Peças de cristal são revestidas cuidadosamente com plástico bolha e embaladas em caixas de papelão de maior gramatura, sempre com os dizeres claros: “Cuidado! Frágil!”. Assim, também, um bebê recém-nascido é tratado com extremo zelo pelos pais, na maioria dos casos. Estas são expressões de que o ser humano, seja em suas relações sociais mais primitivas, seja em suas relações comerciais mais triviais, tende a proteger aquilo que é vulnerável.
Neste sentido, o conjunto de anúncios de aumento de tarifas de importação imposto pelos Estados Unidos aos seus parceiros comerciais, apelidado de “tarifaço de Trump”, é sintoma de algo de que o mundo já sente o cheiro há um bom tempo: a economia americana não se encontra mais na fronteira tecnológica e o capital já encontrou um novo endereço para orbitar seu centro: a China.
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Se é bem verdade que o socialismo e o comunismo nunca foram vividos em sua forma pura, idealizada, também é verdade que o livre comércio nunca existiu. A história recente de países tidos como desenvolvidos é recheada de ações protecionistas, afrontando a ideia prevalente no Consenso de Washington que reverberava a ideia do laissez-faire liberal. Tanto a concepção de não intervenção estatal, detalhada por John Stuart Mill, quanto o conceito da mão invisível do mercado que se autorregula, de Adam Smith, nunca foram concretizados de fato.
No entanto, o que os países atualmente desenvolvidos escondem é que a receita indicada aos países em desenvolvimento não é aquela que foi seguida por eles em seu processo de transformação tecnológica. É o que nos evidencia Ha-Joon Chang em seu livro Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva de 2004.
Estes países usaram consistentemente do poder de intervenção e proteção estatal para alcançar o apogeu de sua capacidade industrial e tecnológica e apenas após este ciclo passaram a defender o modelo liberal de comércio, sem tarifas. O retorno dos EUA às suas políticas tarifárias já executadas no passado é, neste sentido, sinal de que ele não lidera mais o capitalismo global e que busca intervir em sua estrutura produtiva de forma contundente.
Retorno porque, em 1791, Alexander Hamilton, um dos founding fathers e primeiro secretário do Tesouro norte-americano, já falava no clássico Report on Manufactures sobre a importância de preservar e dar competição às indústrias nascentes do país como uma forma de incentivar seu florescimento e fortalecimento, amparando meios de preservar a supremacia e independência americana:
A conveniência de incentivar as manufaturas nos Estados Unidos, que não faz muito tempo era considerada muito questionável, parece ser amplamente admitida neste momento.
Embora as medidas do presidente Donald Trump pareçam encontrar eco no ideário de Hamilton, elas não foram as únicas na era pós-globalização. Recentemente, Joe Biden defendeu o aumento de tarifas de importação de produtos chineses, cujas alíquotas para veículos elétricos passaram de 25% para 100%, a de semicondutores de 25% para 50%, a de células solares de 25% para 50% e as de aço e alumínio de 0%-7,5% para 25%.
Se é bem verdade que os EUA usaram extensivamente uma política tarifária protecionista até o fim da Segunda Guerra Mundial, existe algo de único no movimento atual. Não há uma busca de proteção a um parque industrial nascente, mas sim a tentativa de repatriação de um parque ora desenvolvido.
Trata-se também de uma busca desenfreada em barrar um processo de desindustrialização do país, que segundo o professor da Unicamp Rogério Moraes, começou com a migração das plantas fabris e dos empregos localizados em antigas cidades industriais do nordeste e meio-oeste norte-americano para os estados do sul, depois para o México e, por fim, para a Ásia.
O próprio termo Cinturão da Ferrugem, tão amplamente difundido e definidor das últimas eleições americanas, é símbolo da decadência industrial daquele país. Ele se refere a uma série de estados do nordeste e meio-oeste americano, que no passado possuíam indústrias pujantes, e que agora vivem a decadência econômica retratada de forma clara na vivência urbana, com casas e indústrias abandonadas, enferrujando a olhos nus.
Se a sobrevivência do capitalismo era uma questão para Schumpeter há 80 anos atrás, a pergunta que se impõe agora é se o capitalismo em suas experiências nas democracias liberais será capaz de frear o poder da desindustrialização provocada pela descentralização das cadeias globais de produção. Para tanto, ele terá que se utilizar dos até então famigerados, mas já conhecidos mecanismos de proteção: as tarifas.
Na era do rompimento de paradigmas e da rápida disseminação digital, imagens produzidas por inteligência artificial já satirizam a hipótese de americanos, brancos e obesos trabalhando em indústrias que retornarão ao país após a aplicação das tarifas, como espera o governo americano. Ignoram o fato de que a população negra e operária foi fortemente afetada pela desindustrialização, elemento crucial para entender a derrocada de Kamala Harris no último pleito.
Portanto, retiradas as camadas de agressividade, de manipulação da disputa por uma nova ordem mundial que se avizinha, a resposta de Donald Trump nos parece coerente diante da tentativa de recuperação de empregos no país e de atendimento às demandas legítimas de sua base eleitoral. Resta saber se os mecanismos conhecidos serão efetivos neste momento, afinal o parque produtivo repatriado pode não ser mais o mesmo, muito provavelmente será mais automatizado e com pouco poder para gerar emprego e renda.
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Os países competem entre si. Não só pelos recursos naturais, ou pela defesa de suas marcas culturais, mas também pela manutenção de suas estruturas produtivas, de organização social e de posicionamento geopolítico.
A chamada globalização cobrou um preço em forma de desindustrialização de muitos países e os EUA estão respondendo a este fenômeno, legitimamente, enquanto estado-nação. A dúvida que ainda resiste é se o faz em prol de um atendimento a uma demanda democrática de seus cidadãos ou a serviço do capital especulativo que pode ganhar, e muito, com a volatilidade dos mercados.