Caso Janones: o crime de ‘rachadinha’, ANPP e seus efeitos

No último dia 6 de março foi amplamente noticiado que o deputado federal André Janones (Avante-MG) fechou acordo de não persecução penal (ANPP) com a PGR em que confessou ter praticado o crime de “rachadinha” dentro de seu gabinete. Como sabido, trata-se do nome comum dado à prática de os funcionários repassarem parte de seus salários ao agente contratante, podendo ir para o parlamentar ou para o partido político.

O ANPP se deu após o STF determinar, em dezembro de 2023, a abertura do Inquérito 4949 para investigar os fatos denunciados por assessores – inicialmente publicada em matéria jornalística de novembro de 2023, trazendo inclusive supostos áudios do parlamentar cobrando dos seus funcionários o pagamento de despesas pessoais e a recomposição do patrimônio que teria sido “dilapidado” pela campanha eleitoral. Dos áudios, ouve-se que não seria justo que os assessores permanecessem com 100% de seus salários.

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Durante as investigações, foram determinadas a quebra dos sigilos bancário e fiscal do deputado. Ao final, o deputado foi indiciado pela Polícia Federal, ou seja, concluiu-se pela existência de suficientes indícios de autoria, com a imputação da prática do ilícito penal. O próximo passo seria a ação penal.

Os termos do ANPP celebrado com a PGR ainda estão em sigilo, mas as reportagens dão conta de que o parlamentar teria admitido expressamente que “no início de 2019, devido ao fato de estar com o nome negativado no SPC e Serasa, recorreu a um de seus assessores parlamentares, a quem solicitou que lhe providenciasse um cartão de crédito adicional”.

Diante desses fatos confessados, o ANPP consistiria no pagamento de R$ 157,8 mil, sendo uma parte (R$ 131.511) a título de reparação do dano à Câmara dos Deputados, e outra parte (R$ 26.302) equivalente a uma prestação pecuniária no valor de 20% do dano ao erário. Ainda de acordo com o noticiado, o deputado se comprometeu a cessar as práticas delitivas objeto do acordo e a não ser processado por outro crime ou contravenção penal até o cumprimento do acordo.

O caso Janones enseja três perguntas que serão respondidas na coluna de hoje: 1) qual é a tipificação penal correta do crime de “rachadinha”? 2) quais são os efeitos de um ANPP, especialmente nas esferas civil, administrativa (disciplinar) e para fins de improbidade administrativa? e 3) o parlamentar que celebra ANPP fica inelegível nos termos da LC 64/1990?

Em primeiro lugar, registre-se que não existe no Código Penal o crime de “rachadinha”. A literatura vem apresentando divergências sobre o melhor enquadramento: se peculato (art. 312), concussão (art. 316) ou corrupção passiva (art. 317). Na própria jurisprudência também são encontradas diferentes qualificações jurídicas a tais condutas.

No REsp 1.244.377, a 6ª Turma do STJ considerou como peculato-desvio a “situação concreta em que parte dos vencimentos de funcionários investidos em cargos comissionados no gabinete da vereadora, alguns que nem sequer trabalhavam de fato, eram para ela repassados e posteriormente utilizados no pagamento de outras pessoas que também prestavam serviços em sua assessoria, porém sem estarem investidas em cargos públicos”.

Já na APn 825, a Corte Especial do STJ enquadrou como concussão a conduta de desembargador do TJCE que, valendo-se de sua posição hierárquica, indicou duas servidoras de cargos em comissão “mediante a condição sine qua non de repasse de parte dos futuros vencimentos e a ameaça implícita e velada, mas sempre concreta, de exoneração pelo não rateio de percentual entabulado àquele que tem o poder para indicar a nomeação e a exoneração”.

Por seu turno, ao julgar o Recurso Especial Eleitoral 0600235-82.2020.6.26.0001 – em que se discutia o registro de candidata a vereadora de São Paulo que fora condenada por improbidade administrativa pela conduta de “exigir para si parte dos salários dos assessores que atuavam dentro do seu gabinete” –, o TSE entendeu que a prática de “rachadinha” configura enriquecimento ilícito e dano ao patrimônio público, elementos necessários para caracterizar a inelegibilidade prevista na alínea l do inciso I do art. 1º da LC 64/1990, incluída pela LC 135/2010.

Nesse caso concreto, a decisão recorrida do TRE-SP, mesmo com a condenação por improbidade decorrente da “rachadinha”, havia reputado inexistente a lesão ao erário, na medida em que teria havido a contraprestação do serviço por parte dos assessores.

Em todo caso, o destaque está para a passagem em obiter dictum do ministro relator no sentido de que “O esquema de “rachadinha” é uma clara e ostensiva modalidade de corrupção, que, por sua vez é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos”.

Embora o termo corrupção não tenha sido acompanhado da menção ao art. 317 do CP, ficou sugerida a ideia de que a “rachadinha” proporciona uma vantagem patrimonial indevida ao agente político, precisamente como o tipo que implica solicitar ou receber vantagem indevida.

Como as penas por peculato (art. 312), concussão (art. 316) ou corrupção passiva (art. 317) são todas de reclusão, de 2 a 12 anos, e multa, a discussão sobre o correto enquadramento típico dependerá mais do que restou comprovado em cada caso, com pouca diferença prática para o agente.

Já sobre o ANPP, como sabido, suas condições e requisitos constam do art. 28-A do CPP, incluído pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Trata-se de negócio jurídico pré-processual mediante o qual o imputado confessa a prática do crime em troca de que o Ministério Público não promova a ação penal correspondente, ficando o imputado sujeito a uma punição menos gravosa, e podendo, após o cumprimento integral do acordo, pleitear a extinção de sua punibilidade.

Embora estabeleça a obrigatoriedade de confissão (é um pressuposto para a sua celebração), há literatura entendendo que o ANPP não possuiria finalidade probatória,[1] caracterizando-se como simples mecanismo de simplificação processual, que veicula uma política criminal (uma escolha de prioridades, reservando a persecução penal em juízo aos crimes mais graves).

Por essa linha de raciocínio, a confissão operada na fase extrajudicial tem peso relativizado nos termos do art. 197 do CPP, pelo qual “o valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”. Além disso, o próprio art. 28-A do CPP prevê que a confissão deve ser feita “formal e circunstancialmente”, o que poderia sugerir uma impossibilidade de utilização da confissão em outros processos ou esferas.

A questão é: como justificar que a celebração de um ANPP não afeta a presunção de inocência? Por mais que o objetivo do ANPP não seja probatório, não custa recordar que o STF, ao julgar a Pet 7.065-AgRg, que tinha por objeto a delação premiada (outro instituto de justiça criminal negocial), entendeu que não há óbice ao compartilhamento dos termos da delação premiada, desde que haja delimitação dos fatos.

A competência para deliberação é do juízo homologador do acordo de colaboração premiada. Em raciocínio por analogia, reputa-se que a mesma lógica se aplica ao ANPP. Trata-se da possibilidade de usá-lo como prova emprestada para subsidiar procedimentos civis, administrativos (disciplinares) e de improbidade administrativa.

De acordo com o art. 935 do CC, a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. De fato, as instâncias civil e penal não se confundem; tutelam bens jurídicos diferentes. Daí que um mesmo fato pode gerar, de forma concomitante, ilícitos civil e penal, sem que se possa falar em bis in idem.

Entretanto, como o próprio dispositivo legal registra, a decisão do juízo penal sobre a autoria (tanto a negativa, quanto a positiva) e a materialidade (tanto a ausência, quanto a ocorrência) tem efeitos na esfera cível. Então, a rigor, a responsabilidade civil não é tão independente assim; trata-se de uma independência relativa.

Na literatura, é possível encontrar alguns autores defendendo que somente a negativa de autoria e a ausência de materialidade dos fatos teriam repercussão na responsabilidade civil, mas a melhor leitura do dispositivo legal é a consolidada no enunciado 45 da I Jornada de Direito Civil: “No caso do art. 935, não mais se poderá questionar a existência do fato ou quem seja o seu autor se essas questões se acharem categoricamente decididas no juízo criminal”.

No caso de um ANPP, a homologação não deixa de ser uma decisão judicial. Portanto, inexiste impedimento ao compartilhamento do ANPP com tal propósito. Inclusive, essa é a ratio da leitura conjugada dos arts. 65 a 67 do CPP.

Ademais, não custa recordar a previsão do art. 12 da Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), com redação dada pela Lei 14.230/2021, que registra textualmente a possibilidade de culminação das sanções por improbidade administrativa mesmo diante do ressarcimento integral do dano patrimonial e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica.

No caso, as sanções mais relevantes da LIA são a suspensão dos direitos políticos por até 14 anos e a proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 14 anos, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato.

Explicada a in(ter)dependência das instâncias, por fim, comente-se a relação entre o ANPP e a elegibilidade do parlamentar que o firmou. Como sabido, a LC 64/1990, art. 1º, inciso I, alínea e, com redação dada pela LC 135/2010, estabelece que não inelegíveis para qualquer cargo os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes nele listados, com destaque para os crimes contra a administração pública (nos quais estaria incluída a “rachadinha”).

Como se acaba de ver, o ANPP consubstancia um negócio jurídico pré-processual, que, como já diz o próprio nome, não implica persecução penal em sentido escrito (ação penal). Os §§ 4º e 6º do art. 28-A do CPP demonstram que, na homologação do ANPP, a atividade cognitiva do juiz não se equipara a de uma sentença condenatória nos termos do art. 387 do CPP.

Dessa forma, não se podendo falar em “condenação” por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado como exige a referida alínea e do inciso I do art. 1º da LC 64/1990, tem-se que a celebração de ANPP não acarreta impactos na elegibilidade do parlamentar, dada a falta de previsão expressa nesse sentido (a literalidade da LC 64/1990 e do CPP) e a impossibilidade de analogia in malam partem.


[1] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de; REIS, Dimas Antônio Gonçalves Fagundes. Limites à utilização da confissão do imputada realizada como requisito ao acordo de não persecução penal. Revista de Estudos Criminais, nº 80, 2021, p. 273.

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