A complexidade das relações de trabalho no século 21 exige, de todos os poderes da República, não apenas vigilância normativa, mas sensibilidade institucional diante das transformações nos modos de produção, nas dinâmicas profissionais e nas expectativas de liberdade contratual, principalmente no período pós-pandemia de Covid-19.
Na última década, a denominada pejotização — termo popularmente utilizado para se referir à contratação de pessoas físicas por meio de pessoas jurídicas — tem estado no centro de um intenso debate jurídico, econômico e social. Tal fenômeno, comum a setores diversos como saúde, tecnologia, artes, engenharia e advocacia, ora é compreendido como legítima expressão da autonomia privada; ora é interpretado como artifício destinado a fraudar a legislação trabalhista e, por consequência, a arrecadação tributária.
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Entre esses dois polos, a atuação do Supremo Tribunal Federal tem sido decisiva e relevante para pacificar entendimentos, estabelecer parâmetros objetivos e, sobretudo, resguardar a segurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, pois dois ramos do direito se conectam quanto aos debates, o direito do trabalho e o direito tributário.
Foi com essa lógica de pacificação da jurisprudência e estabilização das relações jurídicas que o STF, ao examinar o Agravo no Recurso Extraordinário 1532603 (ARE 1532603), reconheceu a repercussão geral da matéria (Tema 1389), envolvendo a possibilidade de contratação de autônomos ou pessoas jurídicas para a prestação de serviços de natureza intelectual.
Assim, foi determinada a suspensão de todos os processos que versem sobre o tema, evitando-se, assim, decisões conflitantes que possam agravar a instabilidade jurídica.
A motivação para tal medida é clara: a Justiça do Trabalho, em inúmeras ocasiões, tem deixado de aplicar a jurisprudência firmada pelo STF, o que resulta em um cenário de insegurança jurídica, bem como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
O Supremo já pacificou o entendimento no sentido da possibilidade da pejotização, não se tratando de negar a importância do princípio da proteção ao trabalhador ou da repressão a fraudes contratuais. O que não se pode pacificar na jurisprudência é a presunção generalizada de ilicitude nas contratações realizadas entre partes plenamente capazes, com liberdade negocial e sem indícios concretos de subordinação típica da relação empregatícia. A presunção de má-fé ou vulnerabilidade, sem a devida demonstração nos autos, contraria não apenas a boa-fé objetiva, mas o próprio Estado de Direito.
Como se não bastasse, há também um conflito com a esfera tributária, ao passo que ao contratar uma pessoa jurídica, a empresa não precisa recolher as contribuições previdenciárias, gerando perda de arrecadação e interesse direto do fisco sobre o debate.
Tomemos como exemplo a recente decisão da 1ª Turma do STF, no âmbito da Reclamação 71838, que anulou decisão do Carf que havia mantido autuação fiscal baseada na suposta dissimulação de vínculo empregatício na contratação de engenheiros por uma empresa de projetos. O Carf entendeu, à revelia da jurisprudência da Suprema Corte, que os contratos entre a empresa e os profissionais, embora formalmente válidos, encobriam uma típica relação de emprego, caracterizando uma simulação abusiva com o objetivo de afastar o recolhimento de tributos.
O equívoco da instância administrativa, reconhecido pelo STF, residiu justamente em presumir a subordinação com base apenas em elementos formais, como a fixação de remuneração mensal e a ausência de estrutura própria por parte das pessoas jurídicas contratadas. Ao decidir, o relator, ministro Cristiano Zanin, enfatizou a ausência de demonstração concreta de vulnerabilidade ou imposição contratual. Acompanhado pelos ministros Luiz Fux e Alexandre de Moraes, concluiu que não é dado à autoridade fiscal presumir fragilidade jurídica onde há, na verdade, liberdade de contratar entre iguais.
Ademais, é relevante lembrar que a própria jurisprudência do STF, ao julgar o Tema 725 da repercussão geral, já havia consolidado o entendimento segundo o qual é lícita a terceirização de atividade-fim. Na mesma direção, foi declarada constitucional, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 66, a norma contida no artigo 129 da Lei 11.196/2005, que reconhece a validade da contratação de profissionais por meio de pessoa jurídica para a prestação de serviços intelectuais, sem que isso, por si só, implique vínculo empregatício.
A tensão entre autonomia da vontade e proteção trabalhista não é nova, mas se intensifica em tempos de transformação digital e reconfiguração das cadeias produtivas. A prestação de serviços por meio de pessoas jurídicas — quando realizada com transparência, autonomia e equilíbrio — responde a uma demanda legítima de flexibilidade econômica, inovação organizacional e valorização da especialização técnica.
Negar, aprioristicamente, a validade dessas formas contratuais significa não apenas um retrocesso jurídico, mas uma hostilidade à realidade do mundo atual. A atuação do STF, neste sentido, reafirma que o Direito não pode ser inimigo da realidade social; ao contrário, deve compreendê-la e normativamente integrá-la.
Com a suspensão nacional dos processos que versem sobre a pejotização e a afirmação de que a decisão de mérito que será proferida no ARE 1532603 deverá ser obrigatoriamente observada por todos os tribunais do país, o Supremo reafirma sua missão constitucional de estabilização normativa e pacificação dos conflitos, efetivando a segurança jurídica.
Frise-se que o STF não admitiu a violação das regras trabalhistas, necessárias à proteção da dignidade do trabalhador, mas exigiu uma análise casuística acerca da existência ou não do vínculo, pois é óbvio que um advogado conhece suficientemente seus direitos para escolher o melhor modelo de contratação para si. Assim, com a posição do STF até aqui adotada, a análise precisa ser técnica e não ideológica do caso concreto.
Exige-se, por parte da Justiça do Trabalho, do Carf e de todos os intérpretes da norma, um exame qualificado da existência ou não de subordinação jurídica, pessoalidade, habitualidade e onerosidade — elementos que definem a presença do vínculo empregatício. Fora disso, vigora o princípio da liberdade contratual e da dignidade da livre iniciativa.
Na esfera tributária, a intervenção do Supremo também tem efeitos relevantes, ao coibir autuações baseadas em análises subjetivas e não em elementos objetivos que caracterizariam a fraude. O contribuinte tem direito à previsibilidade na aplicação da lei e à estabilidade das normas. A decisão da 1ª Turma, ao anular o julgamento da 2ª Turma da Câmara Superior do Carf, reafirma que as autoridades fiscais não estão autorizadas a construir presunções generalizadas de infração, sobretudo quando a jurisprudência do STF é pacífica em sentido contrário.
Os efeitos dessa decisão se irradiam não apenas sobre o caso concreto — que envolvia autuação sobre contratos de engenharia —, mas sobre todo o ordenamento jurídico brasileiro.
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Resta claro da decisão proferida pelo Supremo que no Estado democrático de Direito não cabe um contencioso arbitrário, pautado em suposições e não em provas.
A estabilização da jurisprudência pelo STF é condição essencial para o desenvolvimento econômico, para a liberdade de iniciativa e para o respeito às legítimas escolhas dos cidadãos, pois sem segurança jurídica instala-se a crise de confiança, que é economicamente avassaladora.
Por fim, não se pode afastar que a Constituição de 1988 consagra os dois princípios: o valor social do trabalho e o da livre iniciativa, não havendo hierarquia entre eles, de modo que a definição acerca do instituto da pejotização e sua efetiva possibilidade vai trazer paz social e equilíbrio nas relações entre empresa, contratado e fisco.