Com a iminência do anúncio do decreto regulamentador da Lei 15.082/2024, ao se examinar a estruturação do RenovaBio, sua finalidade e forma de governança, verifica-se uma curiosidade: a tentativa da tecnocracia estatal responsável pela organização do Comitê Governamental do RenovaBio, no âmbito do Ministério de Minas e Energia, de estruturar um colegiado semelhante ao Copom (Comitê de Política Monetária).
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Um dos efeitos inequívocos desta disfunção regulatória é o anúncio feito nesta quarta-feira (2/4) pela ANP sobre as metas individuais a serem cumpridas pelas distribuidoras, calculadas a partir da meta compulsória anual de 40,39 milhões de CBIOS (Créditos de Descarbonização) definida pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) para 2025. A determinação ratifica o abuso regulatório, pois se trata de uma meta exacerbada que resultou de uma análise parcial do referido comitê, sem a devida participação social, especialmente dos agentes mais afetados pela legislação.
Contudo, a Lei 13.576/2017, na contramão dos anseios e expectativas da tecnocracia estatal, ao instituir o RenovaBio, não previu a criação de um colegiado com atribuições análogas às do Copom — modelo que, no campo da política monetária, obedece a critérios legais rigorosamente definidos pela Lei 4.595/1964, que instituiu o Comitê de Política Monetária.
Por sua vez, o Decreto 9.888/2019, que formaliza a criação do Comitê do RenovaBio, também não reproduziu tais salvaguardas, resultando em uma engenharia institucional que age como um corpo estranho ao ordenamento jurídico pátrio, sendo sua atuação marcada por: (i) centralização decisória; (ii) desrespeito ao princípio da publicidade (art. 37, CF); e (iii) desconsideração sistemática dos impactos econômicos das metas na economia popular — como os R$ 46,38 bilhões em custos associados ao RenovaBio para a sociedade, fixados sem participação social ou análise de custo da política fixada, o que é previsto em lei, mas ignorado pelo ideário tecnocrata à frente das decisões do Comitê.
Isso porque o Decreto 9.888/2019, que atribui as competências e finalidades ao Comitê gestor do programa, explicita os limites da atuação do colegiado, concebido como órgão de natureza técnica e consultiva, devendo, de forma precípua, dedicar-se à elaboração de estudos e à recomendação de metas de redução das emissões de GEE no âmbito do Acordo de Paris, em conformidade com as diretrizes apontadas nos objetivos da Lei 13.576/2017.
No âmbito de sua competência administrativa, cabe ao Poder Executivo definir a composição do Comitê, cuja formação deve, obrigatoriamente, contar com quadros técnicos indicados pelos ministérios. Ademais, o §3º do Decreto 9.888/2019 prevê que “O Coordenador do Comitê RenovaBio poderá convidar para participar de suas reuniões representantes de outros órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, de instituições privadas do mercado de biocombustíveis e técnicos e especialistas do setor, sem direito a voto”. Essa previsão legal não é meramente acessória: trata-se de um mecanismo essencial à estrutura da governança do Comitê, em consonância com o princípio da participação social — instrumento de legitimidade das políticas públicas e fundamento das boas práticas regulatórias e da transparência administrativa.
Contudo, diferentemente do que determina a Lei e do que é esperado por toda a sociedade — sobretudo pelos agentes econômicos de mercado diretamente afetados —, a governança do Comitê tem operado como um ente regulador do mercado de combustíveis, com poder de influenciar diretamente nos preços praticados, sem qualquer previsão legal para essa finalidade. Enquanto o original Copom atua com atribuições previstas em lei, com rito público, critérios transparentes e accountability, o Comitê do RenovaBio age num vácuo normativo, ao assumir atribuições que impactam diretamente a meta inflacionária, o custo de vida e o orçamento das famílias brasileiras, afetando, sobretudo, os mais pobres, atuando na prática, como o “Copom dos combustíveis”.
O Decreto é claro ao atribuir ao Comitê natureza técnica e consultiva, com a missão precípua de elaborar estudos e recomendar metas de descarbonização, conforme as diretrizes da Lei 13.576/2017. Embora haja previsão de participação ampliada — conforme o §3º do Decreto, que permite o convite a representantes da sociedade e do setor produtivo —, essa prerrogativa tem sido negligenciada. As reuniões carecem de representação efetiva dos entes econômicos afetados, como produtores, distribuidores e consumidores, reduzindo as consultas públicas a formalidades protocoladas e desconectadas de um diálogo democrático real.
Assim, a gestão do órgão, ao buscar exercer atribuições que não lhe foram legalmente conferidas, incorre em grave desvio de finalidade, comprometendo a governança e os resultados da política de biocombustíveis. As decisões, marcadas pelo esvaziamento do debate qualificado diante dos desafios políticos do RenovaBio, têm sido tomadas de forma tecnocrática, sem a devida transparência, por meio de consultas públicas de curtíssimo prazo, usadas como instrumento meramente formal. A ausência de convocação da sociedade civil — em especial dos pequenos produtores de biomassa, representantes do setor de distribuição e consumidores — configura o modus operandi da governança do programa desde sua criação.
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Desse modo, urge a repactuação da governança do Comitê do RenovaBio, de forma a reordenar a atuação do colegiado às suas atribuições precípuas, com a devida observância dos princípios da legalidade, da transparência e da garantia democrática do direito à participação social qualificada, conforme impõe a Lei. Do contrário, o “Copom dos combustíveis” continuará atuando indevidamente, determinando o custo dessa política no bolso do cidadão comum, sem prestar contas à sociedade brasileira — nem mesmo ao ordenamento jurídico que lhe deu origem —, atribuindo ao RenovaBio um custo que impacta negativamente a economia popular.
Na visão dos agentes econômicos regionais, o Comitê precisa ser aperfeiçoado com vistas à participação tripartite: governo, agentes afetados, e consumidores e trabalhadores. O apelo da ANDC é para que o Comitê Governamental do RenovaBio seja democratizado e estabeleça parâmetros técnicos factíveis, que viabilizem a redução efetiva das emissões de gases do efeito estufa, com transparência, custo-benefício racional, equilíbrio regulatório e segurança jurídica e operacional — contribuindo, assim, para a segurança do abastecimento e razoabilidade nos preços dos combustíveis e aperfeiçoando a os mecanismos democráticos de escuta ativa ao setor.