O cuidado no sistema prisional: aproximações possíveis e necessárias

Desde 2018, no centro de Belo Horizonte, funciona um estabelecimento voltado para um nicho de mercado pouco explorado: a Loja do Preso. Fundada por Péricles Ribeiro, após viver 83 dias de detenção, a loja vende produtos adequados às normas do sistema prisional de Minas Gerais: itens de higiene pessoal, alimentos, chinelos e, até mesmo, roupas apropriadas para as visitas.

Além de comercializar produtos, a loja também orienta os seus clientes quanto às regras de cada unidade. Desta forma, o estabelecimento atende às necessidades tanto dos detentos quanto de suas famílias. Com um fluxo de mais de 500 fregueses por mês, a Loja do Preso possui 46,6 mil seguidores no Instagram e mais de 3.000 curtidas em alguns de seus vídeos.

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Todo o universo que envolve a experiência carcerária tem ganhado cada vez mais repercussão nas redes sociais, especialmente no TikTok, e elas não se resumem à loja. Conteúdos produzidos por mulheres que visitam seus companheiros também têm recebido bastante atenção. Em suas postagens, elas abordam suas experiências cotidianas: os desafios que enfrentam, a saudade constante, os sofrimentos diversos, as regras a que estão também submetidas e os estigmas que as atravessam.

O compartilhamento de tais experiências, somado ao vínculo fraterno que une os companheiros dessas mulheres atrás das grades, faz com que se refiram umas às outras como “cunhadas”. 

Neste ponto, você pode estar se perguntando: mas o que é que a Loja do Preso e as “cunhadas” têm em comum, além do crescente engajamento nas redes sociais?

Nós propomos discutir ambas como soluções para a vida atrás das grades. Isto é, maneiras, estratégias, construídas a fim de atender as necessidades daqueles que se encontram encarcerados, oferecendo dignidade e bem-estar. Atividades que, como essas, são voltadas à reprodução e à manutenção da vida, compõem aquilo que nomeamos cuidado. Esses dois movimentos são identificados como práticas de cuidado que, em alguma medida, possibilitam suprir demandas dos grupos sociais que permeiam os espaços carcerários.

Cuidado e ambiente prisional podem parecer, em um primeiro olhar, temas distantes, duas realidades que não se encontram, que dificilmente se esbarram. Isso ocorre, entre outros motivos, porque o cuidado costuma nos remeter ao ambiente doméstico; ele é ilustrativo, na maioria das vezes, da vida privada.

Tal vinculação é mais do que uma simples coincidência, já que, no Brasil, o cuidado é considerado uma obrigação das famílias, as quais devem se organizar, como podem, para provê-lo a seus membros, em especial, crianças, adultos dependentes e idosos. A partir desta organização, são as mulheres que se tornam suas principais provedoras, constituindo a divisão sexual do trabalho. 

Essa responsabilização decorre da crença de que mulheres são naturalmente propensas e aptas ao cuidado, principalmente porque há uma vinculação destas atividades aos sentimentos de amor e carinho, associados ao universo feminino. Para além da evidente desigualdade de gênero na distribuição destas tarefas, esses sentimentos encobrem as noções de dever e obrigação.

Em um movimento síncrono, em uma equação perfeita e alinhada, mesmo as poucas famílias brasileiras cujas condições financeiras permitem a contratação dos serviços substitutos entregam o cuidado nas mãos de mulheres. Nesses casos, à desigualdade de gênero, são ainda articuladas as desigualdades de raça e classe. 

O problema se torna ainda mais complexo quando toda essa realidade é transposta para o ambiente carcerário, onde o cuidado é responsabilidade do Estado. Em seu braço penal, o Estado se torna aquele que retira o direito de ir e vir, enquanto deve assegurar os demais. 

Ocorre que, diante da negligência dessa atribuição, há um compartilhamento, de facto, do cuidado do preso com a família e o mercado. Como poucos outros contextos, o sistema prisional propicia o encontro destes três grupos de atores e, assim, constitui uma configuração específica dos cuidados, carregada de disputas e tensões. 

Acreditamos que, para compreender como se dá o cuidado na prisão, devemos superar duas supostas dicotomias.

A primeira delas é a constituída pelo abandono e pela assistência. A prisão é frequentemente representada como o lugar da punição, onde a violência, o abandono institucional e a violação de direitos se sobrepõem ao cuidado. Ao nosso ver, este imaginário borra as complexidades das dinâmicas prisionais e da existência – mesmo que limitada e precária – de práticas de cuidado em seu cotidiano. É necessário reconhecer que, ao mesmo tempo que o sistema prisional impõe condições degradantes, ele também depende do cuidado para o seu funcionamento.

A segunda dicotomia é formada pelo cuidado e pela violência. Apesar de os benefícios do cuidado estarem implícitos em sua definição, devemos reconhecer que sua provisão também pode implicar não apenas desigualdades, mas também violência e controle. No cárcere, a noção de controle é central, atravessando o abrir e o fechar de seus portões e, sobretudo, as decisões sobre quem entra e quem sai e o que podem, ou não, carregar consigo. Assim, o Estado administra a escassez material imposta às prisões e, consequentemente, aos funcionários, aos internos e às suas famílias. 

Movidas por afetos, responsabilidade moral e compromisso com os laços familiares, mulheres e mães de presos organizam as suas rotinas para preencher as lacunas deixadas pelo Estado. Elas montam “jumbos” com alimentos e itens de higiene – como aqueles vendidos pela  Loja do Preso -, escrevem cartas e fazem transferências financeiras. Percorrem grandes distâncias, se hospedam em cidades próximas às unidades prisionais e mobilizam redes de apoio formais e informais para acelerar processos. 

Tais práticas impactam diretamente no orçamento familiar, nas relações sociais e expõem estas mulheres, suas crianças e comunidades a estigmas. Todas elas são registradas e compartilhadas pelas “cunhadas” nas redes sociais.

Essas estratégias cotidianas demonstram que o cuidado prisional se dá por redes que atravessam políticas institucionais. Diante da negligência do bem-estar dos presos e da transferência da responsabilidade por eles, tais redes geram soluções criativas e práticas para enfrentar os desafios do encarceramento. 

Nesse cenário, emergem iniciativas como a Loja do Preso e os conteúdos das “cunhadas” nas redes sociais – experiências que, embora distintas, se estruturam como respostas coletivas ao abandono estatal e possibilitam ampliar nossos entendimentos sobre a relação entre o cuidado e o cárcere. 

No caso da Loja do Preso, o cuidado é compreendido como provisão material, isto é, fornecimento de itens essenciais à sobrevivência e à dignidade dos presos. Para as “cunhadas”, mais do que uma prática cotidiana, o cuidado emerge como um sentido produzido. 

Ao se tornarem criadoras de conteúdo, essas mulheres convertem o forte estigma que enfrentam por seus vínculos com homens encarcerados em visibilidade, acolhimento e pertencimento.

A comunidade digital formada em torno da hashtag #mulherdepreso revela como o cárcere organiza os laços de solidariedade para além dos muros e, assim, dá origem a novas formas de família, linguagem e identidade. A hashtag funciona, ainda que não explicitamente, como um símbolo político, que transforma a dor em laço e a rotina em manifestação pública.

Ao reconhecermos estas formas de cuidado, sejam elas individuais ou comunitárias, também ampliamos o olhar sobre o sistema prisional, para além das dinâmicas intramuros. Essas práticas revelam a potência das redes afetivas e sociais na sustentação da vida dentro e fora das grades, mesmo em meio à precariedade e às violações de direitos. 

Essas práticas também nos convidam a repensar a responsabilidade estatal diante das altas taxas de encarceramento e os papeis historicamente atribuídos às mulheres nesse processo. Falar sobre cuidado no cárcere é, assim, falar tanto sobre a reprodução das desigualdades de gênero, raça e classe quanto sobre resistência e cuidado como prática política.

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