Uma decisão recente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está em destaque na imprensa: a proibição do comércio de uma linha de creme dental no Brasil. A decisão do órgão pela suspensão das vendas responde a queixas de reação alérgica por parte de usuários do produto. Na mesma toada, em abril, a Anvisa proibiu a fabricação e comercialização de lâmpadas fluorescentes utilizadas em câmaras de bronzeamento artificial, banidas desde 2009.
Esses são apenas alguns dos exemplos para as discussões sobre até onde vai o papel das agências em regular – ou até proibir – produtos.
O artigo 196 da Constituição Federal diz que é dever do Estado reduzir risco de doenças e agravos à saúde – e a Anvisa é a agência com a função de proteger a saúde da população brasileira. Contudo, a responsabilidade do sistema regulatório não se limita ao veto de produtos, mas a responder com agilidade, evidências e transparência às demandas da sociedade. Entre a proibição e a regulação, existe uma série de circunstâncias avaliadas antes da decisão que pode impactar os rumos de um produto dentro de um país – e também no mercado internacional.
Nesta quinta-feira (8/5), às 10h, a Casa JOTA debate o papel das agências reguladoras, ao lado de juristas e especialistas em saúde pública. O evento terá transmissão ao vivo no canal do JOTA no YouTube e conta com patrocínio da Philip Morris Brasil
O que cabe às agências sanitárias
As agências reguladoras do ramo da saúde têm como premissa a proteção da saúde pública por meio da regulamentação não só de produtos, como também de serviços que envolvem risco sanitário. Embora compartilhem funções semelhantes – como registro, monitoramento e fiscalização de alimentos, remédios, cosméticos, produtos de higiene, insumos farmacêuticos, agrotóxicos, saneantes, suplementos e dispositivos médicos, por exemplo –, esses órgãos operam de acordo com as características jurídicas e culturais de cada país.
No Brasil, esse papel é desempenhado pela Anvisa desde 1999. Além dela, outros órgãos complementam o controle sobre a saúde pública. Por meio de unidades técnicas, o Ministério da Agricultura e Pecuária fiscaliza e inspeciona produtos de origem animal e vegetal, controla o uso de agrotóxicos, medicamentos veterinários e aditivos na produção de alimentos, cria regras para assegurar a segurança sanitária de alimentos exportados e importados.
Mas é a Anvisa que concentra a competência legal para restringir, condicionar ou proibir o consumo de substâncias e produtos que circulam no Brasil – mesmo que não sejam criminalizados. Esse poder regulatório deve ser baseado tanto em evidências científicas quanto princípios constitucionais.
“Ela atua com grande discricionariedade técnica e tem poder para classificar substâncias como proibidas, de uso altamente condicionado ou de uso restrito, ainda que não configurem crime”, explica Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da mesma instituição.
Aliás, ela participa da definição o que constitui uma droga ilícita ou de uso condicionado e controlado em território brasileiro, embora não decida sobre isso sozinha. “Quem define o que é ou não é uma droga é um ato infralegal do Poder Executivo Federal. E quem lidera esse processo é a Anvisa, em conjunto com o Ministério da Saúde e, em alguns casos, com participação do Ministério da Justiça”, adiciona o professor.
No plano internacional, a agência tem se aproximado de agências consolidadas como FDA (Estados Unidos), EMA (União Europeia), PMDA (Japão) e Cofepris (México). Esta última é referência na América Latina por adotar uma regulação baseada em risco e por sua atuação ágil em medicamentos e dispositivos médicos.
Em especial, a Anvisa tem conquistado destaque depois da integração a fóruns globais sanitários como o ICH, sigla em inglês para o Conselho Internacional de Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos de Uso Humano. Em 2024, o órgão se reelegeu como membro do Comitê Gestor da instituição até junho de 2026, sendo a única autoridade sanitária da América Latina a integrar o grupo.
“A Anvisa exerce um papel estratégico, alinhado às grandes agências internacionais. Esse processo de aproximação é cada vez mais formalizado por mecanismos de reliance e harmonização regulatória”, avalia Guillermo Glassman, especialista em direito administrativo e sócio do escritório L.O. Baptista. O termo citado pelo especialista se aplica à adoção de práticas colaborativas e de confiança regulatória, pela qual os países reconhecem mutuamente as avaliações e decisões a respeito do controle sanitário.
Semelhanças e diferenças entre modelos
Apesar da confiança conquistada e do alinhamento técnico em escala internacional, a agência não escapa de críticas. Isso se dá porque o complexo processo de regulação sanitária se submete às normas e valores de cada jurisdição. E o Brasil tem uma matriz jurídica com tendência a ser restritiva, de forma a limitar a atuação da agência frente a temas emergentes.
“A leitura clássica do princípio da legalidade no Brasil provoca um engessamento maior da atuação normativa da Anvisa em comparação com suas congêneres internacionais”, observa Henderson Fürst, professor de Bioética e Direito das Organizações de Saúde da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein.
Para se ter ideia, em relação a drogas consideradas de alto risco à saúde pública global, como heroína e cocaína, as agências têm acordos internacionais pelo controle de substâncias entorpecentes desde 1960. No entanto, para substâncias vistas com um risco menor, há mais liberdade para decidir como regulamentar.
“A escolha entre proibição e regulação depende muito da cultura política e das políticas de saúde locais. Países mais liberais tendem a adotar posturas mais permissivas; os mais conservadores optam por legislações e regulações mais rígidas”, explica Aith, da USP.
“A leitura clássica do princípio da legalidade no Brasil provoca um engessamento maior da atuação normativa da Anvisa em comparação com suas congêneres internacionais”
O Brasil está nesse segundo grupo: o país apresenta postura cautelosa quanto à regulação de produtos vistos como controversos, como os cigarros eletrônicos ou a cannabis medicinal. Assim, a agência, em geral, opta com maior frequência pela proibição total dos produtos em vez de modelos graduais de regulação com limites.
Já no caso dos Estados Unidos, a FDA (Food and Drug Administration) raramente proíbe de forma integral as substâncias ou produtos legalmente comercializados. Em vez disso, opta por impor exigências rigorosas de rotulagem, limites de composição, controles de publicidade e monitoramento pós-mercado. “Isso é o que acontece com produtos como adoçantes, corantes e dispositivos de nicotina”, analisa Fürst, do Einstein.
Outros países também seguem a lógica de limitar, com controle do risco, sem proibir. No Canadá, os cigarros eletrônicos são permitidos, no entanto estão sob rigorosa restrição de teor de nicotina e regras de publicidade, exemplo trazido por Glassman, do L.O. Baptista.
“A Alemanha adota o mesmo raciocínio para aditivos alimentares, ao fixar limites específicos de concentração. A Austrália também regula o uso de agrotóxicos e estabelece limites máximos de resíduos nos alimentos”, acrescenta. “Nesses casos, a ideia é criar um ambiente de risco controlado, com respeito à autonomia do consumidor, mas sem deixar de proteger a saúde pública”, complementa Glassman.
Qual a tendência global: proibir ou regular?
O cenário regulatório internacional caminha para tomar decisões baseadas em evidências científicas e debates democráticos, na visão dos especialistas. Para Aith, da USP, a construção de uma boa regulamentação é fruto de análise sobre riscos e benefícios – isso vale tanto para novos produtos, bem como para novas tecnologias e dispositivos digitais aplicados à saúde.
Enquanto isso, Fürst pontua que a regulação sanitária deve respeitar princípios constitucionais e preceitos fundamentais, como legalidade, livre iniciativa, liberdade econômica, prevenção e promoção à saúde e ao meio ambiente, desenvolvimento do conhecimento científico e estímulo ao mercado interno.
“Nem sempre, todavia, a regulação é adequada com o estágio atual do desenvolvimento científico”, opina. “O equilíbrio ideal se alcança por meio da atualização constante do sistema regulatório à luz da ciência e com participação de todos os atores envolvidos. Ou seja: mais do que proibir ou liberar, o foco deve ser na regulação proporcional, responsiva e dialogada”, avalia Aith.
“Mais do que proibir ou liberar, o foco deve ser na regulação proporcional, responsiva e dialogada”
Glassman, sócio do L.O. Baptista, concorda com a tendência de regular com restrição, em vez de vedação absoluta. “A proibição completa é reservada a casos extremos, como substâncias que trazem risco grave, imediato e incontornável à saúde. Para a maioria dos produtos e tecnologias, o que se observa é uma busca pelo gerenciamento de riscos: a regulação procura criar condições para o uso seguro, estabelecendo requisitos técnicos, limites de exposição ou advertências”.
Segundo ele, essa inclinação global dialoga com a ideia moderna de regulação como instrumento de promoção de escolhas informadas e de proteção coletiva, não somente como um mecanismo de veto. “De um lado, a autonomia individual é um valor fundamental – as pessoas devem poder fazer escolhas sobre o que consomem. De outro, quando essas escolhas geram riscos relevantes para terceiros ou para o sistema de saúde pública, o Estado tem o dever de agir para proteger a coletividade”, complementa.
Para acompanhar os riscos, ferramentas de apoio para a modernização dos processos regulatórios são possibilidades. A Análise de Impacto Regulatório (AIR) sistemática é um instrumento antecipatório dos efeitos práticos de uma nova norma antes de sua adoção, de forma que a regulação seja baseada em dados concretos. No Reino Unido, as AIRs são usadas desde a década de 1990; Canadá e Austrália também já têm histórico de aplicação em larga escala. No Brasil, essa ferramenta é obrigatória desde 2021, mas ainda se encontra em fase de consolidação.
“Nos últimos anos, surgiram diversos instrumentos regulatórios que possibilitam essa gestão de risco, como o sandbox regulatório e contratos de experiência regulatória”, explica Fürst. O primeiro permite testar produtos ou modelos regulatórios inovadores sob supervisão e regras temporárias. “O país começou a discutir o uso de sandboxes, com primeiros passos em outras áreas, como fintechs, mas ainda não há aplicação consolidada em vigilância sanitária”, diz.
Outro exemplo é a regulação baseada em risco, do inglês risk-based approach, modelo que prioriza a intensidade da regulação conforme o grau de risco oferecido pelo produto à saúde humana. O modelo é incorporado às agências reguladoras europeia e americana.
Essas duas agências também exploram o recurso de paineis científicos e comitês consultivos permanentes focados em alguns temas. O objetivo é que o mecanismo fortaleça a legitimidade das decisões e amplie a transparência dos processos. Mesmo permitido no Brasil, o modelo ainda é incipiente.
Países como Canadá, Austrália, França, Reino Unido e México têm investido em práticas de transparência regulatória, como audiências públicas, comitês plurais e publicações de relatórios técnicos em diálogo com a sociedade civil e comunidade científica.
Nessa linha, o fortalecimento da democracia sanitária é essencial para aumentar a legitimidade e efetividade das decisões da Anvisa, defende Aith, da Saúde PúblicaCon da USP. “Não é possível pensar em uma regulação adequada em vigilância sanitária sem participação social e científica. A Anvisa tem melhorado seus espaços participativos, mas ainda há bastante margem para avanços”, diz.
Assista ao debate sobre o papel das agências reguladoras, nesta quinta-feira (8/5), na Casa JOTA.