Proteção dos direitos fundamentais das mulheres desafia o constitucionalismo feminista multinível

O tema escolhido para nossa reflexão de 2025, nesta prestigiada coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional, é a trajetória dos direitos fundamentais das mulheres no constitucionalismo feminista multinível, com ênfase para os principais desafios que dificultam os diálogos constitucionais multiníveis entre o a jurisdição constitucional brasileira, em todos os seus níveis, e o sistema interamericano de direitos humanos.

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Sob o paradigma teórico do constitucionalismo feminista multinível, busca-se uma abordagem que reinterprete as normas constitucionais a partir da experiência histórica das mulheres brasileiras, promovendo a inclusão da perspectiva de gênero na formulação de políticas públicas e suas respectivas execuções por todas as instituições responsáveis pela conformação na vida brasileira do Estado Democrático de Direito.

A pesquisa aqui apresentada, feita a quatro mãos, contribui para a ampliação da discussão sobre o impacto das decisões da Corte Interamericana na proteção dos direitos fundamentais das mulheres no Brasil. A análise dos casos paradigmáticos analisados e processados pelo sistema interamericano de direitos humanos, como o famoso e multicitado caso Maria da Penha, demonstra que a atuação desse sistema interamericano, tanto por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos como da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sido decisiva para impulsionar reformas normativas e reforçar a responsabilidade estatal na promoção de mecanismos de proteção.

No entanto, não se pode deixar que reconhecer que a persistência de barreiras estruturais culturais, políticas e jurídicas também estão a indicar que o país ainda enfrenta desafios na implementação dessas diretrizes, o que reforça a necessidade de um diálogo constitucional multinível mais intenso e mais consistente entre o ordenamento constitucional interno e os compromissos internacionais.

O reconhecimento de que há desigualdades estruturantes entre homens e mulheres no Brasil exige pensar o direito constitucional como agente transformador, de modo que o constitucionalismo feminista não se esgota em um tempo em que se pretende alcançar a igualdade de gênero como meta histórica e social, mas, sim, de compreender que a construção de toda a estrutura do Estado Democrático de Direito deve refletir valores que contemplem a proteção de direitos fundamentais de todos os cidadãos e cidadãs que o legitimam.[1]

No cenário brasileiro, uma das evidências de que o constituinte tentou acolher demandas femininas é o fato de a palavra “mulher” constar expressamente doze vezes na Constituição de 1988, o que já denota uma preocupação em reconhecer direitos específicos, todavia, o simples registro no texto não assegura a efetividade das garantias fundamentais, sendo necessário complementar tais dispositivos com interpretações e políticas públicas voltadas a superar barreiras históricas.[2]

O constitucionalismo feminista mostra que, sem esse aprofundamento crítico, até mesmo preceitos constitucionais bem intencionados podem se tornar letra vazia, por isso, a presença de profissionais do direito e de estudiosas e estudiosos feministas, no debate constitucional, fomentará soluções mais abrangentes, mirando a construção de uma sociedade onde a igualdade formal e material coexistam.

No cenário da proteção internacional dos direitos humanos, destaca-se a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em julgamentos envolvendo o Brasil, nos quais o país tem sido demandado a corrigir omissões e aprimorar suas políticas públicas envolvendo principalmente a proteção da integridade física das mulheres brasileiras. A condenação internacional se consolida quando há evidências de que procedimentos internos falharam em garantir direitos fundamentais, resultando em violações continuadas.

Nesse sentido, a construção de uma jurisprudência que abarque a perspectiva de gênero surge como resposta às lacunas institucionais que invisibilizam a discriminação e a violência contra as mulheres no Brasil. O reconhecimento de que normas e práticas nacionais podem perpetuar padrões patriarcais impõe obrigações de reparação e adoção de políticas públicas efetivas. Tal enfoque confirma a importância de analisar casos exemplares que evidenciam essa tensão permanente entre o ordenamento interno e as recomendações e decisões interamericanas.

A relevância do caso de Maria da Penha no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos se destaca, a partir do momento em que se observa que sua história impulsionou a criação de um marco legal específico no Brasil para combater a violência de gênero.

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A denúncia, apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sob o número 12.051, expôs a omissão estatal na responsabilização do agressor, que tentou matar Maria da Penha por duas vezes e permaneceu em liberdade por um longo período. Essa falta de celeridade processual revelou um cenário de impunidade e negligência com as vítimas de violência doméstica, transparecendo a fragilidade do aparato institucional.[3]

Diante das denúncias, a Comissão Interamericana reconheceu que o Estado brasileiro não dispunha de mecanismos eficientes para coibir a prática de agressões dentro do ambiente familiar e recomendou a adoção de medidas que pudessem assegurar reparação e proteção às vítimas. Além disso, determinou a conclusão do julgamento do réu, bem como a investigação de eventuais irregularidades processuais. Com esse posicionamento, evidenciou-se a necessidade de o país revisar estruturas que, até então, conferiam pouca efetividade ao combate à violência doméstica.[4]

A resposta jurídica brasileira a esse litígio internacional resultou na promulgação da Lei n. 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Esse marco legal inovou ao estabelecer mecanismos específicos de proteção, impondo medidas cautelares, promovendo a criação de Juizados de Violência Doméstica e garantindo maior assistência às mulheres em situação de vulnerabilidade. Com isso, buscou-se não apenas punir os agressores, mas também adotar iniciativas preventivas, reforçando o entendimento de que a omissão estatal configura violação grave dos compromissos assumidos em tratados internacionais.[5]

Apesar dos avanços, a necessidade de aperfeiçoamento contínuo da legislação restou evidente em reformas posteriores, como a possibilidade de a própria autoridade policial adotar medidas protetivas em casos urgentes, prevista na Lei n. 13.827/2019. Essa modificação foi questionada judicialmente, mas o Supremo Tribunal Federal reconheceu sua constitucionalidade, destacando que o afastamento do agressor, quando há risco iminente à integridade da vítima, resguarda os valores protegidos não apenas pela lei interna, mas também pelos tratados internacionais de direitos humanos.[6]

No panorama das demandas levadas ao sistema interamericano, o “Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil” ilustra as dificuldades enfrentadas pelas vítimas de violência de gênero no acesso à Justiça.[7] Neste caso, ocorreu feminicídio em um contexto marcado por omissões das autoridades, especialmente em razão de prerrogativas parlamentares que retardaram a persecução penal, durante o processo, e a imagem da vítima foi submetida a estigmatizações que buscavam justificativas para o crime, reforçando estereótipos amplamente entranhados em diversas esferas do poder.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos identificou que as investigações foram prejudicadas pela postura institucional das autoridades brasileiras e a violência simbólica de agentes estatais, determinando que o país adotasse medidas para reparar os danos e evitar a repetição de casos semelhantes.[8]

Outro precedente paradigmático é o “Caso Gomes Lund e Outros (‘Guerrilha do Araguaia’) vs. Brasil”, que, embora não trate especificamente de violência de gênero, simboliza o reconhecimento, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, de omissões estatais em investigar violações graves. Mesmo sendo natureza distinta, esse caso reforça a ideia de que, ao omitir-se na apuração e no julgamento de violações massivas de direitos fundamentais, o Estado brasileiro incorre em descumprimento de compromissos assumidos na esfera internacional. Dessa forma, a Corte realçou a responsabilidade de promover mecanismos eficazes de justiça, o que inclui assegurar o devido processo legal.[9]

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem enfatizado que, nos casos envolvendo vítimas mulheres, as investigações precisam ser conduzidas tentando minimizar a incidência de preconceitos, pois estereótipos podem cristalizar atuações seletivas e superficiais no âmbito penal. De fato, o emprego de estereótipos de gênero reforça estruturas excludentes, convertendo instituições judiciais em espaços pouco acessíveis às demandas femininas. Nos processos analisados, a Corte identifica quando ocorre uso de alegações indevidas, culpabilizando vítimas e ocultando a violência contra mulheres que acontece de forma sistêmica, demonstrando que essas constatações reforçam o dever do Brasil de rever seus procedimentos e promover julgamentos em conformidade com os compromissos internacionais.[10]

O mais recente Anuário da ONU Mulheres registra que, em 2023, mais de 51 mil pessoas do gênero feminino foram mortas por parceiros ou familiares, o que representa uma média de 140 vítimas por dia. O relatório, divulgado em 25 de novembro de 2024, data em que se celebra o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher –, indica que a violência contra a mulher cresceu em todos os continentes.[11]

Para compreender por que a Corte Interamericana passa a exigir do Brasil uma atuação mais efetiva, é essencial notar que o país, ao aderir à Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, através do Decreto nº 678, e reconhecer a jurisdição contenciosa da Corte em 1998, comprometeu-se a ajustar sua legislação e práticas à luz dos ditames interamericanos.

Assim, quando o Estado brasileiro não cumpre as recomendações de seu próprio marco normativo e das convenções que assinou, recai em violação direta de direitos humanos. Nos precedentes que envolvem a questão de gênero, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sido enfática ao destacar que a omissão reforça a discriminação.

A adoção de um modelo de jurisdição constitucional pautada pela igualdade de gênero, como exige a Constituição no seu artigo 5º, I, da Constituição da República de 1988, demanda que o Brasil reconfigure suas estruturas institucionais, sobretudo, a partir de formações continuadas para membros do Poder Judiciário, Ministério Público e forças de segurança.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos vem ressaltando que a aplicação interna das diretrizes convencionais é obrigatória, não cabendo margem para interpretações que relativizem a proteção de mulheres em situação de violência. Assim, cabe ao Estado revisar normas, práticas e posturas que legitimem a desqualificação das vítimas pela condição de gênero.

Vale ressaltar que a principal função das condenações do Brasil no sistema interamericano de direitos humanos são é apenas punitiva, mas, e principalmente, é pedagógica, pois instrui o país na conformação de um modelo de justiça inclusivo e coerente com as convenções ratificadas. A presença de dados alarmantes e o exame das práticas judiciais discriminatórias deixam claro que o caminho para uma plena proteção das mulheres, diante da violência, depende de esforços coordenados entre leis, instituições e sociedade.[12]

Dessa forma, os casos analisados demonstram que a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sido essencial para impulsionar reformas no sistema jurídico brasileiro, especialmente no que tange à proteção das mulheres contra a violência e à efetivação dos compromissos internacionais assumidos pelo país nesse tema.

As decisões não apenas responsabilizam o Estado por suas omissões, mas também impõem diretrizes para aprimorar mecanismos de investigação, julgamento e reparação, garantindo que a tutela dos direitos humanos não permaneça apenas no plano das leis, mas se traduza em mudanças estruturais, em todas as instituições, principalmente aquelas que integram o sistema de jurisdição constitucional brasileiro.

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[1] PETER DA SILVA, Christine Oliveira. Por uma dogmática constitucional feminista. Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 1, n. 2, p. 151-189, jul./dez. 2021. p. 162.

[2] PETER DA SILVA, Christine Oliveira; ROSA, Vanessa de Oliveira. Mulheres nas Constituições brasileiras. In: GODOY, Arnaldo; SILVA, Christine Peter da (org.), História Constitucional brasileira: estudos e reflexões. Brasília: Edições Uniceub, 2019.

[3] CIDH, Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório Anual 2000. Relatório nº 54/01, 4 de abril de 2001. Caso 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em: 15 fev. 2025.

[4] RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. O histórico das decisões do Sistema Interamericano sobre violência de gênero e a efetivação dos direitos humanos e da personalidade no Brasil. História: Debates e Tendências, v. 22, n. 2, p. 109-126, 2022. p. 7.

[5] BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 11 fev. 2025.

[6] BRASIL. Lei nº 13.827, de 13 de maio de 2019. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para autorizar, nas hipóteses que especifica, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e para determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13827.htm. Acesso em: 17 fev. 2025.

[7] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil: sentença de 7 de setembro de 2021 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). 2021. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 15 fev. 2025.

[8] NALIN, A. P. R.; SPINIELI, A. L. P. Caso Márcia Barbosa de Souza e a Justiça de Gênero na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Boletim IBCCRIM. Ano 30, n.º 356, julho de 2022. p. 24.

[9] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil: sentença de 24 de novembro de 2010. 2010. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 14 fev. 2025.

[10] NALIN, A. P. R.; SPINIELI, A. L. P. Caso Márcia Barbosa de Souza e a Justiça de Gênero na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Boletim IBCCRIM. Ano 30, n.º 356, julho de 2022. p. 23.

[11] SENADO FEDERAL. Anuário da ONU revela aumento da violência contra a mulher em todos os continentes. 25 nov. 2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/11/25/anuario-da-onu-revela-aumento-da-violencia-contra-a-mulher-em-todos-os-continentes. Acesso em: 15 fev. 2025.

[12] NALIN, A. P. R.; SPINIELI, A. L. P. Caso Márcia Barbosa de Souza e a Justiça de Gênero na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Boletim IBCCRIM. Ano 30, n.º 356, julho de 2022. p. 25.

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