Decisão estrutural impulsiona mudanças em contextos de violações de direitos

O Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras encontra raízes na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, sob relatoria do então ministro Marco Aurélio, por meio da qual o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, à unanimidade, a massiva violação de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro.

O objeto da ação constitucional foi o pedido formulado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) para que fosse declarada a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema prisional, com lastro em notícias de celas superlotadas, em péssimas condições sanitárias, denúncias de falta de água e materiais de higiene básicos, proliferação de doenças, gestantes e parturientes em situação de altíssimo risco, agressões e estupros, bem como a ausência de oportunidades de estudo e trabalho. Na mesma oportunidade, o PSOL ainda requereu fosse determinado um conjunto de medidas para mitigação dos danos.

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A despeito da subsidiariedade do mecanismo em questão, já que as ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade tendem a assumir o protagonismo quando se trata de controle concentrado de constitucionalidade, a estratégia processual foi de precisão cirúrgica. Depois dos casos Mariana e Brumadinho, que inauguraram lides complexas de repercussão no Brasil, agora é a vez do sistema carcerário despontar a discussão no âmbito da execução penal.

O processo estrutural ainda carece de disposições legais específicas, que disciplinem as hipóteses de incidência e o rito, contudo, o assunto já vem sendo ventilado no Senado. Recentemente, o anteprojeto do código que versará sobre o processo estrutural, pensado por uma comissão de 22 juristas formada em outubro passado, já avançou na Casa e o PL 3/2025 foi protocolado no final de janeiro.

Sua redação elenca normas fundamentais dentre as quais destaca-se a “prevenção e resolução consensual e integral dos litígios estruturais, judicial ou extrajudicialmente”; “consideração dos regramentos e dos impactos orçamentários e financeiros decorrentes das medidas estruturais”; “diálogo entre o juiz, as partes e os demais interessados”; “participação dos grupos impactados”; e “ênfase em medidas prospectivas, mediante elaboração de planos com objeto, metas, indicadores e cronogramas bem definidos, com implementação em prazo razoável”.

A preocupação em disciplinar o processo estrutural mostra-se salutar até mesmo para trazer à luz o relevo de sua utilização em contextos que envolvam direitos de segunda e terceira dimensões, que atingem, em maior ou menor grau, número expressivo de pessoas não suficientemente comportadas pelo processo tradicional, não habituado à multipolaridade. Evidentemente que não se desconhece a potência das ações civis públicas que, dentro do espectro das demandas coletivas, são instrumento legítimo na concreção de direitos.

Ainda assim, o processo estrutural surge de um contexto em que as relações sociais têm se tornado cada vez mais complexas e sofisticadas, mormente se pensarmos na codificação e até mesmo na constitucionalização e novos direitos calcados nos arts. 5º e 6º da Constituição (fundamentais e sociais).

Cumpre ao direito, material e processual, acompanhar pretensões resistidas que se manifestam em litígios de difusões locais, irradiadas e até mesmo globais, correspondentes a distintas atribuições de titularidades, de acordo com a natureza da lesão.

Trocando em miúdos, a proposta dessa tipologia é atingir a exata aderência entre a natureza do direito vulnerado, as diferentes formas com que a violação atinge pessoas que estejam ou não nas mesmas circunstâncias, mas que também são impactadas pelos efeitos deletérios de uma mesma ofensa a determinado bem jurídico.

Dentre as principais características das lides complexas estão, além da multipolaridade, as decisões em cascata, assim conhecidas aquelas que se limitam à fixação de linhas gerais e diretrizes para a proteção do direito a ser tutelado, e que, oportunamente, serão desmembradas em outras decisões para a solução de problemas e questões pontuais, surgidas na implementação da “decisão-núcleo”.

Não por outra razão, ao reconhecer que no sistema prisional brasileiro há uma situação de violação em massa de direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal (art. 3º, III, e art. 5º, incs. XLVII, XLVIII e XLIX), nos tratados internacionais de e nas demais leis aplicáveis ao tema, o STF consignou que a solução da questão do sistema prisional deve passar pela elaboração de planos nacional e locais, com a participação das autoridades competentes e da sociedade civil.

Com esteio no voto do ministro Luís Roberto Barroso, restou assentado, entre outras providências, que a União, estados e Distrito Federal, em conjunto com o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça, deverão elaborar planos a serem submetidos à homologação da corte, observados os prazos, as diretrizes e finalidades expostas no voto.

Decorrido pouco mais de um ano da prolação do acórdão, foi apresentado o plano Pena Justa para o enfrentamento de um cenário “antijurídico” que, até então, não contava com uma solução aparente. De acordo com o Caderno Orientador, a implementação das providências busca satisfazer direitos humanos e fundamentais da sociedade como um todo, ou seja, a vida intra e extramuros.

A construção do plano abrangerá quatro principais eixos, quais sejam, controle da entrada e das vagas do sistema prisional, qualidade da ambiência, dos serviços prestados e da estrutura prisional, processos de saída da prisão e da reintegração social e políticas de não repetição do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional.

Para cada um foram elencadas as principais condições indesejáveis para as quais se pretende melhoria ou resolução, sendo 50 o total de ações mitigadoras, caracterizadas por serem abrangentes e comportarem diferentes possibilidades.

Resumidamente, a cada ente da federação será facultada e incentivada a inclusão de novas medidas pertinentes à sua realidade, o que favorecerá a criação de planos singulares, que possuam aderências às especificidades locais, e, ao mesmo tempo, garantam a execução das medidas previstas em âmbito nacional cuja aferição de desempenho se dará mediante o estabelecimento de metas desmembradas em qualificação da Política Nacional de Alternativas Penais para a redução do encarceramento, criação de fluxo de registro ou coleta de dados para a sistematização de informação sobre adoção da referida política e seu respectivo fortalecimento, cada qual acompanhada de três indicadores de cumprimento[1].

Além de promissor, o plano Pena Justa é factível e mostra-se comprometido não apenas com o exercício da democracia participativa, o que representa característica inata às decisões em cascata, senão com a realização dos fins da própria Lei de Execução Penal. Não se pode olvidar que as penas perpétuas e cruéis são vedadas pela Constituição Federal. Nesse passo, as pessoas que cumprem pena privativa de liberdade, em algum momento, retornarão ao seio social.

É crucial para o reeducando e para a sociedade que aquele não se sinta encorajado a reincidir em decorrência de um sistema carcerário negligente, que não se ocupa da reinserção social por meio do trabalho, da educação e da religião, e que, não raro, faz do Estado um ente que pune mais de uma vez.


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Pena Justa: Caderno Orientador para elaboração dos Planos Estaduais e do Plano Distrital de Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas prisões brasileiras. Brasília/DF, 2025.

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