Regulação dos ativos virtuais

A regulação do mercado global de ativos virtuais avança a passos largos. No Brasil, acontece o mesmo: em 21 de dezembro de 2022, nascia o primeiro passo da regulamentação de ativos virtuais no Brasil: a Lei 14.478, que dispõe sobre as diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais no Brasil.

Um pouco mais à frente, em 13 de junho de 2023, foi criado o Decreto 11.563, que delegou competência ao Banco Central para regular a prestação de serviços de ativos virtuais, bem como autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais.

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Munido da competência determinada pelo decreto, em 14 de dezembro de 2023, o BC publicou a Consulta Pública 97/2023. Adotando uma abordagem inovadora e democrática, o regulador listou 38 perguntas na tentativa de obter insumos dos participantes do mercado de ativos virtuais, sejam eles usuários ou prestadores de serviço, para as principais questões pertinentes ao setor.

Uma vez recebida as contribuições, algum tempo depois o Banco Central apresentou rascunhos de três normas, na forma das Consultas Públicas 109, 110 e 111. Visando a facilitar a leitura, identificamos a seguir cada consulta com seu respectivo número, apenas.

A CP 109 propõe, majoritariamente, regular de maneira extensa os serviços que podem ser prestados ou contratados pelas prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs), bem como condutas de compliance e conformidade esperadas, além de tentar definir conceitos relacionados ao mercado. A CP 110 propõe regular a governança das PSAVs e os formatos de autorização para funcionamento deles, enquanto a CP 111 inclui diversas transações com ativos virtuais no mercado de câmbio.

O assunto é tão importante quanto complexo, e quero estimular a reflexão e a reavaliação de determinados pontos, contribuindo para a formatação de uma regulamentação que, sem perder de vista seus objetivos de ordem prudencial e de proteção ao sistema financeiro e à sociedade, seja aplicável de forma proporcional e que promova a concorrência e a inovação ao considerar os interesses do mercado e os benefícios gerados aos consumidores. 

Concluída a contextualização e a linha do tempo, passemos para as reflexões a respeito de temas controversos no âmbito das Consultas Públicas, sendo certo que boa parte deles também é controverso globalmente.

A Travel Rule

Como já é sabido pelos conhecedores e apaixonados do mercado de ativos virtuais, existem, basicamente, dois tipos de transações: as que são feitas on-chain, ou seja, na blockchain do respectivo ativo e geralmente descentralizadas, e as off-chain, que são feitas dentro de uma corretora centralizada, como a Binance, via de regra.

A ideia da Travel Rule, como se depreende da sua tradução literal, é o reporte da “viagem” do ativo virtual, desde o seu início até a última movimentação feita, seja on-chain ou off-chain, identificando-se quantidades, valores e também os respectivos detentores e contrapartes.

A dificuldade de implementação da Travel Rule é global, uma vez que o mercado de ativos virtuais nasceu e permanece descentralizado em sua grande parte. Isso significa que não há, no mais dos casos, um agente centralizador que conheça a Ponta Inicial e a Ponta Final, com um Know Your Client completo.

Imagine uma situação onde o cliente de uma corretora centralizada envia seus ativos para uma carteira on-chain, ou seja, fora do controle da corretora centralizada. Como poderia o ente centralizador garantir ou descobrir quem é a Ponta Final, dado que os endereços na blockchain são detidos por desconhecidos?

Algumas soluções têm sido exploradas, sobretudo na Europa, mas garantir uma Travel Rule completa é um desafio extremo, dado que estamos falando de ativos negociados globalmente, entre múltiplos players centralizados (que não se encontram em uma rede interoperarável centralizada, (como é o Swift) e descentralizados (que são desconhecidos em sua vasta maioria).

Em vista desses desafios, antecipadamente alguns países do mundo, inclusive do G7, têm optado por substituir a Travel Rule por outras soluções de abordagem e mitigação de riscos, como aprimoramentos em questionários visando PLD/FT, monitoramentos ativos de transações on-chain e identificação de parâmetros fraudulentos.

A dura missão de regular um ativo global no mercado de câmbio

É difícil achar um caminho pacífico para o tema de reflexão deste tópico, inclusive com meus mais estimados e elevados colegas de profissão e setor.

Ao perceber uma crescente utilização de ativos virtuais para a realização de pagamentos e transferências internacionais – sem qualquer tipo de visibilidade pelo regulador – o Banco Central quis resolver essa questão sem deixar arestas, por meio da CP 111.

A intenção é estabelecer que os pagamentos e transferências internacionais feitas por usuários, seja em ambiente centralizado ou não, seriam incluídas no mercado de câmbio, para que fosse garantido à instituição registro e visibilidade sobre os fluxos cambiais de entrada e saída através de ativos virtuais.

No entanto, ao tentar endereçar esta temática, o Banco Central pode ter esbarrado em conceitos e estruturas fundamentais que sustentam o mercado de ativos virtuais e que se alterados, em alguma medida poderiam até mesmo inviabilizar algumas propostas da CP 109.

1) Autocustódia

 Começando pelos dois tópicos mais comentados, o Banco Central estabeleceu duas vedações: a primeira, a transferência de stablecoins para carteiras de autocustódia detidas pelo próprio usuário brasileiro; a segunda, a transferência de ativos virtuais para carteiras de autocustódia detidas por contrapartes no exterior.

Na primeira vedação, o usuário brasileiro não teria a possibilidade de transferir suas stablecoins para autocustódia, o que é altamente questionável do ponto de vista constitucional (dada a prerrogativa de propriedade privada e livre mercado), enquanto na segunda vedação, um usuário brasileiro não poderia, por exemplo, fazer um pagamento com ativos virtuais para um não residente, caso ele se utilize de uma carteira autocustodiada, o que me parece ir contra o que a própria 111 quer regular, tendo em vista que poderia inviabilizar um pagamento internacional feito para carteira de autocustódia.

Não bastasse isso, o comando normativo parece não levar em consideração que endereços não são previamente geolocalizáveis e nem pré-determinados como autocustódia, daí por que o dispositivo resulta em uma inviabilidade técnico-operacional, já que a corretora local não conseguiria identificar, sem uma autodeclaração do usuário, se a transmissão solicitada pelo usuário tem como destino carteira de autocustódia ou se a mesma é detida por não residente.

Para fins práticos, tais restrições podem levar à migração de usuários (inclusive usuários residentes no Brasil) para entidades reguladas no exterior e não sujeitas a tal restrição, entidades não reguladas ou até para atuação desintermediada por meio de DEXes (exchanges descentralizadas), o que irá expor tais usuários a maiores riscos e vai limitar a visibilidade do Banco Central.

Estas vedações são equivocadas do ponto de vista conceitual do mercado e técnico, e tornam as prestadoras de serviços de ativos virtuais brasileiras menos atrativas para não residentes, tiram o Brasil da vanguarda deste setor e geram grande incentivo à descentralização.

Alguns colegas do mercado pregam a imposição de limites de transferência como alternativa à vedação total: não acho apropriado ou constitucionalmente correto a imposição de limites de transferência para carteiras de auto custódia – ao menos sem que haja razão que a justifique.

2) Negociação global ininterrupta (24/7)

Um dos tópicos menos comentados no mercado, é o possível impacto nos preços dos ativos virtuais praticados no Brasil, cujas proporções podem vir a ser gigantescas. Explico: Ao tentar endereçar os pagamentos internacionais feitos com ativos virtuais, o Banco Central pode acertar em cheio o livro de ordens  global – também referido como “book global”.

A interpretação derivada do artigo 76-A e seguintes da CP 111 pode nos levar ao entendimento de que as operações de compra e venda, feitas em um livro de ordens global, devem ser inseridas no mercado de câmbio – seja em razão de ser utilizada uma moeda estável (stablecoin) ou porque a contraparte está no exterior.

Dando um passo atrás, é fundamental explicar como um livro de ordens em uma bolsa centralizada funciona, seja ela local, como a B3, ou global, como a Binance ou outra exchange semelhante. Um livro de ordens consolida diversas partes vendedoras e compradoras de um ativo, com diversos preços e quantidades, sem que tais partes saibam com quem irão transacionar.

Entendo que as operações de compra, venda, custódia, transmissão ou transferência realizadas ou derivadas de operações realizadas em um Book Global, com ou sem a utilização de stablecoins e independentemente da contraparte, deveriam ser expressamente retiradas do mercado de câmbio, de modo inequívoco, tendo em vista que (i) o par de negociação em stablecoin confere a maior liquidez do mercado e o preço mais correto para um ativo virtual; e (ii) a participação de contrapartes que estejam no exterior, em um Book Global, é fundamental para fomento da liquidez do mercado, permitindo eficiência com spreads (prêmios) mais apertados e menor slippage (a diferença no preço final da transação em comparação ao contratado), bem como diminuindo o risco da manipulação de preços.

Importante destacar que tal ressalva é feita com objetivo de defender o mercado e não o Player A ou B. A lógica reside no fato de que o usuário brasileiro, ao se utilizar de um livro de ordens global, não conhece e não pode escolher com qual contraparte irá transacionar – ele apenas determina o par de negociação, o tipo de operação (compra ou venda), tipo de ordem desejada e preço. Não há, nesta hipótese, ânimo ou dolo do usuário brasileiro em transacionar com uma contraparte não residente específica e conhecida.

3) Negociação de stablecoins

Adicionalmente, as operações de compra, venda, custódia, transmissão ou transferência realizadas entre usuários brasileiros, ainda que se utilizem stablecoins, não deveriam ser incluídas no mercado de câmbio. Considerando o arcabouço legal brasileiro, cumpre ressaltar que as stablecoins não são um tipo de moeda estrangeira e que, neste caso, estamos nos referindo a transações realizadas entre residentes.

4) Pagamentos e transferências internacionais

A preocupação do Banco Central e o interesse dos players de câmbio em atuar regularmente neste setor são legítimas. E para que isso seja equacionado, é viável que as operações de pagamento de obrigação subjacente contraída com não residente conhecido ou transferência realizadas entre usuário residente no Brasil e usuário não residente conhecido, com propósito de remessa, de forma identificada e determinada pelo brasileiro, sejam incluídas no mercado de câmbio e sofram todos os efeitos registrais e tributários daí decorrentes.

Suitability: Quem é o perfil conservador num mercado de ativos virtuais?

“Suitability” é um termo largamente conhecido entre os operadores do mercado financeiro global: a ideia é nobre e consiste em garantir que apenas produtos adequados ao perfil de risco do cliente sejam oferecidos, havendo informação de desenquadramento ao usuário caso este decida investir em produto de risco maior que o seu perfil indica.

A dúvida é como definir o que é conservador em um mercado de ativos virtuais, tanto pelo aspecto do investidor como dos produtos oferecidos? Parece-me que a melhor forma de endereçar a preocupação seria pelo viés educacional e não necessariamente de perfis de risco.

Os serviços globais que sustentam o mercado

Para abordar este tópico é fundamental esclarecer ao leitor, de forma muito abreviada, os principais serviços que garantem a sustentação do mercado de ativos virtuais, que, via de regra, possui preços globais estáveis nas mais diversas regiões do mundo, com um funcionamento de 24 horas por dia e 7 dias por semana, de forma centralizada e descentralizada ao mesmo tempo.

O primeiro serviço, e dos mais importantes, é a provisão de liquidez. Os principais provedores de liquidez são derivados das grandes bolsas globais centralizadas de negociação que acumulam volumes bilionários (por vezes trilionários) de movimentação. Por meio do serviço de provisão de liquidez, uma corretora brasileira pode ter acesso ao Livro de Ordens global (diferentemente do livro da Bolsa brasileira, que só recebe ordens localmente).

Assim, a corretora brasileira pode oferecer uma vasta gama de ativos virtuais a seus usuários, com liquidez imediata, garantindo preços justos e equivalentes aos praticados globalmente e facilitando o acesso de usuários a este mercado e a estes ativos.

O segundo serviço é a custódia terceirizada. A função do custodiante, da mesma forma que é no mercado tradicional, é guardar com segurança e diligência os ativos de usuários a ele confiados.

No mercado de ativos virtuais, a custódia se divide em dois tipos de carteiras – as quentes e as frias. As quentes são aquelas destinadas ao abastecimento da negociação e que guardam uma parte menor da totalidade dos ativos custodiados, enquanto as frias são aquelas destinadas a guarda “off-line” da maior parte da totalidade dos ativos custodiados.

É fundamental para o mercado que tais serviços possam ser contratados de instituições no exterior com requisitos que não inviabilizem sua prestação ou que afastem a atratividade internacional em fornecê-lo.

Conclusão

O Brasil está, indubitavelmente, em uma posição pioneira na regulação de criptoativos e o Banco Central merece o devido reconhecimento pelos seus últimos feitos. Seja pela sua adoção, seja pelo interesse do brasileiro no mercado de ativos virtuais, o mundo está atento aos próximos passos do Brasil no que diz respeito à regulação que será adotada.

As Consultas Públicas 109, 110 e 111 representam um marco na regulamentação dos ativos virtuais no Brasil, estabelecendo diretrizes para a atuação das PSAVs bem como para os serviços e produtos deste mercado. Um dos principais pontos de debate  é a necessidade de regras claras para a prestação de serviços no país, garantindo segurança jurídica para empresas e usuários, ao mesmo tempo em que se mantém a atratividade do Brasil para players globais.

Outro aspecto central da regulação é o impacto da abordagem do Banco Central sobre o mercado de câmbio e sua relação com os criptoativos. A inclusão irrestrita dos ativos virtuais no mercado cambial pode gerar distorções de preços e afetar a competitividade do setor no Brasil.

Por isso, sugerimos que apenas operações com intenção clara de transferência internacional sejam enquadradas nesse regime, garantindo que a regulamentação acompanhe as particularidades do mercado e proteja a eficiência da negociação de criptoativos.

No fim, o objetivo do regulador e do mercado é assegurar um equilíbrio entre inovação e proteção ao usuário, criando um ambiente regulatório que permita o crescimento sustentável do mercado de ativos virtuais no Brasil.

Regras bem estruturadas são fundamentais para dar previsibilidade ao setor, estimular novos investimentos e fortalecer a transparência. Seguiremos acompanhando esse processo e contribuindo para uma regulação que promova o desenvolvimento responsável da indústria cripto no país e que defenda essa vasta comunidade.

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