão aqui precisará ser lida com o possível desfecho do julgamento do Tema 650 da Repercussão Geral do STF comentado mais à frente.
Primeira suspensão cautelar do mandato de um deputado
No último dia 6 de maio, o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados (COETICA), aprovou o pedido de suspensão cautelar do mandato, por 3 meses, do deputado Gilvan da Federal (PL-ES) por ato incompatível com o decoro parlamentar. Foi a primeira vez que se aplicou tal suspensão cautelar, que tinha sido incluída pela Resolução 11/2024, da Câmara dos Deputados. Assim que publicada, a novidade foi comentada aqui.
À época, chamou-se a atenção para a legitimidade exclusiva da Mesa, cujo pedido precisaria ser dirigido exclusivamente a um deputado contra quem a própria Mesa tenha protocolizado representação por quebra de decoro parlamentar. Esse desenho tende a despolitizar a medida (que está fora do alcance dos partidos) e tornar o expediente sumamente raro (em consequência, sempre que a Mesa pedir, a tendência é que o pedido seja aceito). Se for assim, menos mal, dado que a suspensão cautelar do mandato acaba funcionando na prática como uma antecipação de pena.
No caso concreto, a Mesa apresentou a Rep 1/2025 contra o deputado, por suas falas dirigidas à deputada licenciada e atual ministra das Relações Institucionais Gleisi Hoffmann (PT-PR). O episódio se deu na forma de bate-boca com o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) durante a sessão da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado no último dia 29 de abril. Para não se reproduzir o conteúdo ofensivo aqui, simplesmente remete-se à leitura do que está na própria representação.
Após a repercussão negativa da sua fala, prontamente, o deputado reconheceu que se excedeu; pediu desculpas da tribuna em plenário “a quem se sentiu ofendido” e ao presidente da Câmara; disse que não recorreria da decisão do COETICA para o plenário (nos termos do art. 15, § 4º, do RICD); e se comprometeu a mudar de comportamento.
A providência da suspensão cautelar no caso se mostrou adequada para frear o emprego de tons ofensivos, em claro excesso verbal, que, como sabido, é uma forma de abuso de prerrogativa parlamentar, sobretudo quando caracterizada violência política de gênero, com falas direcionadas a colegas detentoras de mandato eletivo. Por mais que pareça contraditório com o que se defende nesta Defensor Legis, já restou constatado que os principais ataques às parlamentares mulheres partem de dentro da Casa Legislativa a que pertencem e no (suposto) uso da imunidade parlamentar. Então, ou se reconhece esse conteúdo como proibido, ou não será possível punir a violência política de gênero.
Sem prejuízo, por outro lado, convém enfatizar a importância de que seja a própria Casa Legislativa a instância adequada para a repressão dos parlamentares que atentam contra o decoro. Nada obstante, a deputada licenciada já apresentou uma queixa-crime no STF, autuada como Pet 13.767, distribuída ao ministro Gilmar Mendes. A queixa-crime pede a condenação do deputado por injúria e difamação, com o aumento de pena do art. 141, inciso III, do CP (crime cometido na presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação), e o pagamento de R$ 30 mil por danos morais.
Embora não tenham sido mencionados os tipos de violência política (art. 359-P do CP, inserido pela Lei 14.197/2021), nem de violência política de gênero (art. 326-B do Código Eleitoral, inserido pela Lei 14.192/2021), o cerne da acusação é, precisamente, a tentativa de diminuir a trajetória da querelante e difamar uma mulher parlamentar com termos pejorativos, o que desborda a crítica política e caracteriza misoginia e violência política e de gênero.
Início do julgamento do Tema 950 da Repercussão Geral do STF
No último dia 7 de maio, começou o aguardado julgamento do Tema 950 da Repercussão Geral do STF, cujo leading case é o RE 632.115. A Defensor Legis já tinha comentado sobre o tema em texto passado. Discute-se a existência de responsabilidade civil do Estado em face de pronunciamentos protegidos pela imunidade parlamentar. Houve apenas a leitura do relatório e sustentações orais, que foram brilhantes.
Entretanto, mesmo sem que os votos tivessem sido apresentados, as manifestações dos ministros já deram pistas preocupantes de para onde o julgamento poderá ir. Por um lado, os ministros pareceram se encaminhar para reconhecer que, nas situações em que as falas estejam acobertadas pela imunidade parlamentar, não há que se falar em responsabilidade civil, seja do próprio parlamentar, seja do Estado (no caso, do ente a que pertencer a Casa Legislativa).
Todos pareceram concordar com a ideia básica muito bem explicada pela advogada-geral do Senado, Dra. Gabrielle Tatith Pereira, de que irresponsabilidade civil do ente público é uma consequência jurídica necessária da imunidade parlamentar.
Por outro lado, entretanto, os ministros insistiram na ideia de que a imunidade parlamentar não é absoluta e que, quanto aos fatos não acobertados pela imunidade parlamentar, “alguém” seria responsável civilmente, seja o parlamentar, seja o Estado. O ministro Flávio Dino, aproveitando a distinção realizada pela advogada-geral do Senado, afirmou a necessidade de distinguir entre a responsabilidade por atos administrativos (em que o Estado responde objetivamente) e a responsabilidade por atos jurisdicionais (que privilegia a responsabilidade subjetiva), dando a entender que esse seria o melhor caminho para lidar com a responsabilidade pelos atos tipicamente políticos/legislativos.
Na sequência, vieram falas dos ministros Flávio Dino e Cármen Lúcia registrando que a responsabilização por atos não acobertados pela imunidade seria necessária para impedir o abuso de prerrogativas parlamentares, evitar a impunidade e garantir o acesso à jurisdição pelo ofendido (art. 5º, inciso XXV, da CF), um direito fundamental.
A ministra chegou a cogitar de uma responsabilidade solidária entre Estado e agente. O ministro Barroso manifestou sua preocupação com o excesso de responsabilização civil do Estado, e que a responsabilidade subjetiva deveria ser a regra, e a objetiva, a exceção.
Enfim, como vai-se vendo, tudo aponta para o caminho que será tomado pela Corte: admitir a responsabilidade civil da pessoa do próprio parlamentar por suas opiniões, palavras e votos que venham a ser considerados não acobertados pela imunidade do art. 53, caput, da CF. Qual a consequência desse entendimento? Não é difícil antever: sem saber ao certo quando suas falas serão consideradas não abrangidas pela imunidade, o parlamentar passará à autocensura, deixando de exprimir a opinião e a vontade dos eleitores que o elegeram.
Além disso, vão proliferar ações judiciais como a que resultou na condenação acima comentada do deputado Nikolas Ferreira. Essas processos equivalerão a uma reedição da indústria do dano moral e, sendo ajuizadas na primeira instância (já que desprovidas de natureza penal, sem a incidência do foro por prerrogativa de função previsto no art. 53, § 1º, da CF), acabarão arruinando de vez a imunidade material e a liberdade de expressão.
Só resta torcer para que esta colunista esteja errada e o julgamento tome o que se reputa ser o melhor rumo, reconhecendo a irresponsabilidade civil total, seja do Estado, seja do parlamentar, para opiniões, palavras e votos emitidos pelos parlamentares.
Sustação da ação criminal no caso Ramagem e a decisão do STF
Também no último dia 7 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou a suspensão da ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), com 315 votos a favor, 143 contra e 4 abstenções. A sustação foi promulgada na forma da Resolução 18/2025. Também foi a primeira vez em que a Câmara dos Deputados aplicou o art. 53, § 3º, da CF.
O assunto tinha sido adiantado aqui, ocasião em que se adiantou o principal ponto controvertido: parte dos crimes imputados na acusação teriam se iniciado antes da diplomação e supostamente não poderiam ser sustados.
Inclusive, como se noticiou aqui, depois o ministro Zanin chegou a enviar um ofício ao presidente Hugo Mota (Ofício eletrônico nº 5836/2025, de 24 de abril de 2025), registrando que somente os crimes de dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e de deterioração de patrimônio tombado poderiam ser sustados, já que apenas esses teriam sido cometidos após a diplomação. Ou seja, não seria possível paralisar a ação quanto aos crimes de tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada e tentativa de abolição do Estado democrático de Direito.
Pois bem. Quanto a essa questão, convém conhecer a fundamentação trazida pelo relator da SAP 1/2025, o deputado Alfredo Gaspar (União-AL), para a sustação integral da AP 2.668 (fruto do recebimento da Pet 12.100) em curso no STF, de forma integral. O parecer pode ser lido aqui.
Em síntese, a argumentação do relator para sustar integralmente foi a seguinte: os crimes imputados teriam se consumado ou perdurado após sua diplomação em 16 de dezembro de 2022, especialmente considerando que o crime de organização criminosa tem natureza permanente e que os crimes de abolição violenta e golpe de estado têm como elementares do tipo a violência ou grave ameaça, cuja ocorrência se deu apenas no 8 de janeiro de 2023, após a diplomação do deputado em 16 de dezembro de 2023.
Além disso, o relator mencionou a fragilidade dos indícios na denúncia contra o deputado, sugerindo que ele pode estar sendo submetido a uma “provável injustiça”. Registrou, ainda, uma “antiga e provável antipatia pessoal e política” por parte de um ministro do STF que, em 2020, suspendeu a nomeação do hoje deputado para o cargo de Delegado-Geral da Polícia Federal.
Outro aspecto que chamou a atenção na Resolução 18/2025 foi a sua amplitude: em relação a todos os crimes imputados ao deputado, bem como aos corréus, na medida em que a denúncia foi unificada contra todos os denunciados e também recebida de forma unida. O relator justificou melhor esse ponto na sessão do plenário.
No ponto, afirmou que a escolha de denunciar todos em conjunto foi do próprio Ministério Público, que a decisão de receber a denúncia da mesma forma foi do STF, que o art. 53, § 3º, da CF prevê a sustação do “andamento da ação”, e que não lhe caberia “restringir direito constitucional onde não cabe restrição”.
Nada obstante a solidez técnica da argumentação legislativa e a ampla maioria parlamentar a favor as sustação, no último dia 10 de maio, a 1ª Turma do STF decidiu por unanimidade manter a ação penal contra do deputado Ramagem quanto aos crimes de tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada e tentativa de abolição do Estado democrático de Direito. A discussão se deu em sede de questão de ordem (AP 2.668-QO).
Entendeu-se que a ação penal deveria prosseguir normalmente em relação aos demais crimes de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, pois somente os de dano qualificado e de deterioração de patrimônio tombado teriam sido cometidos após a diplomação, e que a sustação tem caráter personalíssimo, aplicando-se só ao parlamentar no exercício do mandato – pelo próprio enunciado da Súmula 245 do STF, “A imunidade parlamentar não se estende ao corréu sem essa prerrogativa” –, de modo que a Resolução 18/2025 da Câmara dos Deputados é inaplicável e não tem eficácia jurídica em relação aos corréus não parlamentares.
Pronto. Acabou o espaço da coluna e também a discussão sobre a sustação.