Coisa julgada: Juiz isenta empresa de multa por pagar tributo após julgamento do STF

A Justiça Federal de Santa Catarina concedeu mandado de segurança à empresa JCS Brasil Eletrodomésticos Ltda., determinando o cancelamento de multas sobre valores de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) recolhidos com atraso, pelo fato de a empresa ter uma decisão favorável, transitada em julgado, que a isentava de recolher o imposto. A Fazenda já recorreu da decisão. 

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A decisão foi proferida pelo juiz Eduardo Didonet Teixeira, da 9ª Vara Federal de Florianópolis, com base na definição dos Temas 881 e 885 de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sobre os limites da coisa julgada. No julgamento de mérito,  o STF definiu que um contribuinte que obteve uma decisão judicial favorável com trânsito em julgado permitindo o não pagamento de um tributo perde automaticamente o seu direito diante de um novo entendimento do STF que considere a cobrança constitucional. 

Já em abril do ano passado, ao julgar os embargos, o Supremo decidiu que não cabe a imposição de multa para contribuintes que, respaldados por decisões judiciais anteriores, deixaram de recolher tributos posteriormente considerados devidos. No caso concreto, a decisão do STF versava sobre  o recolhimento da CSLL.

A nova decisão da Justiça federal catarinense abre precedente para contribuintes que deixaram de pagar outros tributos com respaldo em decisões judiciais transitadas em julgado, mas que foram posteriormente revertidas por entendimento do STF. “É um desdobramento da modulação da coisa julgada que não estava no radar, tem bastante empresa nessa situação”, diz Felipe Omori, do KLA Advogados, que representa a JCS Brasil no caso. “E levanta outras questões sobre a operacionalização com o Fisco”. 

Vai e vem

O caso julgado em Santa Catarina tem origem em uma decisão favorável obtida pela JCS Brasil Eletrodomésticos em 2014, que a isentava do pagamento de IPI na revenda, internamente, de produtos importados. Na época, a empresa obteve decisão transitada em julgado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que afastou a cobrança do tributo. Essa discussão já se arrastava desde o início dos anos 2000, segundo Omori, e a posição que prevaleceu era a de que, como não havia industrialização entre a importação e a revenda, não deveria incidir IPI novamente. 

Porém, em 2020, o STF firmou novo entendimento sobre a questão ao julgar o Tema 906 de repercussão geral, declarando a constitucionalidade da cobrança do IPI nessas operações. “O STF entendeu pela linha da isonomia: já que a revenda de produto nacional industrializado está sujeita a IPI, para não criar diferenciação entre os produtos, declarou-se a incidência de IPI também na revenda de importados”, explica Omori. “É uma solução não muito jurídica, mas política e econômica”.

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Depois, em 2023, o Supremo consolidou, com os Temas 881 e 885, a tese de que decisões individuais favoráveis a contribuintes perdem automaticamente a eficácia diante de julgamento posterior da Corte em sentido contrário, desde que este tenha repercussão geral reconhecida.

Ao antecipar-se à possibilidade de cobrança por parte da Receita Federal, a empresa optou por quitar os tributos, devidos desde dezembro de 2020 (mês seguinte ao Tema 906 do STF), em 2023. Assim, pretendia aproveitar o benefício da denúncia espontânea – mecanismo que permite a regularização de débitos sem a aplicação de penalidades, quando o contribuinte se antecipa à cobrança da Receita para quitar os débitos.

No entanto, a Receita Federal não reconheceu o afastamento das multas sobre os tributos referentes ao período de novembro de 2021 a junho de 2022, alegando que parte do pagamento foi realizado por compensação tributária, o que inviabilizaria a aplicação da denúncia espontânea.

Segundo Omori, a argumentação que sustentava essa negativa vinha do artigo 138 do Código Tributário Nacional (CTN), que descreve a denúncia espontânea dentro do contexto de “pagamento”. No ano passado, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) aprovou súmula que afirma que a compensação não equivale a pagamento para fins de denúncia espontânea. “A Receita tem um entendimento bem restrito sobre o tema”, diz Omori.

Mandado 

Diante da negativa da Receita, a empresa ingressou com mandado de segurança pedindo o afastamento das multas. Paralelamente, no ano passado, o STF determinou que não há incidência de multa sobre o tributo a ser pago pelo contribuinte cuja decisão individual tenha sido superada por entendimento posterior do STF — isso no contexto da CSLL. Esse entendimento, que foi dado em sede de embargos de declaração do julgamento dos Temas 881 e 885, ensejou um novo pedido de mandado de segurança por parte da JCS Brasil, por analogia.

Assim, o juiz Eduardo Didonet Teixeira, da 9ª Vara Federal de Florianópolis, concedeu a segurança, determinando o cancelamento das penalidades e ressaltando que “não há que se falar em má-fé, dolo ou culpa por parte de um sujeito passivo no caso dele (sic) possuir em seu favor uma decisão judicial com trânsito em julgado”.

Segundo o magistrado, a decisão do STF nos embargos de declaração dos Temas 881 e 885 estabeleceu que “torna-se imperativo afastar, como regra geral, a imputação de multas tributárias de qualquer natureza” nos casos em que a mudança jurisprudencial do STF resultou na exigibilidade retroativa de tributos.

Outro argumento dado por Didonet foi a impossibilidade de penalizar um contribuinte que seguiu decisão judicial válida à época: “Se havia ordem judicial a proteger o contribuinte, não há sentido em lhe aplicar uma penalidade pelo não recolhimento do tributo”.

O juiz também afirmou que o pagamento foi realizado antes da publicação final do acórdão dos Temas 881 e 885, o que reforça o direito da empresa de não ser penalizada. “A impetrante estava albergada pela sua coisa julgada individual, que perdurou com total eficácia até quando o STF estabeleceu a quebra automática de decisões transitadas em julgado posteriormente revertidas por julgamentos de controle de constitucionalidade.”

A decisão foi tomada no mandado de segurança 5012260-66.2024.4.04.7200.

Mesmo que a União não tivesse apelado, a decisão da 9ª Vara Federal de Florianópolis, como está sujeita ao duplo grau de jurisdição pelo reexame necessário, seria automaticamente julgada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Caso o entendimento seja mantido, a decisão poderá influenciar outras ações semelhantes, criando um precedente relevante para empresas que passam por situações análogas. A modulação dos Temas 881 e 885 pelo STF já afastava a cobrança retroativa de tributos, mas a isenção de multas reforça a segurança jurídica para os contribuintes nesses casos. Procurada, a Receita Federal afirmou que não se manifesta sobre decisões judiciais.

Coisa julgada

O caso reacende a discussão sobre os limites da coisa julgada, um princípio fundamental do Direito para a estabilidade das decisões. No contexto tributário, há uma particularidade que complica o cenário: os tributos de trato sucessivo, aqueles que incidem de forma periódica e contínua. Alguns exemplos são a CSLL, PIS, Cofins, ICMS, IPI, entre outros.

Antes dos Temas 881 e 885, havia divergências sobre o alcance da coisa julgada nesse tipo de tributos. Alguns precedentes indicavam que uma decisão favorável ao contribuinte poderia permanecer válida indefinidamente, enquanto outros defendiam que uma mudança posterior na jurisprudência poderia fazer cessar efeitos futuros. O STJ, por exemplo, já vinha adotando um posicionamento de que a coisa julgada em matéria tributária não poderia impedir que novas normas ou interpretações fossem aplicadas a fatos geradores futuros.

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Com os Temas 881 e 885, o entendimento consolidado foi de que, se o Supremo, em sede de repercussão geral, decidir que um tributo é constitucional, as decisões anteriores que diziam o contrário perdem eficácia para o futuro. Isso ocorre automaticamente. No entanto, a cobrança retroativa ainda deve respeitar os princípios anteriores. Isso significa que contribuintes que possuíam decisões favoráveis perderam essa proteção, mas não poderiam ser cobrados retroativamente de forma ilimitada.

“A sentença ajuda a trazer um pouco mais de segurança, mas não resolve a totalidade da questão”, diz Omori. “Estamos há dez anos acompanhando o tema na pauta do STF, e ainda há dúvidas. Como operar em um ambiente assim?”.

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