Regulação da força de trabalho em Saúde no Brasil necessita de uma estratégia nacional

Um dos maiores desafios dos sistemas de saúde modernos está relacionado à força de trabalho em saúde. Problemas como falta de profissionais qualificados, desigualdade na distribuição territorial destes profissionais, má formação, precarização do trabalho, dificuldades de mobilidade em decorrência de regulações nacionais impeditivas e não harmonizadas foram detectados há pelo menos uma década. Com o advento da pandemia da Covid-19, os problemas existentes se agravaram dramaticamente, ao ponto da Organização Mundial de Saúde (OMS) ter aprovado, em sua 75a Assembleia Mundial de Saúde, a Resolução WHA 75.17, no ano de 2022, que lança um plano global de ação voltado à força de trabalho em saúde ao redor do mundo.

Como justificativas para a aprovação da Resolução, a OMS destaca que, durante o período mais crítico da pandemia, houve interrupção contínua dos serviços essenciais de saúde e da prestação de serviços relacionados à doença do coronavírus (COVID-19), abrangendo, por exemplo, interrupções no tratamento de doenças, inclusive em unidades de terapia intensiva, e interrupções em programas de imunização. 

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Segundo a OMS, a interrupção dos serviços de saúde, verificada em todas as nações em maior ou menor grau, se deu, de um lado, devido ao acesso desigual a produtos de saúde de qualidade, seguros, eficazes e acessíveis dentro e entre os países e, de outro lado, devido à insuficiência de mão de obra qualificada na área da saúde na maioria dos países. A OMS detectou que há uma enorme desigualdade entre os países para o enfrentamento da escassez de profissionais de saúde, com grande variação entre as regiões do mundo, sendo que a escassez atinge os países em desenvolvimento com maior severidade. 

Os crescentes desafios à saúde, ao bem-estar, à vida e à segurança dos profissionais de saúde também são lembrados como causas potenciais para o agravamento da situação da força de trabalho em saúde ao redor do mundo. Segundo a OMS, nos últimos anos foram verificados diversos ataques aos profissionais e às instalações de saúde, inclusive durante a pandemia de COVID-19, ataques estes que se mantém até hoje, principalmente no âmbito das guerras atualmente em curso, mas também em outros cenários igualmente preocupantes nos últimos anos. 

A OMS constatou, ainda, que houve aumentos expressivos de sofrimento psicológico e de problemas de saúde mental vivenciados pelos profissionais de saúde nos últimos anos, agravados pela pandemia de COVID-19. Este fenômeno vem influenciando negativamente os sistemas de saúde, provocando redução do desempenho e da produtividade, bem como impactando a retenção da força de trabalho em saúde nos diferefentes países.

O planejamento adequado da força de trabalho em saúde no âmbito dos diferentes sistemas de saúde, por meio de políticas e regulações adequadas, representa, assim, um dos maiores desafios dos sistemas de saúde modernos. O planejamento adequado da força de trabalho em saúde deve considerar, dentre outros aspectos, a necessidade de promover mais a equidade para as mulheres, na medida em que estas possuem um papel fundamental nos sistemas de saúde já que representam quase 70% da força de trabalho em saúde redor do mundo.

Para tentar superar estas dificuldades, a OMS aprovou, por meio da Resolução WHA 75.17, o “Plano de Ação Trabalhando para a Saúde 2022-2030”, que serve como plataforma e mecanismo global para acelerar os investimentos em educação, habilidades, empregos, salvaguarda e proteção dos profissionais de saúde nos Estados Membros. 

Plano de Ação da OMS

Por meio do Plano aprovado, a OMS solicita aos Estados-Membros que, de acordo com os contextos e prioridades nacionais, implementem o “Plano de Ação Trabalhando para a Saúde 2022-2030” em seus territórios e integrem, conforme apropriado, seus objetivos e ações para o planejamento e financiamento da força de trabalho em saúde, incluindo ações relacionadas à  educação e ao emprego, bem como planos de investimento e programas para a força de trabalho em saúde nos níveis nacional e locais. 

De acordo com o Plano, os Estados devem implementar e monitorar opções e ações políticas, apoiadas por parcerias, coordenação e financiamento multissetoriais visando:

(a) a reforçar a proteção e a salvaguarda, bem como otimizar a distribuição, a implantação e a utilização da força de trabalho em saúde, com foco no emprego, na inclusão e na participação de mulheres e de jovens em todos os níveis; 

(b) considerar abordagens regionais e globais para o desenvolvimento da capacidade multidisciplinar dos profissionais de saúde e assistência, a fim de atender e responder às necessidades da população, com ênfase especial nos grupos mais vulneráveis, e permitir o funcionamento de sistemas de saúde e a prestação de serviços eficientes, com atenção específica à equidade, à acessibilidade, à diversidade e à inclusão social; 

(c) maximizar os benefícios sociais e econômicos do investimento na força de trabalho em saúde, com vistas a alcançar a cobertura universal de saúde.

Outro aspecto tratado pelo Plano refere-se à obrigação dos Estados de construírem um bom ambiente para o desenvolvimento da força de trabalho em saúde, por meio de programas de formação e da utilização das melhores instalações educacionais disponíveis, incluindo uso de tecnologias de ensino digital, como as plataformas online, ou o uso de estratégias de aprendizagem híbrida. 

A OMS também recomenda, em seu Plano, que os Estados membros adotem estratégias voltadas a atrair e manter pessoal qualificado nos sistemas de saúde, por meio de práticas de emprego sustentáveis e dignas. A precarização do trabalho na área da saúde é um problema global a ser enfrentado, problema este que tem no Brasil uma escala cada vez maior e mais desafiadora de ser resolvida.

O “Plano de Ação Trabalhando pela Saúde 2022-2030” incentiva parcerias entre a OMS, Estados-membros e entidades privadas para o desenvolvimento de iniciativas nacionais, regionais e globais de emprego. A ideia é promover empregos decentes, inclusive para jovens e mulheres no setor da saúde e, para tanto, estes diferentes atores devem realizar investimentos educacionais e criar oportunidades de formação educacional presencialmente e por meio de ensino híbrido ou outras plataformas tecnológicas, visando permitir maior acesso a ferramentas de aprendizagem.

O Plano da OMS é um importante indutor de ações voltadas ao fortalecimento da força de trabalho em saúde ao redor do mundo e também para o Brasil. Representa inclusive uma oportunidade para que o país se projete globalmente na área, especialmente em decorrência de seu potencial na área da saúde a partir do SUS e de sua sólida constituição em todo o território nacional. Trata-se de uma janela de oportunidade para organizarmos um modelo de organização jurídica e administrativa da força de trabalho em saúde com características capazes de oferecer soluções eficazes para os problemas verificados na formação, distribuição e qualidade da força de trabalho em saúde.

Brasil precisa de fazer a lição de casa

O Brasil possui uma estrutura robusta de ensino e equipamentos de saúde, bem como uma força de trabalho em saúde pujante e qualificada. No entanto, não há um planejamento estratégico para o adequado aproveitamento desta força de trabalho e para o aumento de sua produtividade em benefício da saúde da população e do Sistema Único de Saúde.

No campo da formação da força de trabalho em saúde de ensino superior, hoje sob a responsabilidade nacional concentrada do Ministério da Educação, chama a atenção o papel reduzido que o Ministério da Saúde possui para orientar as diretrizes curriculares nacionais voltadas à formação das profissões de saúde de ensino superior regulamentadas. Também merece ampla revisão o protagonismo, cada vez mais crescente, que interesses privados e corporativos vêm tendo na definição da regulação da formação em saúde no país, desde o conteúdo programático dos cursos até a abertura de novas universidades e vagas.

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Outro ponto que merece maior atenção é a forma como organizamos a regulação da formação e certificação de especialistas das diferentes profissões de saúde, com competências regulatórias compartilhadas de forma desigual entre o Ministério da Educação e os Conselhos Profissionais de saúde, estando o Ministério da Saúde, novamente, na periferia das grandes decisões sobre este campo regulatório estratégico para a força de trabalho em saúde no país, prejudicando inclusive a própria sustentabilidade do SUS. Não é por acaso, portanto, que o acesso a especialistas ainda é um grande gargalo do sistema público de saúde atualmente.

No que diz respeito à regulação das profissões técnicas em saúde, a confusão é ainda maior. A regulação da formação e da certificação destes profissionais é altamente fragmentada e descentralizada para os entes federativos estaduais e locais (isso quando não há total ausência de regulação sobre certas ocupações técnicas), consolidando assim um modelo confuso, desarmonioso e sem qualquer garantia de proteção aos interesses dos pacientes ou do próprio Estado brasileiro.

Igual confusão se vê no que se refere à regulação jurídica dos escopos de prática de cada profissão regulamentada de ensino superior na área da saúde. Hoje os Conselhos Profissionais de saúde no Brasil gozam de autonomia total para se autorregularem e decidirem o que pode e o que não pode ser praticado por seus profissionais. Duas consequências negativas estão bem visíveis para este modelo regulatório.

A primeira é que, de um lado, os Conselhos travam verdadeira guerra judicial sobre a abrangência dos escopos de prática de cada profissão. Exemplos não faltam: procedimentos estéticos, prescrição farmacêutica, práticas avançadas de enfermagem, acupuntura, optometria, entre outras práticas de saúde, estão todas sendo discutidas judicialmente. Evidentemente que o Poder Judiciário não é o locus adequado para a definição dos escopos de prática dos profissionais de saúde, mas é assim que nosso modelo está sendo gerido.

A segunda é que, de outro lado, não é raro ver o Ministério da Saúde tendo suas políticas públicas de saúde e de desenvolvimento do SUS serem questionadas pelos Conselhos Profissionais. O exemplo mais vistoso deste fenômeno é oferecido pelo Conselho Federal de Medicina e seus questionamentos políticos e judiciais no que se refere, por exemplo, ao Programa Mais Médicos, à organização dos serviços de aborto legal ou, ainda, às políticas de controle da pandemia da Covid-19. Novamente, aqui, o Ministério da Saúde é um figurante no que se refere à regulação de um aspecto sensível do sistema de saúde brasileiro, que é definir qual profissional pode fazer o que no âmbito do SUS.

Finalmente, no que se refere à regulação das relações de trabalho e emprego no campo da saúde, o cenário também não é animador. Ao longo dos últimos anos novas formas de contratação de profissionais de saúde foram sendo criadas, em especial no âmbito do SUS. Aos poucos, foi sendo abandonado o modelo de contratação pela Administração Direta e Indireta do Estado, que oferecia maior estabilidade e segurança jurídica ao trabalhador. Atualmente, viceja a ampla terceirização dos serviços públicos para o setor privado, seja por meio da contratação das Organizações Sociais, por meio de parcerias público-privado ou, ainda, por meio de contratualização via cooperativas, ou outras formas que variam entre si e que, invariavelmente, deixam o profissional de saúde em precária situação empregatícia, especialmente os trabalhadores de formação técnica.

Estratégia nacional

Seja em razão da Resolução aprovada pela OMS, que o Brasil tem o dever de adotar internamente, seja em razão da confusa organização jurídica-institucional da regulação da força de trabalho em saúde no país, mostra-se fundamental que o Estado brasileiro desenvolva uma estratégia nacional de regulação da força de trabalho em saúde. Esta ação é necessária para que o país possa responder adequadamente aos desafios que estão impostos atualmente ao nosso sistema de saúde.

Dentre os temas a serem tratados nesta estratégia, podemos destacar: repensar a formação dos trabalhadores que atuam no campo da saúde, inclusive no que se refere ao ensino técnico e à educação permanente; reorganizar a forma como lidamos com a regulação dos escopos de prática das diferentes profissões; inserir o Ministério da Saúde nos processos regulatórios da formação, do exercício profissional e das relações de trabalho, com o protagonismo que lhe é de direito; identificar as lacunas de formação e de distribuição espacial dos diferentes profissionais de saúde, etc. 

O desafios são enormes, os problemas saltam aos nossos olhos. Desenvolver uma estratégia sustentada de desenvolvimento da força de trabalho em saúde no Brasil é uma urgência nacional que, se não prestarmos atenção, nos será fatal dentro de poucos anos.

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