A CVM e o dever de diligência: o fim da business judgment rule no Brasil?

O dever de diligência sempre figurou como um dos pilares fundamentais da governança corporativa, impondo aos administradores de sociedades anônimas a obrigação de conduzir a gestão empresarial com o cuidado e a prudência que se espera de profissionais qualificados.

Tradicionalmente concebido como uma obrigação de meio, e não de resultado, esse dever exige que os administradores empreguem seus melhores esforços na condução dos negócios, sem que lhes seja imposta a garantia de um desfecho específico.

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Entretanto, a recente decisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Processo Administrativo Sancionador 19957.007916/2019-38 reabriu o debate sobre os limites dessa obrigação, ao condenar um dos diretores da Vale S.A. por descumprimento do dever de diligência no contexto do rompimento da Barragem B1 em Brumadinho. Esse julgamento traz implicações relevantes para a interpretação do artigo 153 da Lei 6.404/1976 e para a segurança jurídica no ambiente corporativo.

O dever de diligência, tal como positivado na legislação societária brasileira, inspira-se na figura do bonus pater familias, estabelecendo um padrão de conduta elevado, mas sempre sob a perspectiva da obrigação de meio.

A adoção da Business Judgment Rule no direito brasileiro consolidou essa compreensão, conferindo aos administradores uma margem de discricionariedade nas decisões empresariais, desde que estas fossem tomadas de forma informada, livre de conflitos de interesse e em benefício da companhia.

A prática regulatória da CVM, historicamente, acompanhava essa orientação, restringindo a responsabilização dos administradores a hipóteses de manifesta imprudência, negligência ou omissão deliberada. O julgamento do PAS 19957.007916/2019-38, contudo, sinaliza uma inflexão nesse entendimento.

A decisão da CVM teve como foco a atuação de Fabio Schvartsman, então diretor-presidente da Vale S.A., e Gerd Peter Poppinga, diretor de Ferrosos e Carvão, no episódio do rompimento da barragem. Schvartsman foi absolvido da acusação de violação ao dever de diligência, enquanto Poppinga foi condenado ao pagamento de multa de R$ 27 milhões, sob o argumento de que sua conduta não atendeu aos padrões exigidos para a mitigação dos riscos operacionais da empresa.

A fundamentação adotada no voto vencedor, embora não afirme expressamente que o dever de diligência impõe uma obrigação de resultado, sugere que a responsabilidade do administrador pode se estender a falhas no sistema de gestão de riscos e de governança corporativa, independentemente da sua ação direta no evento danoso.

Essa relativização do dever de diligência gera preocupações quanto à previsibilidade da responsabilização de administradores no Brasil. O deslocamento do paradigma tradicional para uma interpretação mais rigorosa pode ter reflexos diretos na governança corporativa e no mercado de capitais. A elevação dos riscos associados à função administrativa tende a desencorajar a assunção de cargos de gestão em companhias abertas, especialmente nas que operam em setores de alto impacto ambiental e regulatório.

Além disso, o aumento da exposição dos administradores pode levar a um encarecimento das apólices de seguros D&O (Directors and Officers Liability Insurance), impactando os custos operacionais das empresas e influenciando a estrutura de governança e controle interno. A exigência de uma documentação mais detalhada das deliberações empresariais também pode se tornar uma necessidade crescente, com a adoção de mecanismos mais rigorosos de registro e rastreamento das decisões estratégicas.

O impacto desse novo entendimento não se restringe ao mercado de capitais, alcançando também a dinâmica de responsabilização administrativa e judicial. A eventual consolidação da tese de que o dever de diligência impõe aos administradores um encargo que ultrapassa a mera adoção de boas práticas pode representar um enfraquecimento da Business Judgment Rule no Brasil, aproximando a regulação societária do modelo de responsabilidade objetiva.

Esse movimento, se confirmado, exigirá uma revisão dos parâmetros interpretativos da CVM e do Judiciário, com potencial reflexo na atração de investimentos estrangeiros e na previsibilidade das decisões regulatórias.

A análise do PAS 19957.007916/2019-38, sob essa perspectiva, revela um embate entre a necessidade de garantir maior rigor na governança corporativa e a preservação da segurança jurídica para os administradores. Se, por um lado, a tragédia de Brumadinho impôs um novo patamar de exigência quanto à responsabilidade de executivos de grandes corporações, por outro, a ampliação do escopo do dever de diligência pode criar um ambiente de incerteza, no qual a linha entre a conduta diligente e a responsabilidade objetiva se torna cada vez mais tênue.

A adoção de um critério mais rigoroso para a avaliação das ações dos administradores pode gerar um efeito dissuasório indesejado, inibindo a tomada de decisões estratégicas e a inovação empresarial, em razão do temor de futuras sanções regulatórias e judiciais.

O caso Brumadinho, além de suas implicações humanas e ambientais devastadoras, torna-se, assim, um marco na regulação societária brasileira. A decisão da CVM não apenas introduz um novo olhar sobre o dever de diligência, mas também lança desafios importantes para o futuro da governança corporativa no país.

A necessidade de um equilíbrio entre responsabilização e previsibilidade regulatória se impõe como um tema central, exigindo um debate aprofundado sobre os limites e as consequências dessa nova interpretação. A evolução desse entendimento determinará não apenas a forma como os administradores de sociedades anônimas serão avaliados no futuro, mas também o grau de atratividade do mercado de capitais brasileiro e a confiança dos agentes econômicos nas regras que regem a atuação empresarial.

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