Judicialização na saúde suplementar: causas, impactos e caminhos para racionalização

A judicialização da saúde suplementar decorre de equação complexa que envolve diversos fatores. A expansão do acesso à justiça desempenha um papel crucial. A facilidade de ajuizamentos, aliada à atuação de escritórios com viés predatório em ações de massa contribui para a ampliação do contencioso.

Também, em outro cenário, o crescente avanço da medicina e o desenvolvimento de novas tecnologias médicas criam expectativas sobre tratamentos inovadores, muitas vezes de alto custo, que não se encontram disponíveis no rol de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor

Conforme um estudo de 2022, questões contratuais, negativas de procedimentos e fornecimento de órteses e próteses estão entre as principais causas da judicialização na saúde suplementar. Os contratos anteriores à Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, embora representem apenas 3% da carteira de beneficiários, correspondem a 37,4% das ações judiciais, evidenciando a necessidade de regulação mais eficiente do setor.[1]

A atuação dos juízes frente a essas questões também merece análise. O Judiciário, ao se deparar com demandas que envolvem a saúde, enfrenta um dilema entre garantir o direito à vida e à dignidade dos pacientes e, ao mesmo tempo, preservar o equilíbrio econômico das operadoras.

A tendência é decidir em favor do consumidor, ignorando aspectos de viabilidade financeira e o impacto sistêmico das decisões. Medicamentos de alto custo, como os que atingem cifras de R$ 17 milhões por paciente, exemplificam situações de comprometimento da estabilidade econômica das empresas do setor.[2]

Outro aspecto relevante é a ocorrência de fraudes no setor. A CPI das Próteses, por exemplo, revelou esquemas fraudulentos envolvendo a prescrição de próteses e órteses sem necessidade real, apenas para beneficiar grupos específicos da cadeia de fornecimento.[3] A indústria farmacêutica também influi na situação quando incentiva premiações e benefícios a agentes de saúde para que prescrevam certos medicamentos e equipamentos, o que cria um ciclo vicioso de litígios, prejudicando operadoras e consumidores.

Diante desse cenário desafiador, a busca por soluções estruturais é imprescindível. Iniciativas já implementadas no setor público podem servir de modelo para a saúde suplementar. O Fórum Nacional de Saúde e os comitês estaduais de saúde têm se mostrado eficazes na criação de espaços de discussão e mediação entre os diversos atores envolvidos, permitindo que demandas sejam resolvidas antes de alcançar o Judiciário.

A utilização da medicina baseada em evidências também surge como uma estratégia fundamental para qualificar as decisões judiciais. A implementação de um Portal da Transparência para registrar benefícios recebidos por profissionais de saúde, bem como a análise técnica da pertinência de tratamentos, pode auxiliar na redução de litígios.

O fortalecimento de mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos, como a mediação e a conciliação, representa uma alternativa para evitar o acirramento da litigiosidade. A atuação das agências reguladoras deve ser revisitada, de modo a torná-las instâncias proativas na redução do contencioso.

A atuação de escritórios especializados em suporte jurídico estratégico para operadoras de saúde suplementar é um diferencial digno de registro. Escritórios qualificados desempenham papel fundamental na garantia da conformidade regulatória, na segurança contratual e na oferta de previsibilidade econômica para as operadoras.

A recente decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), no âmbito do IRDR relativo ao Tema 91, estabeleceu que o interesse de agir nas demandas consumeristas de natureza prestacional depende da comprovação de tentativa prévia de solução extrajudicial da controvérsia. Esse entendimento reforça a necessidade de atuação preventiva dos escritórios de advocacia, auxiliando as operadoras na criação de mecanismos eficazes de atendimento ao consumidor, visando reduzir o passivo judicial.

A implementação de estratégias jurídicas baseadas no IRDR possibilita às operadoras maior segurança no tratamento de ações e na definição de critérios para a negativa de procedimentos que não estejam conforme as diretrizes da ANS, com reflexos no menor risco de condenações e na maior previsibilidade da gestão financeira.

Acrescente-se que o suporte jurídico especializado permite às operadoras adequar seus contratos e regulamentos internos às constantes mudanças legislativas e jurisprudenciais, garantindo que seus modelos de negócio estejam alinhados às melhores práticas do setor.

A parceria entre operadoras e escritórios com atuação dedicada ao setor contribui para um modelo de atuação que harmoniza os interesses dos consumidores e dos agentes econômicos, promovendo o equilíbrio financeiro e a mitigação da litigiosidade. Com essa abordagem, é possível edificar um ambiente mais seguro e eficiente para a saúde suplementar no Brasil.

A judicialização da saúde suplementar, portanto, é um desafio complexo que exige soluções sistêmicas. A sustentabilidade do setor depende da implementação de políticas públicas que promovam o equilíbrio entre os direitos dos consumidores e a viabilidade econômica das operadoras.

A crescente judicialização da saúde suplementar no Brasil gera impactos significativos para o sistema de justiça e para a economia do país, fragilizando as premissas de equidade e eficiência na distribuição dos serviços de saúde.

É cediço que a ANS desempenha um papel fundamental na regulação do setor e na prevenção de litígios. No entanto, é necessário aprimorar os mecanismos de regulação para proporcionar maior segurança jurídica e previsibilidade para beneficiários e operadoras. Uma das principais questões que impulsionam a judicialização é a interpretação do rol de procedimentos da ANS, que define os serviços mínimos obrigatoriamente cobertos pelos planos de saúde.

É essencial que a ANS estabeleça critérios mais objetivos e transparentes na inclusão e revisão de procedimentos no rol de cobertura. Além disso, a criação de mecanismos de revisão periódica e dinâmica, com a participação de especialistas e representantes da sociedade civil, pode evitar interpretações divergentes e reduzir a necessidade de ações judiciais.

A criação de câmaras técnicas de mediação, compostas por profissionais especializados em saúde e Direito, pode oferecer soluções mais rápidas e eficientes para os beneficiários. Essas câmaras poderiam atuar em parceria com órgãos de defesa do consumidor e com as instâncias estaduais do Ministério Público, garantindo um atendimento mais ágil e acessível.

A aplicação da tecnologia à gestão das demandas judiciais, desde a automação de processos à utilização de inteligência artificial, também rende importante auxílio à prevenção e contenção de conflitos no setor. Ferramentas de análise preditiva são capazes de identificar padrões de reclamações e antecipar soluções para problemas recorrentes.

Outra contribuição qualificada ao monitoramento dos índices de judicialização e à resolução das demandas está relacionada à criação de plataforma digital integrada, que conecte operadoras, beneficiários, ANS e Judiciário. A plataforma prezaria pela transparência e pela aferição da conformidade dos benefícios pleiteados, antes da sua submissão ao Judiciário, como instrumento equivalente a uma segunda opinião médica automatizada.

Um dos desafios da saúde suplementar é a falta de informação dos beneficiários sobre seus direitos e deveres. Muitas ações judiciais podem ser evitadas com a adoção de critérios que promovam maior clareza sobre as regras de cobertura, reajustes e condições contratuais. Campanhas educativas promovidas pela ANS, associações de consumidores e pelo próprio setor podem contribuir, efetivamente, para a redução da litigiosidade.

Também a capacitação dos magistrados sobre questões técnicas relacionadas à saúde suplementar é fundamental para que as decisões judiciais sejam adotadas de forma coerente com a realidade da saúde no Brasil.

Note-se que a judicialização observada em números crescentes é uma prática comum entre cidadãos com melhor condição econômica,[4] o que desafia a lógica da universalização do acesso ao Judiciário que, a rigor, encontra-se ocupado por ações deflagradas por parcela reduzida da população.

Para que a saúde suplementar seja viável a longo prazo, urge uma revisão profunda das causas que atormentam o setor, a partir de uma visão sistêmica e do reforço do elo entre os segmentos público e privado. Atualmente, não há evidências de uma integração formal e abrangente entre as plataformas de telessaúde do Sistema Único de Saúde (SUS) e as operadoras de planos de saúde no Brasil.

Embora o SUS apresente iniciativas próprias, como o Programa Telessaúde Brasil Redes, que visa apoiar as equipes de atenção básica por meio de teleconsultorias e educação permanente,[5] a sustentabilidade dessas ações é prejudicada pela ausência de mecanismos válidos de integração com o setor privado.

Durante a pandemia de Covid-19, foi possível assistir a tímida aceleração na transformação digital da saúde.[6] Entretanto, persiste a carência de uma integração entre as plataformas de telessaúde do SUS e as das operadoras privadas, que poderia otimizar recursos e evitar a sobrecarga do sistema público.

Conclui-se que a resposta à judicialização da saúde suplementar exige soluções articuladas e inovadoras. O fortalecimento da regulação na definição bem delineada dos direitos e deveres dos beneficiários, a ampliação dos mecanismos extrajudiciais na resolução de litígios na área de saúde, o uso da tecnologia em prol da transparência e da verificação da consistência das reclamações são algumas medidas para reduzir a litigiosidade, mas essenciais para garantir um sistema de saúde mais eficiente e sustentável.

A construção de um novo pacto social entre beneficiários, operadoras, Poder Judiciário e órgão regulador é a única equação apta a equilibrar direitos individuais e coletivos, assegurando que a saúde suplementar atenda com qualidade e acessibilidade a milhões de brasileiros.


[1] SILVA, Andréa Ferreira da; MOTA, Eduardo Luiz da Costa; ARAÚJO, Francisco de Assis; MACHADO, José dos Reis; LIMA, Luciana de Oliveira; LIMA, Ricardo Alexandre de Mendonça. A judicialização na saúde suplementar: uma avaliação das ações judiciais contra uma operadora de planos de saúde, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2010-2017. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 134, p. 566-579, jul./set. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ 79PXPwMTb8XnzD3396jvJqk/?lang=pt. Acesso em: 19 fev. 2025.

[2] O medicamento Hemgenix, utilizado no tratamento da hemofilia B, tem custo aproximado de US$ 3,5 milhões, equivalente a cerca de R$ 17,7 milhões (disponível em: https://ndmais.com.br/saude/ate-r-177-milhoes-veja-lista-dos-remedios-mais-caros-do-mundo. Acesso em: 19 fev. 2025). Além disso, o Elevidys, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratar a distrofia muscular de Duchenne, pode custar até R$ 20 milhões no Brasil (disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2025/01/29/remedio-mais-caro-do-brasil-custa-ate-r-20-milhoes-e-nao-tem-previsao-para-chegar-ao-sus.ghtml. Acesso em: 19 fev. 2025). Esses valores ilustram os desafios enfrentados pelo sistema de saúde suplementar diante de tratamentos de alto custo.

[3] Conforme relatório final de julho de 2015 do deputado federal André Fufuca (PEN-MA), emitido no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados que investigou a Máfia das Órteses e Próteses (disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1579578. Acesso em: 19 fev. 2025).

[4] SILVA, Andréa Ferreira da; MOTA, Eduardo Luiz da Costa; ARAÚJO, Francisco de Assis; MACHADO, José dos Reis; LIMA, Luciana de Oliveira; LIMA, Ricardo Alexandre de Mendonça. Op. cit.

[5] Conforme notícia disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/seidigi/sus-digital/telessaude. Acesso em: 19 fev. 2025.

[6] SILVA, Adriano Massuda; MACHADO, Cristiani Vieira; ANDRADE, Gabriela Ramos de; LIMA, Luciana Dias de; ALVES, Maria Tereza. Teleassistência no Sistema Único de Saúde brasileiro: onde estamos e para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 29, n. 7, p. 1783-1794, jul. 2024. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/ WHgTDFZpBZCLk9kNrMdStbH. Acesso em: 19 fev. 2025.

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