O Governo de São Paulo aprovou um plano de remoção de 831 famílias que moram na favela do Moinho, a última no centro da cidade de São Paulo, sob a justificativa de transformar a área em parque.
Segundo Marcelo Branco, secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, essa é “uma das áreas mais degradantes da cidade”, razão pela qual “não podemos ter pessoas vivendo nessa condição sub-humana e de risco”[1]. No entanto, os argumentos de defesa dos direitos humanos estão camuflados de violações desses mesmos direitos.
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A Constituição de 1988 garante, em seu artigo 5º, XXIV, a desapropriação ordinária, quando há interesse público (necessidade e utilidades públicas, ou interesse social). O Decreto-Lei 3.365/1941, ainda, proíbe a desapropriação feita pelos estados em face de imóveis da União, exceto em caso de acordo entre os entes federativos (como pode ocorrer no presente caso[2]).
Assim, desapropriar para criar um parque pode, em tese, configurar hipótese de utilidade pública nos termos da Constituição. Contudo, para que a desapropriação seja legítima, é necessário que não haja violações de direitos. Este artigo demonstrará que a intervenção configura projeto de gentrificação, em afronta a diversos direitos humanos.
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) anunciou um projeto de “requalificação” ou “revitalização” do centro de São Paulo, que inclui a instalação de um novo centro administrativo.[3] Os termos utilizados (requalificar, revitalizar) carregam uma retórica de aparente neutralidade, mas ocultam um projeto de transformação urbana excludente.
Segundo Neil Smith, gentrificação é o processo de conversão de áreas habitadas por classes trabalhadoras em bairros de classe média, por meio da reabilitação do conjunto de edificações residenciais já existentes.[4] Revitalização remete a dar vida a algo que está morto e, para aqueles que conhecem minimamente o centro de São Paulo, não há nada morto na região.
A escolha das palavras – revitalização ou requalificação, este um mero eufemismo – já traduz, em si, o projeto higienista que levará ao agravamento de um processo de gentrificação em curso, em violação aos direitos à moradia e à cidade (artigo 6º da CRFB).[5] Configura, assim, uma antipolítica pública, como nos casos da antiga favela do Buraco Quente e do despejo forçado do Pinheirinho. [6]
Basta andar pelo centro para concluir exatamente o contrário do que se anuncia pelo governo do estado. A começar pelo Theatro Municipal, passando pelo Sesc 24 de Maio, obra-prima da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, onde há atividades culturais em seus treze andares, como shows, oficinas, peças de teatro e esportes, além de sua piscina, localizada no topo. Chamam a atenção a Praça das Artes, os icônicos Edifícios Itália e Copan — este último projetado por Oscar Niemeyer e habitado por mais de cinco mil pessoas —, a Catedral da Sé e o imponente Edifício Martinelli, que vem sendo palco de eventos culturais noturnos.
Destacam-se ainda a Biblioteca Municipal Mário de Andrade e o Teatro Oficina, este último projetado por Lina Bo Bardi e Edson Elito, cenários de espetáculos históricos dirigidos por José Celso Martinez Corrêa, como “Roda viva”, de Chico Buarque e “O rei da vela”, de Oswald de Andrade, dedicado a Glauber Rocha.
A diversidade do centro se evidencia também nas Galerias do Rock e Metrópole, ou nos encontros em bares e restaurantes na praça Dom José Gaspar, no entorno do Vale do Anhangabaú ou da praça Roosevelt de seus teatros.
Vê-se, portanto, que se há algo que existe no centro de São Paulo é vida – e vida pulsante.
A história do centro, todavia, nunca passou ilesa aos mandos e desmandos dos donos do poder. Escondidos sob a urbanização da cidade há diversos rios e córregos [7], tristes vítimas da vitória do projeto rodoviarista de Prestes Maia sobre o de Saturnino de Brito, que priorizou a ocultação dos cursos naturais d’água em nome de uma cidade voltada para o automóvel, ao contrário do projeto de Saturnino de Brito, que previa sistemas de drenagem e maior respeito à natureza – tal como hoje compreendido pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconhece a natureza como sujeito de direitos (OC/23 e Caso La Oroya vs. Peru, 2024)[8].
Poderíamos lembrar, ainda, do centro de São Paulo como o ponto de convergência de diversas rotas indígenas[9], posteriormente utilizadas, todavia, pelos Bandeirantes, para viabilizar a escravização indígena e seu projeto genocida.
A história agora se repete, em outros termos. Em uma tentativa de ocultar aquilo que a cidade não quer enfrentar – a face mais dura da exclusão social –, o local da cracolândia tornou-se alvo de novas disputas. A existência da cracolândia é uma das motivações para a “revitalização” do centro.[10] A intolerância à presença dos usuários de drogas no centro é, em verdade, um espelho incômodo das profundas contradições do país.
Pressionar o tráfico e usuários evidencia antes a política de invisibilização da pobreza, marcada por práticas de despejos forçados e policização da vida. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos em seu artigo 1.1 veda expressamente a discriminação por posição econômica. O Comitê do PIDESC, em seu Comentário Geral 7, proíbe os despejos forçados, assim como a Resolução 17/2021 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
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A lógica, enfim, é semelhante àquela que orientou a criação das UPPs no Rio de Janeiro. Como adverte Vera Malaguti Batista sobre o tema: “território pacificado, pobres controlados, campo aberto para o projeto de gestão policial da vida.”[11] Lembra, ainda, a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, que “o modelo perseguido é o do shopping center (…) é contra os pobres (…). O modelo quer os pobres fora do centro”.[12]
Nesse sentido, é imprescindível que o tema da desapropriação seja tratado com a perspectiva da interdependência dos direitos humanos porque a violação aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais geralmente leva à violação aos direitos civis e políticos.
Isso é reforçado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos[13], no relatório Pobreza e Direitos Humanos: a vida das pessoas nas favelas “transcende a mera falta de acesso a uma moradia digna”, acompanhando-se da falta de acesso à saúde, educação, água potável e outros serviços básicos”. Na verdade, certos grupos em situação de pobreza, como é o caso da favela Moinho, estão submetidos a “altos níveis de discriminação estrutural e exclusão social”, que “tornam ilusória sua participação cidadã, seu acesso à justiça e o exercício efetivo de seus direitos”.[14]
Darcy Ribeiro fazia do moinho uma alusão à máquina de gastar gente que resultou da formação do povo brasileiro, destacando o sofrimento e a exploração de nosso povo, fruto da escravidão e da colonização. Este moinho de gastar gente se atualiza. Quando Cartola escreveu a música O mundo é um moinho, não pensava sobre o que a favela Moinho vivenciaria, mas, sem dúvidas, anunciou o que estava por vir. O moinho é a representação de políticas públicas maquiadas de proteção de direitos humanos para a gentrificação social.
“Ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida, vai triturar teus sonhos (…) vai reduzir as ilusões a pó”.
O mundo é o moinho?
[1] https://www.habitacao.sp.gov.br/habitacao/noticias/governo-de-sao-paulo-inicia-mudancas-de-familias-da-favela-do-moinho-com-86-de-adesao-da-comunidade [acesso em 24/04/2025]
[2] Há uma negociação em curso, envolvendo a cessão do terreno pela União ao Estado: https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2025/04/24/remocao-de-moradores-da-favela-do-moinho-no-centro-de-sao-paulo-gera-embate-entre-gestoes-tarcisio-e-lula.ghtml [acesso em 28/04/2025]
[3] https://www.parceriaseminvestimentos.sp.gov.br/projeto-qualificado/centro-administrativo-dos-campos-eliseos/
[4] Tradução livre de: “Gentrification is the process of converting working class áreas into middle-class neighborhoods through the rehabilitation of the neighborhood’s housing stock”. SMITH, Neil Smith. Toward a Theory of Gentrification A Back to the City Movement by Capital, not People, Journal of the American Planning Association, 45:4, 538-548. In: https://doi.org/10.1080/01944367908977002 [acesso em 29/04/2025].
[5] Em 2017, no Governo de João Dória, Raquel Rolnik já formulava esta mesma crítica. Nesse sentido: https://exame.com/brasil/a-dificil-missao-de-recuperar-o-centro-de-sp-e-modos-de-fazer/ [acesso em 29/04/2025]
[6] https://www.brasil247.com/blog/a-gentrificacao-da-favela-do-moinho-tarcisio-reedita-o-buraco-quente e https://www.brasildefato.com.br/2022/01/22/10-anos-do-pinheirinho-memoria-esta-viva-as-vesperas-de-centenas-de-despejos-agendados/ [acesso em 27/04/2025]
[7] Anhangabaú, Tamanduateí, Piratininga, Piranga. Anhagá, em Tupi, significa o espírito protetor da caça e da natureza.
[8] Como já analisado pela autora Raquel Guerra no artigo publicado no Jota: https://www.jota.info/artigos/a-primeira-condenacao-de-um-estado-por-contaminacao-ambiental-causada-por-empresa [acesso em 27/04/2025]
[9] Como a conhecida rota do Peabiru, que os levava até o Peru.
[10] https://www.intercept.com.br/2025/04/15/tarcisio-moradores-do-moinho-favela/ [acesso em 27/04/2025]
[11] BATISTA, Vera Malaguti. O alemão é muito mais complexo. Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 3, n. 5, p. 103-125, jul./dez. 2011. In: http://memoriadasolimpiadas.rb.gov.br/jspui/bitstream/123456789/21/1/SG002%20-%20BATISTA%20Vera%20M%20-%20o%20alemao%20e%20muito%20mais%20complexo.pdf [acesso em 27/04/2025].
[12] MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo, Expressão Popular, 2015, pp. 62-63.
[13] A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão semijudicial da Organização dos Estados Americanos, responsável pelas funções de promoção e defesa dos direitos humanos nas Américas.
[14] CIDH. Informe sobre pobreza y derechos humanos en las Américas: aprobado por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, el 7 de septiembre de 2017.