Novas tecnologias impactam o mundo em diversas frentes, incluindo o meio jurídico. As normas são frequentemente afetadas por novos produtos ou serviços, adaptando-se aos novos comportamentos – que eventualmente resultam em alterações legislativas. O caso de aplicativos de transporte é um exemplo disso.
Muito tem se falado sobre quão disruptiva é a inteligência artificial. Várias vozes argumentam que as mudanças trazidas pela IA serão maiores do que as já vividas pela humanidade. E rapidamente questões relacionadas à IA extrapolaram as fronteiras técnicas e científicas para avançar para centro de debates políticos e econômicos.
É provável que boa parte de nós não tenha clareza sobre o que é a IA, o que esta tecnologia permitirá alcançar (positiva ou negativamente) e em que fase de seu desenvolvimento e conhecimento está a humanidade. Ao mesmo tempo, parece claro que este se tornou tema crucial de nosso tempo.
Neste breve intervalo, pretende-se estruturar a interconexão entre inteligência artificial e propriedade intelectual. A ideia é responder à provocação de semanas atrás: existe IA sem PI?
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IA e direitos de PI
A IA é usualmente definida como um sistema[1] que tem capacidade de atuar autonomamente e gerar resultados (outputs) a partir de comandos recebidos (inputs). A parte da ‘inteligência’ advém de potencial capacidade de adaptação frente ao conjunto destes comandos e resultados ao longo do tempo – em contraste a sistemas que respondem sempre da forma como programados.
O recente caso da Deepseek[2] trouxe à tona uma nova questão: sistemas de IA são protegidos por PI? Em que medida podem ser copiados? Em resposta: sim, sistemas de IA são objeto de proteção por PI. Talvez em menor medida do que se poderia imaginar, considerando os valores bilionários investidos[3].
Dentre os direitos de PI existentes na maioria das legislações, sistemas de IA se encaixam (em parte ou integralmente) em (a) software/direitos autorais[4], (b) patentes ou (c) segredos de negócio. Por vezes, a proteção por patente conflita com a de software/direitos autorais[5].
Já a proteção pelo segredo pode ser acumulada para elementos da IA não disponibilizados ao público. Critérios específicos de cada legislação podem impedir que a mesma proteção seja alcançada em diferentes países onde a IA seja lançada.
Este cenário é obviamente insatisfatório, seja sob perspectiva do desenvolvedor do sistema ou do interesse público[6]. A via patentária, limitada a 20 anos, depende de sujeição a categorias de invenções definidas como patenteáveis por lei e invariavelmente não cobre tais sistemas[7]. A via do software/direitos autorais independe de registro e está limitada a 50 anos, mas o enforcement contra infrações é mais desafiador.
Já o segredo de negócio oferece proteção por tempo indeterminado (enquanto se mantiver o sigilo), e são imensas as dificuldades de recuperação ou correta indenização, se divulgado. Esta é a via que talvez imponha maiores dificuldades ao desenvolvedor e desafios em termos de inovação contínua e transparência, importantes ao interesse público. Ao mesmo tempo, é das mais utilizadas, em parte por conta das limitações que outras opções oferecem.
No caso Deepseek, discute-se se um sistema pode se beneficiar de outro no seu desenvolvimento[8]. Segundo o que foi noticiado, trata-se de uma questão de violação de segredos de negócio e das formas de uso contratualmente permitidas, conforme termos e condições aplicáveis. Em que medida deveria o sistema de PI ser pensado para ajustar melhor proteção à IA e mais claramente regulamentar interesse público, flexibilidades, garantias e prazos é debate que pouco se vê até agora.
PI e dados utilizados por IA
Mais presente na mídia nos últimos tempos está o questionamento sobre bases de dados criadas para treinamento e para operação dos sistemas de IA. E por dados entenda-se o sentido amplo: textos, imagens, vídeos, músicas, áudios – o céu é o limite.
É consenso que sistemas de IA terão maior autonomia e assertividade em suas respostas se tiverem vastas quantidade de informações sob os mais variados formatos, idiomas, fontes como insumo. São essas informações que vão alimentar o sistema de IA e circunscrever a fonte das respostas para os inputs, ainda que com inflexões e correlações próprias do sistema.
Logo, a estruturação destas bases de dados por parte dos desenvolvedores tem se mostrado chave para aumentar possibilidades de melhor arquitetar respostas, tanto quanto possível mais parecidas ao raciocínio humano. Um ativo coletivo que confere, portanto, maior ou menor valor a tais sistemas, muito comumente gerado por meio de técnicas de extração automatizada online (em sites, plataformas de redes sociais, bases de dados e demais fontes)[9].
A questão aqui é: os titulares de tais dados individuais concordam com sua inserção nesta base coletiva? Eles teriam direito de se opor a isso? Sob quais condições? No momento, há relevante discussão judicial, especialmente nos Estados Unidos[10].
Isto porque certos ativos são protegidos por direitos autorais – a base vem de setores como o jornalístico, fotográfico, fonográfico, editorial, etc. E o atual estágio de sistemas de IA generativa permite gerar outputs muito semelhantes e, eventualmente, substitutos às criações humanas, trazendo potencial prejuízo (inclusive econômico) aos criadores e a estes setores.
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Obras literárias, artísticas e científicas publicadas têm proteção garantida a seus autores[11]. O uso não autorizado, em princípio, é contrário à lei e passível de impugnação pelo titular, seja para impedir o uso, seja para buscar ressarcimento. Processos em curso deverão decidir se flexibilidades da legislação americana (em especial o fair use[12]) permitiriam ou não o uso destas obras por desenvolvedores de IA sem autorização.
O resultado das cortes poderá influenciar a forma como a proteção de PI é interpretada e ditar padrões. Vale insistir que flexibilidades encontradas lá não são iguais às de outros países e estão muito longe das previstas na lei brasileira, o que limita tal influência em um primeiro momento.
De outro lado, o EU AI Act tomou direção no sentido de não eximir desenvolvedores de integralmente cumprir com a legislação autoral. Isso potencialmente inclui autorização prévia ou proibição de uso de obras para treinamento dos sistemas e remuneração de titulares de direitos, a depender das flexibilidades da legislação europeia[13]. Esta decisão legislativa já influencia o debate, como no Brasil[14].
Por ora a certeza é que teremos grande dificuldade em encontrar harmonização desejável. O caminho do meio parece estar no paper da OCDE IP issues in AI trained on scraped data[15]. Reconhecendo as dificuldades na conciliação de direitos de PI sobre obras usadas como insumo de sistemas de IA, a proposta é por adotar código de conduta com termos contratuais padrões a serem seguidos pelos atores do sistema. Contudo, é cedo para afirmar quais são as reais chances da proposta, ainda mais com casos judiciais pendentes.
Na segunda parte deste texto continuaremos investigando o tema. Será a vez de enfrentar a questão se existe proteção de PI para o output dos sistemas de IA. Até lá!
Em alta em março
- Brasil: INPI e MDIC se reuniram para discutir fortalecimento do sistema de PI. Até 2026 estão previstas a redução do prazo de concessão de patentes para 2 anos e de marcas para 1 mês. Em 2025, o INPI deverá implementar sistemas de IA para auxiliar avaliação técnica, melhorar o Portal do Usuário, otimizar sistema de oposição de marcas, estabelecer novos preços e contato direto com usuários[16]. O Relatório de Gestão 2024 destaca pedido de concurso para contratação de servidores[17].
- Brasil: a Ancine abriu consulta pública sobre ações de combate às infrações de direitos de PI em obras audiovisuais. Dentre as propostas está criação de unidade para receber notificações de infrações dos titulares ou de quem possa representá-los, incluindo associações. Até 14/4/2025[18].
- Brasil: o Ecad apresentou relatório Mulheres na Música 2025, que indica aumento da participação feminina na distribuição de valores arrecadados a título de direitos de execução pública musical (29 mil beneficiadas em 2024; 22 mil em 2020). Isso não significou divisão mais igualitária: apenas 8% do total de R$ 926 milhões distribuídos a artistas foi destinado a mulheres, como em 2023. Dentre os 100 titulares mais bem remunerados, apenas 5% são mulheres[19].
- WIPO, EUIPO: Declaração conjunta de 60 escritórios de PI (INPI incluído) reforçou compromissos de redução da inequalidade de gênero no ecossistema da PI. Sob o mote de Para todas mulheres e meninas: Direitos. Igualdade. Empoderamento, a declaração reconhece que mulheres são subrepresentadas. Como exemplo, o número de mulheres inventoras citadas em depósitos de patentes é 5 vezes menor que o de homens[20].
- França: Relatório inédito Proporção de inventoras francesas em depósitos de patentes indica apenas 14% de inventoras na França entre 2021 e 2023. O número divulgado pelo escritório de PI é pouco maior se consideradas inventoras vinculadas a empresas ou instituições públicas (16%), frente a empresas privadas (11%) ou pequenas e médias (9%). Se consideradas patentes depositadas apenas por mulheres ou equipes de inventoras, os números são ainda mais baixos diante de patentes depositadas por homens ou times exclusivamente masculinos (menos de 4% contra 78%)[21].
[1] Mesmo que também outras palavras sejam usadas na contextualização de sistemas de IA, como modelos algorítmicos, algoritmos, sistemas de aprendizado em máquina etc. A adoção de ‘sistema’ se vê no AI Act da União Europeia (art. 3(1) link), no PL 2338 brasileiro (art. 4,I link) ou o Memorando explicativo da atualização de definição de IA adotada pela OCDE em 2024 (link).
[2] Matéria do The Guardian traz informações sobre o impacto político e econômico do lançamento da DeepSeek R1 (link).
[3] Dados de investimentos em IA indicam quantias bilionárias com pico em 2021, chegando a 337 bilhões (link). Estudo da OCDE de 2021 demonstra que investimentos de venture capital em IA em 2012 eram menores que USD 3 bilhões; em 2020 chegaram a USD 75 bilhões (link). Dados mais atualizados, segmentados por alguns países, também estão disponíveis (link)
[4] Após o TRIPS, softwares são ou protegidos por legislação específica ou pela legislação de direitos autorais, no entendimento de que o código fonte é uma ‘obra’ literária. O Brasil adotou lei específica para proteção de software, mas aplicam-se subsidiariamente disposições de direitos autorais.
[5] Desde dezembro 2024, está pendente de julgamento na Suprema Corte do Reino Unido o caso da desenvolvedora Emotional Perception AI, que busca proteção patentária para seu sistema de IA, o que foi negado e concedido nas fases anteriores do processo. Este é o primeiro caso desta jurisdição que discute ser possível ou não proteção patentária para sistemas de IA, algo que o escritório de patentes entende não ser possível, dado que a legislação prevê proteção por meio de direitos autorais/software. Detalhes acessíveis em documento da Corte de Apelação de julho 2024 (link).
[6] Sob perspectiva europeia da proteção de PI para sistemas de IA há artigo de Katarina Foss-Solbrekk na Journal of Intellectual Property Law & Practice da Oxford University (link).
[7] Conforme artigos 10 e 18 da Lei de Propriedade Industrial.
[8] Chama-se ‘destilação’ o processo no qual um sistema de IA reduzido (o estudante) é treinado para mimetizar os outputs de outro sistema mais robusto e estruturado (o professor), os quais ele usa de insumo. Tal processo permite gerar sistemas de IA a custos reduzidos e é bastante comum no ambiente de desenvolvedores. A discussão sobre se o Deepseek utilizou de destilação a partir do Chat GPT da OpenAI, contrariando seus termos e condições e segredos de negócios, tomou parte das atenções no começo do ano quando do lançamento de modelo R1.
[9] Não há harmonia na denominação destas técnicas, que incluem data scraping, data mining e webcrawling – por vezes sem a tradução para português. O PL 2338 adota o termo ‘mineração de dados’ para as ‘processos de extração e análise de grandes quantidades de dados’, que por vezes são realizados em momentos distintos e recebem nomenclaturas distintas (conforme OCDE, data scraping serviria para a extração e data mining para a análise e refinamento).
[10] Até dezembro 2024 eram 35 processos, a maioria de poucos autores contra sistemas de IA generativa (como Anderson vs. Stability). Dentre aqueles que envolvem empresas, existem (A) New York Times vs. OpenAI e outro, por uso de material jornalístico para treinamento de sistemas, (B) Getty Images vs. Stability, por uso de fotografias, (C) Concord Music vs. Anthropic por uso de letras de músicas, (D) UMG vs Suno por uso de gravações musicais e (E) Thomson Reuters vs. Ross Intelligence.
[11] Variam em cada legislação os critérios de criatividade e originalidade necessários para que uma criação seja considerada ‘obra’ protegida por direitos autorais – o que traz mais dificuldade nesta questão. A legislação brasileira identifica 13 diferentes tipos de obras passíveis de proteção (art. 7) e lista o que não é ‘obra’ (art. 8) (link).
[12] O fair use previsto no sistema americano flexibiliza os direitos do titular, permitindo uso não autorizado de obras disponíveis ao público. São quatro os elementos que devem ser avaliados para caracterização do fair use: (A) o propósito do uso feito por terceiros – se para usos comerciais ou não, se para fins de pesquisa ou educacionais, se para crítica ou paródias; (B) a quantidade ou importância da parcela da obra originária utilizada, considerando o todo; (C) a natureza da obra originária – se artística, funcional ou derivada de fatos reais e, (D) os efeitos e impactos do uso não autorizado no mercado ou na percepção de valor da obra originária.
[13] Conforme indica o ‘Considerando 105’ da EU AI Act “Any use of copyright protected content requires the authorization of the rightsholder concerned unless relevant copyright exceptions and limitations apply. Directive (EU) 2019/790 introduced exceptions and limitations allowing reproductions and extractions of works or other subject matter, for the purpose of text and data mining, under certain conditions. Under these rules, rightsholders may choose to reserve their rights over their works or other subject matter to prevent text and data mining, unless this is done for the purposes of scientific research. Where the rights to opt out has been expressly reserved in an appropriate manner, providers of general-purpose AI models need to obtain an authorization from rightsholders if they want to carry out text and data mining over such works”.
[14] Pelo PL 2338 que tramita para regular a IA, a proteção a direitos de autor e PI é um dos fundamentos do desenvolvimento, implementação e uso da IA no Brasil (art. 2º). Adiante, o PL impõe remuneração a titulares de direitos autorais e conexos cujas obras tenham sido utilizadas no desenvolvimento de sistemas de IA, com regras sobre a sua negociação (art. 65).
[15] Disponibilizado em fevereiro deste ano, o paper traz excelente contextualização da questão para avançar com as propostas de harmonização dentre diferentes atores. Acessível pelo site da OCDE (link).
[16] Mais detalhes apresentados no site do INPI https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/inpi-e-mdic-avancam-para-agilizar-patentes-e-marcas-no-brasil.
[17] O Relatório de Gestão 2024 pode ser acessado pelo site https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/inpi-divulga-relatorio-de-gestao-2024-com-resultados-alcancados
[18] Participação na consulta pública é possível pelo site https://www.gov.br/ancine/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/consulta-publica/01416-000936-2025-88-normatizacao-do-tratamento-de-notificacoes-de-uso-nao-autorizado-de-obras-audiovisuais-de-que-trata-o-art-3o-da-lei-no-14-815-de-15-de-janeiro-de-2024.
[19] Conforme reportagem do AGFeed, disponível em https://agfeed.com.br/economia/maior-apreensao-da-historia-tira-14-mil-toneladas-de-sementes-piratas-do-mercado/#https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/strategy-documents/commission-work-programme/commission-work-programme-2025_en.
[20] A declaração e iniciativas de países como Japão, Coreia do Sul, Brasil podem ser acessadas pelo linkhttps://www.euipo.europa.eu/da/news/intellectual-property-offices-worldwide-mark-international-women-s-day-2025-together
[21] Relatório completo pode ser acessado em inglês no site https://www.inpi.fr/en/the-share-of-French-female-inventors-in-patent-applications.