Recentemente, o ministro Gilmar Mendes suspendeu todos os processos trabalhistas sobre pejotização no país em razão de alguns juízes trabalhistas acharem que seguir a jurisprudência consolidada do STF era apenas uma opção.
O decano do STF não economizou nas palavras ao criticar o “descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho”, apontando que essa teimosia “tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”.
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Em outras palavras, a insistência em declarar qualquer contrato de pessoa jurídica (PJ) como se fosse vínculo empregatício fraudulento transformou o STF em uma constante terceira instância trabalhista.
Juízes de primeiro grau e tribunais regionais trabalhistas vinham ignorando reiteradamente precedentes vinculantes da Suprema Corte sobre matéria trabalhista. A terceirização irrestrita, por exemplo, foi considerada lícita pelo STF em repercussão geral anos atrás. Mas, na Justiça do Trabalho, prevalece a criatividade hermenêutica: muda-se o rótulo para “pejotização” e pronto, estaria justificado declarar fraude.
O confronto institucional ficou tão gritante que Gilmar Mendes viu “grande insegurança jurídica” nessa divergência voluntária. Em bom português, cada um decide conforme a própria “justiça”, e ignora-se o que diz a Corte Constitucional. Não surpreende que o ministro Gilmar Mendes tenha dado um freio nacional no tema para evitar a rebeldia judicial trabalhista, afinal, para alguns magistrados, seguir o posicionamento consolidado do STF virou questão de gosto.
O imbróglio revela algo maior: uma resistência institucional a reconhecer os modelos de trabalho do século 21. Vivemos a era em que tudo é fluido, inclusive as carreiras e formas de trabalho. Novas tecnologias e a economia gig criaram ofícios e contratos impensáveis décadas atrás, do motorista de aplicativo ao consultor PJ multifuncional. Mas a Justiça do Trabalho parece presa no âmbar da CLT de 1943, que não poderia prever as formas de contratos que surgiriam décadas depois. Ou seja, a lei trabalhista nasceu em uma era de emprego fordista e fechado – não admira que engasgue diante da uberização e da economia dos freelancers.
O problema é que, em vez de adaptar a interpretação da lei à nova realidade, parte dos juízes insiste em tentar encaixar a modernidade nos tipos arcaicos previstos na lei antiga. Ao tratar de formas de trabalho modernas, a Justiça do Trabalho revela uma espécie de pavor – uma alergia normativa àquilo que não se encaixa no molde celetista clássico. É quase como se o século 21 fosse uma grande fraude a ser combatida.
Essa postura ignora que pejotização e outras formas modernas de contratos de trabalho são consequências inevitáveis dos tempos atuais e não poderiam ser tratados a todo tempo como fraude inata, mas de evolução das relações produtivas. No entanto, parte do Judiciário laboral prefere tapar o sol com a peneira, tratando toda inovação como suspeita.
Essa resistência institucional tem um quê de corporativismo jurássico. Recorde-se que Gilmar Mendes, em outras ocasiões, já criticou duramente tal postura, chegando a rotular certos magistrados de “justiceiros trabalhistas” por agirem movidos por um missionarismo ideológico à revelia da lei posta. Muitas vezes juízes do trabalho se veem como salvadores dos oprimidos, mesmo que para isso precisem reinterpretar tanto a legislação reformista de 2017 quanto os entendimentos do STF.
O resultado dessa equação – juiz messiânico versus jurisprudência vinculante – só pode ser insegurança jurídica e choque entre instâncias. A autoridade do STF acaba afrontada e a credibilidade das instituições erodida. Não admira que o Supremo tenha reagido.
É importante observar que os mesmos juristas que bradam proteger o trabalhador contra a pejotização malvada parecem ignorar o lado B dessa hiperproteção legal: o empurrão de milhões de pessoas para a informalidade pura e simples. Hoje, quase 40% da força de trabalho brasileira labuta sem carteira assinada, sem nenhuma proteção celetista. São cerca de 40 milhões de trabalhadores informais em 2024 – número recorde histórico.
Enquanto o ordenamento promete a alguns felizardos um paraíso de estabilidade, FGTS, 13º salário e férias remuneradas, a realidade de quase metade dos trabalhadores é o limbo: zero direitos, zero segurança. É o resultado previsível de se tornar o emprego formal caro e raro.
Um estudo do professor José Pastore mostrou que os encargos e obrigações sobre a folha no Brasil equivalem a 103,7% do valor do salário. Ou seja, manter um empregado formal custa ao empregador mais que o dobro do que o trabalhador ganha. Com um custo desses, é óbvio que muitas empresas – e os próprios profissionais – buscam alternativas fora do modelo celetista tradicional para sobreviver.
A CLT, tão festejada por proteger, acaba protegendo uma minoria e excluindo a maioria. Regula-se tudo nos mínimos detalhes – e perde-se a capacidade de negociação direta e de compreensão mútua. O resultado dessa hiperregulação combinada com ativismo judicial é o aumento do famoso custo Brasil, a redução do emprego formal e a explosão do bico, do “PJ informal” e do trabalho precário.
Paradoxalmente, ao satanizar qualquer flexibilidade como “precarização”, termina-se por precarizar de verdade milhões de trabalhadores que ficam fora do alcance da lei. Mas a Justiça do Trabalho, ao que parece, prefere fingir que não é com ela. Fecha os olhos para os efeitos colaterais: para cada vínculo formal “salvo” à força, quantos deixaram de ser criados? Quantos acabaram demitidos ou nem contratados foram, obrigados a se virar como autônomos sem nenhum amparo?
É curioso notar que o próprio Estado brasileiro, de um lado, estimula a formalização via criação do MEI (Microempreendedor Individual) – com mais de 15 milhões de optantes em 2024, muitos dos quais prestando serviços como PJ –, mas, de outro, a Justiça do Trabalho trata esses mesmos fenômenos de microempreendedorismo como fachada ilegal.
Protege-se no discurso o trabalhador “hipossuficiente”, mas na prática nega-se a ele o direito de empreender por conta própria de forma transparente. Uma mão incentiva a regularização como pequeno empresário; a outra mão invisível do Judiciário prefere presumir fraude nessa escolha. Eis a contradição gritante: a pejotização pode ser tanto uma porta de formalização de quem estaria 100% informal, quanto um crime capital aos olhos de quem só enxerga o modelo único CLT. Depende de quem julga.
Está na hora de enfrentar o tema da pejotização com mais racionalidade. Demonizar toda contratação PJ como se fosse necessariamente exploração disfarçada é tão raso quanto achar que toda relação CLT é inviável. Há situações, sim, de abuso e fraude – casos em que a empresa obriga o trabalhador a abrir uma empresa unipessoal só para mascarar um emprego típico, fugindo de obrigações. Esses casos devem ser coibidos e punidos, sem dúvida.
Mas há também um universo crescente de trabalhadores altamente qualificados, autônomos por opção ou necessidade, empreendedores individuais, profissionais da economia digital, para os quais a relação tradicional de emprego não faz sentido ou não está disponível. Tratar todos por igual, com a presunção de fraude automática, é cegar-se à diversidade das relações de trabalho no século 21.
Em vez de travar uma guerra santa contra a pejotização, o Brasil deveria regulamentá-la com transparência, dando segurança jurídica tanto ao contratante quanto ao contratado, estabelecendo critérios claros, definindo o que caracteriza um verdadeiro autônomo PJ (grau de autonomia, possibilidade de recusa de tarefas, multiplicidade de clientes etc.) versus o que configura vínculo disfarçado (subordinação típica, exigência de exclusividade, controle de jornada estrito). Deve ser encerrada a dicotomia do oito ou oitenta.
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Ao reconhecer a pejotização como parte da evolução natural das relações de trabalho, podemos inclusive trazer mais pessoas para a formalidade, ainda que por uma via alternativa. Se houver regras justas que permitam ao profissional PJ contribuir para a previdência, ter acesso a benefícios mínimos (como já acontece via MEI, que garante aposentadoria, auxílio-doença etc.), e ao mesmo tempo gozar da flexibilidade que ele mesmo busca, teremos o melhor dos dois mundos: proteção básica e liberdade contratual.
O que não dá é manter um sistema esquizofrênico em que metade finge que contrata, outra metade finge que tem emprego, e todos vivem na insegurança da informalidade. Mais vale encarar a realidade de frente: o modelo de trabalho está mudando, queira ou não a velha guarda.
No fim das contas, a suspensão determinada por Gilmar Mendes serve como um chacoalhão necessário. Uma sacudida para lembrar que sentença trabalhista não é crença particular, mas ato jurídico que deve respeitar a lei maior e a jurisprudência vinculante. Serve também para expor a falácia de um sistema que se diz protetor, mas deixa milhões desprotegidos.
Resta torcer para que o STF, ao julgar o mérito do tema, estabeleça um equilíbrio para que a pejotização não seja considerada fraudulenta o tempo todo. Que venha uma decisão clara, equilibrada, que dê segurança jurídica a empresas e trabalhadores para celebrarem contratos civis legítimos sem medo de, anos depois, serem acusados de “fraude”.
Regular, profissionalizar e dar transparência à pejotização é caminho muito mais sensato do que tentar extirpá-la na marra. Ou a Justiça do Trabalho se atualiza e sai de 1943, ou continuará colecionando reveses e vendo a realidade escorrer por entre seus dedos – líquida, livre e insubmissa.