Não é preciso conhecer muito de religião nem de história para entender o que pretenderia um novo papa que escolhesse o nome de Francisco II. Quem tem mais de 30 anos tem a noção de que um João Paulo III ou Bento XVII tenderia a ser mais conservador que o último pontífice. Já Leão XIV ou Pio XIII exigiriam para a maioria algumas pesquisas para desvendar sentidos já claros para católicos, de orientações diferentes, que defendem a volta do espírito associado a esses nomes.
Sem internet, ainda na Capela Sistina, o novo papa terá segundos para anunciar esta primeira decisão, que nunca poderá ser alterada e servirá como uma espécie de programa de governo em uma ou duas palavras: qual nome adotará dali em diante. Desapegado e modesto que seja, cada um dos cardeais trancados a chave, por precaução e consciência do simbolismo, precisa estar preparado para dar essa resposta.
No novo batismo pós-conclave, Joseph Ratzinger virou, para sempre, Bento XVI, evocando ao mesmo tempo o papa da 1ª Guerra Mundial e São Bento, na esperança (afinal vã) de restaurar a Europa como centro da fé tradicional. Jorge Mario Bergoglio trouxe um nome novo depois de mil anos, transformando-se em Francisco para não deixar dúvidas sobre a mensagem de simplicidade pessoal e foco nos marginalizados.
Abaixo, uma análise breve do que pode significar para a Igreja Católica a escolha de um dos nomes mais cotados até aqui:
João XXIV
É o nome que lidera as bolsas de apostas, associado ao favoritismo de Petro Parolin. A imprensa italiana traz mais de um relato de que Francisco chamaria, brincando, o seu secretário de Estado de João XXIV, o que poderia indicar preferência, mas também a crítica bem-humorada à quase campanha do cardeal nos últimos anos. Mais de 8% dos papas se chamaram João, nome mais comum entre os 266 pontífices reconhecidos pelo Vaticano. E só o último interessa como mensagem hoje: João XXXIII. Eleito em 1958 às vésperas de fazer 77 anos, ele foi escolhido para um pontificado curto e de transição. A inflexibilidade do tempo confirmou a primeira expectativa, mas a segunda foi esmagada pelo papa. Ele pôs em marcha a maior mudança da Igreja em séculos ao convocar o Concílio Vaticano II, que substituiu o latim pela língua de cada país nas missas e abriu caminho para a modernização da relação com os fiéis. Um João XXIV empolgaria quem prefere uma Igreja mais ligada ao mundo moderno, menos fechada nas tradições. E poderia aprofundar a resistência, que beira o cisma, de católicos tradicionalistas, que veem nas inovações uma ruptura sem base na tradição da Igreja nem no texto bíblico.
Paulo VII
É o nome para um papa que tente manter as reformas com uma velocidade menor e um discurso que cause menos fricção com os conservadores. Não que o último Paulo tenha tido sucesso total nessa tarefa. Sucessor de João XXIII, Paulo VI deu continuidade ao concílio Vaticano II e se incumbiu de implementar as decisões aprovadas, mas ante resistência de conservadores, tentou uma conciliação. Desagradou os dois lados. Os tradicionalistas pressionaram sem sucesso pela volta da missa em latim. Os modernistas não se conformaram com a decisão do papa de passar por cima de uma comissão de especialistas que recomendou a autorização de uso de anticoncepcionais. Sua reputação foi suficiente para conter os opositores mais radicais, mas uma longa convalescença comprometeu a capacidade de ação nos últimos anos.
Pio XIII
O sonho dos mais tradicionalistas, que torcem pelos cardeais Sarah, Burke ou Erdo seria um novo Pio. Ainda que Pio XII seja objeto de discussões sobre o nível de resistência que impôs ao nazismo, desde Pio VIII o nome carrega a marca do conservadorismo e do foco na doutrina. Pio IX, papa entre 1846 e 1878, é o responsável pelo dogma da infalibilidade papal e por uma decisão com consequências para católicos e não católicos até hoje: foi ele quem endureceu a posição da Igreja sobre o aborto. Antes, havia vigorado por três séculos a decisão de Gregório XIV, que na prática permitia o aborto nos meses iniciais. Pio X (1903-1914) combateu o modernismo e, ao lado de medidas para evangelizar crianças, estimulou o canto gregoriano nas missas. A Sociedade de São Pio X, grupo que se rebelou contra as reformas do Vaticano II, é uma das interessadas em uma guinada que reaproxime a Igreja de ideias mais tradicionais, mas um Pio XIII agradaria a amplos setores católicos, incomodados com o que consideram “falta de clareza doutrinal” de Francisco. A benção a casais homossexuais e até a comunhão para divorciados teriam pouca chance de seguir sendo aceitas sob um novo Pio.
João Paulo III
Os nomes também mudam de significado. Um João Paulo III hoje seria visto como um conservador, continuador da obra do polonês Karol Wojtyla, o polonês carismático que criou a figura do papa globetrotter e abraçou os meios de comunicação enquanto combatia o comunismo e revertia lentamente o impulso modernizador dos antecessores. Mas o primeiro João Paulo queria exatamente aprofundar as reformas da Igreja, o que indicou na escolha do nome duplo, homenagem inédita aos dois antecessores imediatos. Como morreu depois de apenas 33 dias de pontificado, João Paulo I deixou pouco mais que um nome (e teorias da conspiração sobre as circunstâncias de sua morte). A tragédia da morte inesperada legou ao sucessor pouca margem para que adotasse outro nome. Os cardeais africanos, que tendem ao conservadorismo em doutrina e moral, são vistos como simpáticos a estender o legado do primeiro papa que visitou o continente na era moderna. É o caso de Robert Sarah, da Guiné, e de Peter Turkson, de Gana, um dos poucos indicados ao colégio cardinalício por João Paulo II que ainda têm idade para votar. O arcebispo de Budapeste, Peter Erdo, compartilha com Wojtyla o anticomunismo, a origem no Leste Europeu e a concepção doutrinária. O patriarca de Jerusalém, Pierbatista Pizzaballa, visto como um possível candidato de conciliação, também poderia ser um João Paulo III, mas para indicar uma igreja global, ligada a temas políticos. E para buscar no carisma dos dois antecessores de mesmo nome (ou dos quatro) uma ponte entre as correntes da Igreja.
Leão XIV
Em tempos de inteligência artificial e instabilidade política ligada a mudanças econômicas em todo o mundo, o papa que publicou a encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas) pode ganhar renovada relevância como inspiração para o novo pontífice. O texto assinado por Leão XIII em 1891 é a pedra fundamental da doutrina social da Igreja, tendo proposto regras para o direito dos trabalhadores em uma sociedade transformada pela revolução industrial. Rejeitando o comunismo e socialismo e criticando os excessos do capitalismo, Leão XIII advogou por salários que garantissem a dignidade dos trabalhadores. O nome também é associado a um dos episódios mais dramáticos da história do papado, envolto em lendas após mais de 1500 anos: o encontro de Leão I com Átila, o Huno. Na versão mais conhecida, o papa foi ao encontro do líder bárbaro que devastava a região em torno de Roma e o convenceu a poupar a cidade. Se foram as palavras cristãs, um resgate em ouro ou qualquer outro acordo o que fez Átila recuar é impossível saber, mas até hoje Leão I é um dos poucos papas a carregar o epíteto “O Grande”. O filipino Luis Antonio Tagle, Pierbatista Pizzaballa e o arcebispo de Bolonha, Matteo Zuppi, são vistos um possível Leão XIV.
É sempre possível que venha um novo nome, como ao fim do último conclave. Ou que um cardeal homenageie um dos dois últimos papas.
Um Francisco II certamente empolgaria a multidão na Praça de São Pedro, mas marcaria desde o início o novo pontífice como um continuador das virtudes e também do que seus rivais veem como os defeitos do último pontificado. Os conservadores que se sentem marginalizados e temem uma Igreja que se afaste da “clareza doutrinal” podem ser incentivados a adotar desde o princípio uma oposição aberta.
Um Bento XVII é mais improvável. Por mais respeitado que o penúltimo papa seja intelectualmente, a renúncia que encerrou seu pontificado é vista como o reconhecimento do fracasso em enfrentar as resistências internas da burocracia vaticana. O ato, ainda que considerado corajoso, embute uma derrota administrativa e política da ala mais conservadora que teve no cardeal Ratzinger um campeão ao longo do papado de João Paulo II.
Outros nomes em desuso há séculos podem ressurgir na forma de Gregório XVII, Júlio III, Urbano IX e Clemente XV. Todos têm antecessores que podem inspirar novos papas, ao mesmo tempo que carregam o peso de épocas de cruzadas, inquisição e colonialismo. Uma carga que talvez o novo pontífice não queira carregar.
E o cardeal que assumir o trono de São Pedro pode preocupar também em não chegar muito marcado antes de começar a agir. O próprio João XXIII, ao escolher o mais congestionado dos nomes, deu a entender que queria diluir esta carga da história: “Quase todos tiveram um breve pontificado. Preferimos esconder a pequenez de nosso nome por trás desta magnífica sucessão de pontífices romanos”.