Sustação de processo criminal contra parlamentar

Como já explicado aqui, as prerrogativas parlamentares visam a assegurar a total independência dos congressistas na representação de sua base eleitoral e defesa de suas ideias. As imunidades formal e material jamais foram pensadas para servir de “escudo” para a impunidade de parlamentares criminosos se livrarem da justiça.

Embora pouco mencionada, a possibilidade de a Casa Legislativa sustar o andamento da ação criminal contra o parlamentar é o pouco que ainda resta das imunidades parlamentares formais no direito brasileiro.

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No último dia 1º de abril, o Partido Liberal (PL), representado por seu presidente, ingressou com pedido para que a Câmara dos Deputados delibere acerca da sustação da ação penal instaurada com o recebimento da Pet 12.100 pela 1ª Turma do STF contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ). O fundamento do pedido é precisamente a previsão constitucional do art. 53, § 3º, da CF, o que se comenta na coluna de hoje.

De acordo com o art. 53, § 3º, da CF, recebida a denúncia contra o senador ou deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o STF dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. A atual redação do dispositivo foi conferida pela EC 35/2001, resultante das discussões na PEC 2/1995, de autoria do senador Ronaldo Cunha Lima (MDB-PB).

Antes de aprofundar na argumentação legislativa levada a cabo para aprovar essa mudança constitucional, convém um breve comentário ao instituto da sustação do processo criminal contra parlamentar.

Havia previsão semelhante na EC 1/1969, art. 32, § 3º, com redação dada pela EC 22/1982 (“Nos crimes comuns, imputáveis a deputados e senadores, a Câmara respectiva, por maioria absoluta, poderá a qualquer momento, por iniciativa da Mesa, sustar o processo”). A sustação não era possível em relação aos crimes contra a segurança nacional (art. 32, § 5º).

À época, a EC 22/1982 tinha limitado a imunidade material, retirando do seu âmbito de proteção os crimes contra a honra. Naturalmente, isso aumentou as hipóteses de imputação penal. Nesse contexto, a sustação do processo seria o mecanismo para tornar efetiva a imunidade processual, que assegura aos parlamentares regras especiais para serem presos ou processados criminalmente.

Isso já indica que se trata de um mecanismo de checks and balances, servindo para contrarrestar iniciativas do Judiciário nas situações em que estejam carregadas de viés exclusivamente político. A medida reserva exclusivamente à Casa Legislativa a decisão de prosseguimento da ação criminal contra membro seu, com base em juízo eminentemente político.

As únicas exigências da atual CF vão no sentido de que os crimes atribuídos ao parlamentar sejam posteriores à diplomação e que haja a iniciativa de um partido político que tenha representação na Casa. Não há outros legitimados. Após ser cientificada pelo STF, a Casa pode decidir pela sustação a qualquer momento antes da decisão judicial final. Trata-se de uma garantia institucional do Poder Legislativo.

Uma vez formulado pelo partido político, o pedido precisa ser apreciado no prazo improrrogável de 45 dias contados do recebimento pela Mesa (art. 53, § 4º). Não foi fixada uma sanção para o caso de descumprimento desse prazo. A aprovação se dá pelo voto da maioria dos membros. Em sendo aprovada, a sustação, além de paralisar o processo judicial, também suspende a prescrição enquanto durar o mandato.

Com isso, o instituto da sustação cumpre o papel de prerrogativa protetiva do múnus parlamentar, não servindo para protegê-lo em caráter pessoal ou com fins corporativistas. Cessado o mandato, já não se justifica a sustação, voltando a viger o princípio da igualdade com a retomada do curso processual.

Na Constituição francesa (de 1958), art. 26, também existe a possibilidade de a Casa legislativa determinar a suspensão da prisão, de medidas privativas ou restritivas de liberdade ou a persecução penal contra um membro.[1] O dispositivo também prevê a licença prévia, exceto em caso de flagrante de crime ou contravenção (ou de condenação definitiva, claro). Dessa forma, a sustação faz sentido tanto para “rever” uma autorização dada, quanto para os casos em que essa restou incabível.

Longe de se configurar como um instrumento protelatório ao processo-crime, a possibilidade de sustação da ação penal contra os congressistas visa a evitar a instrumentalização do processo judicial com o intuito de constranger, de inquinar, de ameaçar o parlamentar acusado, comprometendo sua liberdade no exercício do mandato. Com o filtro da sustação, somente os processos com substrato preponderantemente técnico avançariam.

Inicialmente, a PEC 2/1995 (que resultou na EC 35/2001) visava tão-somente a fixar um prazo para a concessão da licença prévia que havia na redação originária do dispositivo constitucional, de modo que a ausência de deliberação por prazo superior a 120 dias implicaria o deferimento do pedido de licença. Entretanto, durante os debates parlamentares o texto passou por modificações, notadamente em razão da tramitação conjunta com a PEC 3/1995, de autoria do senador Pedro Simon (MDB-RS), que propunha simplesmente retirar a exigência constitucional de licença prévia de sua Casa. Outras PECs também estavam apensadas.

Foi na Câmara dos Deputados, onde tramitou como PEC 610/1998, que se aprovou a emenda voltada para eliminar a licença prévia da Casa respectiva como condição para a abertura de processo criminal contra parlamentar. Na ocasião, os deputados chegaram a discutir o atropelo ao princípio da separação dos poderes, mas acabou prevalecendo o entendimento de que a independência do Congresso Nacional estava preservada, pois o cerne da imunidade parlamentar (a inviolabilidade quanto às opiniões, palavras e votos) permaneceu incólume.

Dos documentos legislativos, lê-se que a discussão sobre as imunidades vinha de uma demanda da sociedade, que reclamava a “revisão das garantias atribuídas ao exercício da atividade parlamentar, que não poderiam ser confundidas com nenhuma forma de impunidade”. No Parecer 283/1998, da CCJ, do relator, senador José Fogaça (MDB-RS), lê-se que “a alteração do instituto da imunidade parlamentar é passo imprescindível para a recuperação do prestígio do Poder Legislativo.”

Por conta das mudanças substanciais realizadas pela Câmara, o texto teve que voltar novamente para o Senado, como manda o art. 60, § 2º, da CF.

Em 2001, o senador Jefferson Péres (PDT-AM) chegou a impetrar o MS 24.154 contra a tramitação da PEC 2-A/1995, sob o argumento de que o calendário especial aprovado (que permitiria encerrar o processo de tramitação de 3 PECs em 7 dias corridos) violaria o devido processo legislativo. Entretanto, o ministro Nelson Jobim negou seguimento ao writ, entendendo que a matéria era estritamente regimental (interna corporis) insuscetível de controle judicial.

Pois bem. A matéria acabou sendo aprovada e promulgada na forma da redação atual.

O fato é que, embora existente desde 2001 na CF, a suspensão de ações criminais contra parlamentares é mais utilizada no âmbito estadual do que no plano federal. Uma rápida pesquisa de jurisprudência mostra farta casuística de pedidos concedidos pelas Assembleias Legislativas de São Paulo, Acre, Amapá, Goiás, etc., e devidamente acolhidos pelos TJs correspondentes.

Essa prerrogativa parlamentar, entende-se, não alcança os vereadores. Inexistente Poder Judiciário no âmbito dos municípios, a Câmara Municipal não poderia sustar o andamento de processos judiciais, pela mesma lógica que as CPIs municipais não gozam dos poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.

Já nas Casas Legislativas federais, a prerrogativa tem pouca incidência. Em 2022, por exemplo, o Requerimento 473/2022 tentou sustar a AP 1.044 em relação ao então deputado Daniel Silveira; mas, como sabido, o pedido não foi adiante. Não tendo sido votado no prazo de 45 dias, logo sobreveio a condenação, e o pedido de sustação perdeu seu objeto.

No caso do pedido de sustação envolvendo o deputado Ramagem, já há discussão no sentido de que os crimes que lhe são imputados teriam tido início ainda antes da diplomação, por mais que a suposta conclusão do iter criminis tenha se dado após essa data, o que poderia afetar a prerrogativa do art. 53, § 3º, da CF. O ideal seria que o mencionado requerimento de sustação fosse pautado para permitir a discussão desse ponto pelos próprios pares, os demais deputados.

Enquanto isso não acontece, fica a impressão de que as prerrogativas parlamentares são cada vez mais esvaziadas, figurando no texto constitucional apenas em caráter hipotético, sem que seus dispositivos sejam efetivamente aplicados na realidade do próprio Poder Legislativo.


[1] No original: “ARTICLE 26. Aucun membre du Parlement ne peut être poursuivi, recherché, arrêté, détenu ou jugé à l’occasion des opinions ou votes émis par lui dans l’exercice de ses fonctions.

Aucun membre du Parlement ne peut faire l’objet, en matière criminelle ou correctionnelle, d’une arrestation ou de toute autre mesure privative ou restrictive de liberté qu’avec l’autorisation du bureau de l’assemblée dont il fait partie. Cette autorisation n’est pas requise en cas de crime ou délit flagrant ou de condamnation définitive.

La détention, les mesures privatives ou restrictives de liberté ou la poursuite d’un membre du Parlement sont suspendues pour la durée de la session si l’assemblée dont il fait partie le requiert.

L’assemblée intéressée est réunie de plein droit pour des séances supplémentaires pour permettre, le cas échéant, l’application de l’alinéa ci-dessus.”

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