Para marcar o mês de março, tivemos a oportunidade de participar do primeiro BootCamp Regula Melhor, um programa intensivo de aprendizado que buscou oferecer uma experiência colaborativa sobre o papel das mulheres na regulação, com foco no desenvolvimento de competências e soluções para a construção de um ambiente e regulação mais inclusivas e equitativas.
O Bootcamp teve início com a palestra da jornalista Alicia Klein, que trouxe dados e exemplos dos obstáculos enfrentados pelas mulheres no mercado de trabalho. Estes obstáculos vão desde exigências impostas pelo ambiente e autoimpostas, ao tempo reduzido por conta de trabalhos de cuidado não remunerados e à violência sexual. Também foram abordadas estratégias que mulheres podem adotar para se posicionarem profissionalmente para que, com isso, possam estar “em todos os espaços”[1].
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Em seguida, iniciamos a parte prática e dialogada do Bootcamp. Apresentamos dados sobre a participação feminina nas esferas decisórias das agências reguladoras. Esses dados têm sido coletados desde 2022 para subsidiar diferentes iniciativas do Instituto Mulheres na Regulação, visando dar visibilidade ao problema da (ainda) limitada participação feminina nos espaços de poder e decisão também no campo regulatório. Em geral, a participação das mulheres nos colegiados de reguladores federais varia em torno de 15% e, nos infranacionais, em torno de 30%.
E por que a limitada participação feminina em espaços de poder e decisão é um problema?
Em primeiro lugar, cabe lembrar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, e que a Constituição Federal de 1988, em seu art.5º, inciso I, estabelece a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. Portanto, como temos mulheres qualificadas e decisões regulatórias que impactam mulheres, deveríamos ter uma participação paritária nesses espaços, o que ainda está distante de ocorrer.
Em seu último relatório, o Fórum Econômico Mundial estimou que a paridade somente será atingida 5 gerações após a meta de 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), ou daqui a 134 anos. Dentre as 4 dimensões analisadas – participação e oportunidades econômicas, acesso à educação, saúde e sobrevivência, e empoderamento político – a maior lacuna é justamente nesta última. No Brasil, o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher publicado no mês passado traz alguns dados sobre essa baixa representatividade no Brasil. Em 2024, as mulheres representaram 17,9% das pessoas eleitas para prefeitas, vice-prefeitas e vereadoras. Nas presidências das comissões permanentes do Senado e Câmara, importantes espaços de poder, temos 8,3% e 16,7% mulheres, respectivamente.
Em segundo lugar, há benefícios econômicos da paridade de gênero, especialmente quando se consideram homens e mulheres como complementares na força de trabalho, e não substitutos. Estudo de 2018 do FMI mostrou que a elasticidade de substituição entre homens e mulheres não é infinita[2], ou seja, não “tanto faz” substituir um homem por uma mulher. Mulheres trazem diferentes habilidades para o mercado. Ao considerar homens e mulheres como complementares, o estudo sugere que eliminar a lacuna de gênero na participação da força de trabalho poderia aumentar o PIB entre 10% e 80%, dependendo da participação feminina inicial (se muito escassa, os benefícios são maiores). Atenção homens: o estudo sugere que, se o efeito de complementaridade for suficientemente forte, é possível que os homens também se beneficiem do aumento da participação feminina na força de trabalho, por meio de rendas reais mais altas.
Sendo um problema, por que a participação das mulheres, especialmente nos espaços de decisão e poder, ainda é baixa?
Inicialmente, é importante destacar que as mulheres participam menos da força de trabalho, tanto entre países da OCDE como no Brasil. Entre países da OCDE, a lacuna é de 13,9% – 67,1% e 81% de mulheres e homens, respectivamente, participaram da força de trabalho no segundo trimestre de 2024. No Brasil, a lacuna é maior. De acordo com dados do IBGE, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho foi de 53,3% em 2022, 19,8 pontos percentuais abaixo da dos homens, de 73,2%. Além disso, as mulheres trabalham em tempo parcial mais do que homens – por isso, é inadequado avaliar remuneração semanal ou anual para calcular lacunas salariais. Segundo o mesmo relatório do IBGE, 28% das mulheres estavam ocupadas em tempo parcial, quase o dobro (14,4%) do verificado para os homens.
Foi justamente por suas contribuições sobre a relação entre gênero e participação no mercado de trabalho que Claudia Goldin foi laureada com o prêmio Nobel de Economia no ano passado, sendo a primeira mulher a receber, sozinha, a honraria. Em seu discurso, Claudia Goldin faz uma rica retrospectiva da participação feminina no mercado de trabalho e pergunta: “Em todo o mundo, as mulheres ganham menos do que os homens […]. Por que a diferença salarial existe?” Após percorrer diferentes “pistas”, Claudia nos ensina que a diferença se deve a uma combinação entre maternidade, necessidade de flexibilidade e a ganância de certas profissões, que remuneram desproporcionalmente aqueles que trabalham mais horas. Em suas palavras, “mesmo que o mercado de trabalho fosse completamente isento de vieses, ainda assim haveria uma diferença salarial de gênero considerável”.
Não sabemos como isso se aplica no setor público brasileiro, com seus critérios de entrada e estabilidade. O que sabemos é que, tanto nas esferas decisórias das agências, como também nos Ministérios e autarquias relevantes, a presença feminina ainda é reduzida. Uma hipótese que nos parece razoável é que a motivação para a nomeação de uma pessoa para cargo em comissão, ou cargo de confiança, depende, como o nome sugere, da confiança dos que indicam – sendo o chefe do Executivo homem, e o Parlamento majoritariamente masculino.
Como, então, podemos aumentar a presença feminina nos espaços de poder e decisão no campo regulatório?
Durante o BootCamp, discutiu-se a necessidade de formação de redes profissionais para a ascensão das mulheres a posições de liderança nos órgãos e entidades reguladoras como uma forma de solucionar o problema da baixa presença feminina nos espaços de poder e decisão no campo regulatório. Para que mais mulheres possam ser consideradas para indicação a cargos de gerência e diretoria nesses órgãos e entidades estatais, é necessário que elas acessem círculos de poder e influência. Com múltiplas jornadas e atribuições, incluindo cuidados à família, mulheres dispõem de menos tempo e disposição para frequentar esses espaços, predominantemente masculinos, e investir em ações que deem visibilidade e reconhecimento a suas habilidades e competências profissionais.
É nesse contexto que redes profissionais podem ser extremamente eficazes para impulsionar a carreira das mulheres na regulação. As redes são necessárias, em primeiro lugar, para que as mulheres que já ocupam esses espaços de liderança possam contribuir para a ascensão de outras mulheres. Sem ações colaborativas, as raras mulheres que ocupam esses espaços estão fadadas a agir egoisticamente, defendendo suas frágeis, e permanentemente ameaçadas, posições de liderança. A atuação isolada de mulheres que “se encaixam” em redes masculinas para permanecer em posições de liderança é também um fator que desincentiva outras mulheres a percorrerem a mesma trajetória, sendo as redes necessárias para propiciar novos caminhos e possibilidades para as lideranças femininas.
Isso se torna ainda mais relevante diante de relatos recorrentes de mulheres que não se sentem apoiadas por outras mulheres ao longo de suas trajetórias profissionais. Um relatório da ONU, publicado em 2023, apontou que “quase 9 em cada 10 homens e mulheres no mundo” ainda mantêm vieses de gênero. Ou seja, não são apenas homens que carregam vieses que prejudicam a ascensão profissional de mulheres. As mulheres também o fazem. Estudo coautorado pela pesquisadora brasileira Cecília Machado, por exemplo, revelou que a penalização da maternidade — um dos principais fatores por trás da desigualdade de gênero no mercado de trabalho — persiste mesmo em empresas lideradas por mulheres ou compostas majoritariamente por funcionárias. Redes devem, portanto, mostrar como mulheres podem colaborar e apoiar outras mulheres na esfera profissional.
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Mas as redes são sobretudo necessárias para a grande maioria dos talentos femininos que esbarram em tetos de vidro à ascensão profissional. As redes podem dar visibilidade e reconhecimento a esses talentos, contribuindo, assim, para a indicação de mulheres a posições de liderança. Além disso, as redes podem atuar diretamente na desconstrução de barreiras estruturais, como vieses de gênero e resistências culturais à liderança feminina, ao promover discussões e ações de sensibilização dos órgãos e entidades reguladoras para a importância da diversidade.
Pelo rumo tomado das discussões do Bootcamp Regula Melhor, resta evidente que o surgimento e fortalecimento de redes femininas é não apenas uma das medidas necessárias, mas aquela absolutamente imprescindível para aumentarmos a participação feminina no comando dos órgãos e entidades reguladoras e, só assim, construirmos políticas regulatórias mais democráticas e justas.
[1] O título da palestra é “Mulheres em todos os espaços”.
[2] Segundo o estudo, as estimativas de elasticidade de substituição estão agrupadas abaixo de 1 nos dados macroeconômicos, entre 1 e 2 nos dados setoriais e entre 2 e 3 nos dados em nível da firma.