Alunos veem Direito Constitucional como instrumento de poder, diz Carlos Horbach

O ensino do Direito Constitucional hoje guarda uma diferença já visível na comparação com o passado. E uma das primeiras diferenças é que os alunos sabem que estão diante de umaferramenta política. “Hoje, os alunos já chegam no Direito Constitucional tendo a consciência de que vão lidar com um instrumento de influência política, um instrumento de poder”, avalia Carlos Bastide Horbach, professor-doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Em entrevista ao JOTA, ele explica que parte dessa mudança se deve
à maneira como os estudantes enxergam o Supremo Tribunal Federal (STF) e como a Corte foi conquistando protagonismo após a promulgação da Constituição em 1988. Horbach também compara ponto a ponto como era o ensino do Direito Constitucional na época em que foi estudante, no início da década de 1990, e como é hoje.

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Ele recorda que “ninguém dava muita ênfase ao Direito Constitucional” e que discutir uma ação direta de inconstitucionalidade  era algo quase que alheio à  realidade. “Os exemplos se tornam muito mais presentes no cotidiano dos alunos, e isso faz com que eles se sintam até mais interessados em relação aos temas. Os temas não são coisas distantes ou abstratas, como eram na minha época.”

“Hoje em dia o Direito Constitucional é percebido pelo aluno como algo que impacta em N questões jurídicas para muito além daquilo que na minha graduação se entendia como Direito Constitucional. Tanto que não é só no Constitucional que a jurisprudência do Supremo virou um referencial primordial”, acrescenta.

Em meio a essa amplitude e influência do Direito Constitucional, Horbach considera um desafio “demonstrar para o aluno que existem várias possibilidades de interpretação dentro dos limites fixados pela norma e que são intransponíveis.”

O professor Carlos Bastide Horbach é mais um entrevistado da série do JOTA sobre os desafios de ensinar Direito Constitucional no Brasil atual.

A série explora com professores renomados como é o ensino e a formação dos futuros operadores do Direito, em um cenário no qual a Constituição é não apenas um texto jurídico, mas também um campo de inúmeras disputas sociais.

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Leia trechos da entrevista com o professor Carlos Horbach, da USP. A íntegra está disponível no YouTube do JOTA. Inscreva-se no canal para acompanhar todas as onze entrevistas da série.

Como está sendo a sua experiência dentro da sala de aula de Direito Constitucional na USP?

Eu posso desde logo afirmar que nós estamos passando por um período bastante peculiar da discussão dos temas constitucionais no Brasil e, por conseguinte, do modo como em sala de aula se discute, se trata, se enfrenta os diferentes tópicos da disciplina de Direito Constitucional, ou mesmo nas disciplinas optativas, que na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) nós temos muitas, sobre temas dos mais variados no campo do Direito Constitucional. E eu posso dizer que esse período tem sido um período muito peculiar, porque eu tenho condições já de fazer uma certa comparação no tempo. Eu tive Direito Constitucional entre os anos de 1992 e 1993. E comecei a dar aula na faculdade, primeiro na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), depois no CEUB, depois na USP, em 1997. 

Então, são 24 anos de sala de aula, mais o período em que eu fui aluno, de modo que mudou muito. Mudou muito em diferentes aspectos, mudou muito no volume de temas relevantes que acabam povoando as aulas de Direito Constitucional. Os exemplos se tornam muito mais presentes no cotidiano dos alunos, e isso faz com que eles se sintam até mais interessados em relação aos temas. Os temas não são coisas distantes ou abstratas, como eram na minha época. Discutir, enfim, uma ação direta de inconstitucionalidade quando eu fui aluno da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) era algo que se apresentava como quase que estrangeiro, como alheio à nossa realidade. 

Você deve ter discutido a ADI número 2 e olhe lá, né? Alguma coisa do gênero. 

Por aí. A autoaplicabilidade do artigo 192, parágrafo terceiro, dos juros dos bancos era o que tinha de novidade e de coisa premente naquela época. Mas, mesmo assim, eu devo confessar que nem esse tema passou pelas minhas aulas de Direito Constitucional. As minhas aulas de Direito Constitucional foram aulas muito mais de teoria da Constituição do que de Direito Constitucional positivo. Eu tive aula entre o quarto aniversário e o quinto aniversário da Constituição de 1988. Havia ainda um mundo a ser desbravado naquele conjunto de normas que tinham sido promulgadas há pouco tempo. E isso fazia com que as nossas aulas ainda fossem muito mais pautadas por temas de teoria da Constituição, como eu disse. Não se falava muito do Direito Constitucional positivo, não se falava praticamente da jurisprudência do Supremo, eu confesso que eu não lembro de ouvir na aula de Direito Constitucional algum acórdão do Supremo sendo citado. 

E os manuais de Direito Constitucional que nós tínhamos nessa época eram de dois perfis basicamente: eram grandes descrições de modelos constitucionais estrangeiros, com teorias sobre separação dos Poderes, sobre o que é o Poder Judiciário, limites do Poder Executivo e assim por diante, ou então eram referenciais muito sintéticos do que deveria ser tratado numa disciplina, sem maiores aprofundamentos. 

Essa era a doutrina que a gente tinha. Se a gente queria aprofundar um pouco mais, era preciso recorrer a monografias ou a artigos de revistas doutrinárias. Mas não havia um manual em que houvesse uma análise global da matéria, com jurisprudência, com o Direito Constitucional positivo, com doutrina. Isso, de fato, era uma coisa que faltava. 

E como é que é hoje

Houve uma evolução muito clara dessa doutrina que eu estudei em 1992, 1993, para a doutrina que se faz hoje. E eu vejo que existem vários momentos marcantes dessa evolução. Me parece que o primeiro grande momento marcante dessa evolução é o livro do professor José Afonso da Silva, O Direito Constitucional Positivo, em que se saiu daquele modelo que eu descrevi agora, de grandes análises de Teoria da Constituição, para se examinar quase que ponto a ponto o texto da Constituição, tanto que os meus colegas de faculdade que se dedicaram a estudar para concurso público após a formatura, todos eles estudavam com base no professor José Afonso, exatamente porque tinha essa análise, como eu disse, ponto a ponto. 

O segundo passo que me parece muito importante na evolução dessa doutrina é o livro do professor Alexandre de Moraes, que pela primeira vez trouxe de maneira muito forte a referência ao Supremo Tribunal Federal. Incorporou esse elemento, que era um elemento negligenciado pela nossa doutrina. E, a partir daí, me parece que nenhum grande manual, nenhum grande livro de Direito Constitucional deixa de utilizar esse referencial. O que é reforçado também por outro elemento, que é um elemento que reforja o âmbito exclusivamente acadêmico ou doutrinário, que é o protagonismo político-institucional do Supremo nos últimos 25 anos, 30 anos. 

Então, ao mesmo tempo em que, no final dos anos 1990, o livro do professor Alexandre de Moraes incorpora essas referências à jurisprudência do Supremo, o Supremo se torna mais presente, ele se torna mais produtivo, ele passa a enfrentar problemas dos mais variados e isso impacta efetivamente a doutrina e impacta o modo como nós, professores, temos que lidar com os temas do Direito Constitucional e sala de aula

Quando eles chegam na tua aula, Carlos, eles chegam com alguma ideia já do que é Supremo e já chegam desafiando alguma interpretação, ou do texto, ou de alguma jurisprudência, ou mesmo essa posição mais política do Supremo Tribunal Federal? 

Sem dúvida. Pelo que eu tenho visto e acompanhado nos meus doze anos de aula na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, essa é uma postura presente. Os alunos já chegam no direito constitucional tendo a consciência de que vão lidar com uma ferramenta, vão lidar com um instrumento de influência política, um instrumento de poder. Exatamente porque enxergam isso no Supremo Tribunal Federal. O Direito Constitucional não é uma disciplina jurídica qualquer ou como outras, como era talvez na minha época. Ninguém dava muita ênfase no direito constitucional. Hoje em dia, não. 

Hoje em dia o Direito Constitucional é percebido pelo aluno como algo que impacta em N questões jurídicas para muito além daquilo que na minha época, na minha graduação, se entendia como direito constitucional. Tanto que não é só no direito constitucional que a jurisprudência do Supremo virou um referencial primordial. Ninguém discute direito tributário sem ir na jurisprudência do Supremo, ninguém discute direito administrativo sem ir na jurisprudência do Supremo, o direito ambiental sem a jurisprudência do Supremo. E até o direito civil. Ninguém vai no direito de família sem a jurisprudência do Supremo. Existem temas que, para um constitucionalista clássico, seriam completamente alheios ao campo do Direito Constitucional. Temas que ficariam confinados à esfera do Código Civil, simplesmente, e que hoje são constitucionalizados e a decisão final é do Supremo. Regime de bens do casamento para pessoas com mais de determinada idade. Isso é uma matéria constitucional que foi, enfim, enfrentada pelo Supremo, que na minha época passaria longe disso. 

Como é que a disciplina não vira uma grande aula sobre o Supremo Tribunal Federal? Não vira muito isso, muito centrado no STF? 

Vira, sem dúvida alguma.

E não é um problema?

De certo modo, é um problema. Porque o Direito Constitucional não é só o que o Supremo diz, por mais que a gente ouça muito a frase “a Constituição é o que o Supremo diz que ela é”. Lamento, mas não é. E não pode ser. Não é e não pode ser.

De modo que, em alguns aspectos é até um pouco frustrante, a partir do referencial teórico de vários autores que são fulcrais para a compreensão das diferentes teorias do direito constitucional, se desenvolver esse ensaio de aula, e muitas vezes vem uma pergunta que diz assim: “Tá, mas se o Supremo decidir assado, é assim?”

É assim, porém, nós precisamos ter os ferramentais necessários para fazer a crítica dessa jurisprudência, para colocar em xeque determinadas premissas, enfim, isso é algo que compõe não só a cultura jurídica do indivíduo, do graduando, mas compõe também a formação do seu senso crítico, de ter condições de colocar as coisas nos seus devidos lugares e enxergar até que ponto aquela decisão se enquadra dentro de parâmetros que são aceitáveis a partir da normatividade constitucional vigente e aquilo que eventualmente extrapola do que se entende como acatável, compassível de aceitação. 

Quando algum aluno te leva a essa questão, nós estamos estudando, o senhor aí, professor, disse tal coisa, mas o Supremo está dizendo outra, ou chegou a uma conclusão diferente sobre esse aspecto qualquer. Como é que você esmiuça isso? Como é que você lida com isso? 

A questão aqui é exatamente demonstrar para o aluno que existem várias possibilidades de interpretação dentro dos limites fixados pela norma. Existem limites que são intransponíveis. E aí vai haver, dentro da própria doutrina, uma série de discussões. Eu me lembro de um texto do Yellen sobre mutação constitucional, ele diz que o limite é o texto, não dá para negar o texto, me parece que esse é um limite bom. E muitas vezes os alunos ficam perplexos porque as interpretações vão além do texto e negam o texto. 

E há uma que sempre, eu acho que gera uma certa blague até por parte dos alunos, que é a interpretação que se deu a partir, é verdade, de uma leitura do presidente da Câmara dos Deputados em relação ao trancamento da pauta do Congresso Nacional pelas medidas provisórias a partir da expiração do prazo fixado lá no artigo sessenta e dois. Está escrito todas, mas a interpretação é que todas não são bem todas, todas são algumas, que são aquelas que podem ser objeto de disposição e medida provisória. Então, tudo que não é objeto de disposição e medida provisória pode. Isso gera uma certa perplexidade e não raro gera até um certo, eu vou falar uma palavra um pouco pesada, mas um certo deboche. Professor, todos não é todos? Pode ser, pode não ser. Ou, a questão, a partir de um determinado marco, a partir da diplomação, se tem o foro por prerrogativa de função. Não é bem assim. São coisas diferentes e que podem mudar, inclusive.

Como é que convence o aluno de que nós podemos ter respostas corretas para desafios constitucionais, respostas às vezes únicas, e que o Supremo não é o detentor dessa última e única palavra? Como é que se convence eles disso? 

É, de certo modo, difícil compreender e difícil explicar isso para os alunos, porque, de certo modo, a nossa engrenagem institucional toda parece conspirar para essa conclusão. Não existe muito claro o ambiente de freios e contrapesos que faria com que houvesse uma real contenção de um poder pelo outro, e contenção essa que geraria, inclusive, uma autocontenção, uma limitação dos próprios atores envolvidos diretamente nesse processo.

Então, o aluno não percebe muito bem, dentro até da sua pouca experiência, quais são as possibilidades de superação desse quadro ou de modificação desse quadro. Esse quadro, para muitos, é um quadro que é natural, e aí o direito constitucional se transforma um pouco em algo que é tomado com uma certa disfarçatez. Ah, essa é a teoria, mas na prática é diferente. Ou então se coloca em xeque, inclusive, a própria, não vou dizer cientificidade da disciplina, mas a seriedade da disciplina. 

Até que ponto essas teorias que se estuda, esses conceitos que são historicamente afirmados e construídos, até que ponto eles têm efetivamente um valor a partir de marcos que são definidos pela prática institucional? E isso, de fato, fica difícil em alguns momentos de explicar, a não ser a partir de um contexto político específico, que eu digo, não, dentro desse contexto, talvez as coisas fiquem mais compreensíveis. 

Isso te obriga, portanto, a descer para a política para conseguir explicar para eles o que está acontecendo? Porque acho impossível se compreender o que o Supremo está fazendo. Por exemplo, em relação a foro, nós estamos gravando esse episódio em dezembro de 2024, então é impossível que as pessoas não entendam o contexto político que explique a mudança no julgamento sobre o foro, ou mesmo sobre o julgamento de emendas, do orçamento secreto, coisas do gênero. Te obriga a fazer essa descida para a política? Numa das entrevistas, alguém me falou o seguinte, daqui a pouco a gente vai perder esse campo para a ciência política.

Já está perdendo, Felipe.

Então, como é que é isso?

Não tem dúvida. Vamos botar as coisas nos seus devidos lugares. Em primeiro lugar, eu não acredito que se possa estudar seriamente o direito constitucional desconectado da ciência política, desconectado do ambiente normal em que incidem as regras do direito constitucional. E aqui, eu me insiro numa escola, que é uma escola muito embasada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que vem da experiência do professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que durante trinta e cinco anos foi titular de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, e que é um homem que estudou na França e estudou num período de ebulição da ciência política.

Ele foi aluno do Maurice Duverger, foi aluno do Georges Vedel, foi aluno do Jean-Jacques Chevallier, ou seja, de grandes nomes da ciência política. Então, a ciência política, o direito constitucional, que tradicionalmente foi estudado no Largo de São Francisco, é um direito constitucional que dialoga amplamente com a ciência política. Então, esse elemento não é um elemento estranho, é um elemento que é natural ao direito constitucional. Eu mesmo aprendi na faculdade, lá na minha graduação, da teoria do direito constitucional, que havia um autor, o André Rieu, que dizia que o direito constitucional é o estatuto jurídico do político, uma frase que depois veio repetida pelo Canotilho, a exaustão. Então, essa relação é uma relação natural. 

Agora, existe um elemento em que a política com P maiúsculo, vamos dizer assim, ela dá espaço para aquela política mais cotidiana, da política dos acordos pontuais, das circunstâncias mais diretas ou concretas ou cruas das disputas políticas. E essa relação é uma relação que efetivamente existe, porque não poderia deixar de existir. Como eu disse, as normas de direito constitucional são voltadas para tutelar essas relações. E as interpretações, não raro, elas também acabam sendo pautadas ou sendo feitas para dar soluções a essas realidades. Então, é impossível distanciar uma coisa da outra. Então, se me perguntar, a gente precisa descer a política? Não digo descer a política, isso é natural. Mas, talvez, a intensidade com que isso ocorra seja maior do que ocorria no passado, e isso gera um maior estranhamento, talvez, por parte de muitas pessoas. 

Quando chega ao final da sua disciplina, Carlos, e pelo que você está me dizendo, tem muita discussão sobre o Supremo, um pouco desse estranhamento, inclusive, dos alunos. O que você tenta passar para os alunos? Qual é o semestre do Direito Constitucional na USP?

Isso também é uma coisa. Hoje em dia, o Direito Constitucional é um curso que é lecionado no terceiro e no quarto semestre. E no passado, até cinco anos, era no primeiro ano, primeiro e segundo semestre. Então, eram alunos que tinham uma experiência muito reduzida e uma compreensão reduzida do conjunto.

Em compensação, eu também há muitos anos dou aulas em disciplinas optativas para o quinto ano, em que o aluno já chega também com a carga que ele acumulou de todas as outras disciplinas, nas quais, como eu disse há pouco, o Supremo tem um protagonismo igualmente forte. Então, o aluno, quando chega no quinto ano, lá para discutir, e as disciplinas optativas permitem um aprofundamento maior de determinados temas, a discussão é sempre pautada por como o Supremo decidiu ou como o Supremo decidiria. Ou se eu trago um referencial estrangeiro, a comparação é sempre feita.

O Tribunal Constitucional Federal Alemão está decidindo assim e seguindo tal técnica decisória. Como é que aconteceria se o Supremo adotasse isso? Ou como o Supremo decide diferente? Decide com parâmetros que são distintos desses que o Tribunal Constitucional Federal alemão usa? Ou a Corte Constitucional Italiana? Ou a Suprema Corte Norte-Americana? E assim por diante. Então, em diferentes momentos, com diferentes perspectivas e em diferentes intensidades, esse personagem é o personagem central da discussão que se tem em sala de aula. Por mais que autores importantes sejam sempre presentes também, mas não raro esses autores são utilizados exatamente para justificar essa ou aquela postura do tribunal, esta ou aquela ou para criticar o resto daquela postura do tribunal. 

Eu sempre digo que de uns anos para cá, a doutrina do direito constitucional brasileiro foi capturada pela jurisprudência do Supremo. Os manuais de direito constitucional, não raro, são descrições da jurisprudência do Supremo. E descrições, muitas vezes, acríticas. Isso também tem uma série de outras razões. A razão principal talvez seja o fato de que a doutrina do direito constitucional é hoje menos produzida para a academia e mais produzida para o concurso público. Mas não é o tema que nós estamos aqui lidando.

Mas o fato é que, seja por qual razão for, a doutrina sofreu essa captura. E isso diminui a função essencial da doutrina, que é, dentro dessa frase que atribuiu isso ao Diego, é correta. A doutrina serve para inspirar soluções, para mostrar as diferentes possibilidades de cognição de um tema, de enfrentamento de um problema, e não para me dar uma resposta que já foi uma justificativa com base num argumento que, em última análise, é um argumento de autoridade. Por que é assim? É assim porque o Supremo decidiu. E é isso que vai cair na prova. Então, está tudo certo. 

Fica uma impressão, Carlos, que no final da sua disciplina você esteja formado? Foi algo que você já falou aqui agora. Você tenta mostrar para os alunos com base na doutrina, que existem respostas possíveis e respostas que o Supremo está dando que não são, dentro da doutrina, possíveis. Portanto, formar esse embasamento crítico para ele trabalhar, seja como advogado, seja como professor, seja como alguém que vá se enveredar pela carreira acadêmica, por exemplo. Então, é como se no final da sua disciplina você tentasse formar ali um exército de críticos do tribunal. Inclusive, acho que é interessante dessa série, que se no passado não se formavam críticos ao tribunal, hoje parece que é isso que está saindo das disciplinas, porque eles debatem isso o tempo todo. Agora, como é que compatibiliza isso com essa falta de doutrina sobre as decisões? Onde é que eles vão se inspirar? Porque só repetir a decisão do Supremo não é criticá-la e nem saber criticar o tribunal. Como é que resolve? 

Essa pergunta é de um milhão de dólares, Felipe. E passa por uma série de elementos. Passa pelo número exacerbado de faculdades de direito, passa pela questão que a formação jurídica tem cada vez menos de uma formação humanística e mais de uma formação técnica. Enfim, existem vários elementos que, reunidos, geram esse resultado. eu tenho talvez uma visão um pouco mais otimista, porque eu vejo nos alunos da São Francisco uma consciência crítica, uma inquietação maior, e isso faz com que, de fato, se tenha um substrato ali de cultivo de um questionamento, de uma certa insatisfação e de uma vontade de colocar as coisas nos seus devidos lugares.

Não diria que nós formamos críticos do tribunal. Nós formamos críticos, enfim, em geral, em relação a todos os atores de poder. Só que o tribunal hoje tem um protagonismo muito grande e talvez por isso ele atraia mais as críticas. Mas, no passado, o foco das críticas era o presidente da República, que editava muita medida provisória, o Congresso Nacional, que não votava as matérias que deveria votar. Hoje, o protagonismo é um protagonismo que atravessou a praça dos três poderes para o lado do Supremo, e isso faz com que, de fato, nas aulas, esse seja o alvo preferencial dos alunos, seja para concordar, muitas vezes, e de fato isso muitas vezes ocorre, seja para criticar, ou seja, para criticar a posição do professor tendo como referencial a jurisprudência do Supremo. 

A questão ideológica, isso se apresenta entre os seus alunos? E a questão ideológica aqui, a gente estava falando disso antes de começarmos a gravar, não em relação ao apoio a um candidato ou outro, mas a interpretação da Constituição, uma visão mais conservadora, mais progressista ou mais retrógrada da Constituição, isso se apresenta para você na sua sala de aula? 

Sem dúvida que isso se apresenta. Isso se apresenta, existe essa disputa nas discussões entre os alunos de visões de a correta separação de poderes, o que o Estado deve ou não deve fazer, até que ponto se dá a intervenção do Estado na sociedade, na economia, nos costumes, etc. Isso é algo que está presente em qualquer discussão que se tenha em sala de aula. Mas o interessante é que, muitas vezes, existe um consenso desses grupos que aparentemente são antagônicos em relação ao modo como as coisas são feitas.

Existe, por exemplo, vou usar aqui, tal direito precisaria ser discussões sobre isso mas existe um consenso de não, mas dessa maneira não foi a maneira mais adequada ou desse modo poderia ter sido feito de uma maneira melhor. Então, muitas vezes até é perceptível que, apesar das diferenças, existe um consenso em torno do modo do proceder não raro do tribunal.

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