Brasil precisa desenvolver capacidades de resposta às emergências de saúde pública

No dia 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde declarou, por meio da Portaria GM/MS 188, a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo coronavírus. Neste momento a ameaça era iminente no país, já que o vírus havia atingido a Europa, que tomava as suas primeiras medidas sanitárias mais drásticas visando a contenção do coronavírus.

No Brasil, no momento da declaração da ESPIN, ainda não havia nenhum caso confirmado (o primeiro foi em 26 de fevereiro, de um homem que havia viajado à Itália). O país ainda teria tempo para se organizar e se preparar para a chegada do coronavírus.

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Vale lembrar que a Itália já sofria, no início de fevereiro de 2020, com os efeitos macabros da pandemia que se iniciava por lá. Ao mesmo tempo, a França já estava adotando medidas de distanciamento social e uso de máscaras, e o mundo assistia perplexo à disseminação rápida e letal desse novo coronavírus.

Quando a ESPIN foi declarada no Brasil, o país ainda não estava impactado pelo coronavírus e contávamos com o Sistema Único de Saúde (SUS) como garantia fundamental para organizar nossas respostas à pandemia que se avizinhava. Ou seja, a princípio bastaria, inicialmente, naquele início de fevereiro de 2020, adotar as medidas já então preconizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para evitar alta disseminação e letalidade no país. Se assim fizéssemos, talvez a história tivesse sido bem menos dolorosa para nós brasileiros. 

Outra importante recordação a ser feita sobre o início da resposta brasileira à Covid-19 é que o Brasil também foi rápido para adotar uma lei emergencial, com vigência de prazo determinado, para dar conta dos desafios que se avizinhavam.

Foi assim que, três dias depois da declaração da ESPIN, em 6 de fevereiro de 2020, foi aprovada a Lei 13.979, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

Esta lei dotou o Brasil de instrumentos jurídicos importantes para o controle da pandemia que se avizinhava, prevendo medidas sanitárias fundamentais para o controle epidemiológico, tais como isolamento, quarentena, realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos, vacinação compulsória, uso de máscaras, dentre outras igualmente relevantes.

No entanto, esses instrumentos normativos adotados não foram suficientes para orientar e induzir o governo federal a adotar as medidas corretas e preconizadas pela OMS para o controle da pandemia no Brasil. Por exemplo, em decisão totalmente equivocada e ignorando que estávamos em plena vigência de uma ESPIN, inexplicavelmente, o governo federal da época, com a conivência de governadores e prefeitos de todo o país, não cancelou o Carnaval de 2020 e permitiu a sua realização em todo o território nacional.

Foi assim que, em plena ESPIN, foi realizado o Carnaval no Brasil entre os dias 22 e 25 de fevereiro, com todo o seu esplendor – “o maior espetáculo de disseminação de um vírus letal da Terra”. Não à toa, pouco tempo depois, no dia 12 de março, o Brasil testemunhou a primeira morte por Covid-19 em seu território. Sabemos hoje que, depois desta, se seguiriam mais de 715 mil mortes no país, muitas delas evitáveis.

Para além dos crimes cometidos ao longo do período da pandemia no Brasil, que aguardam os devidos encaminhamentos a serem dados pelo procurador-geral da República (onde está a denúncia pelos crimes da pandemia?), grande parte das mortes decorrentes da Covid-19 no Brasil teve como causa a ausência de uma melhor organização jurídico-administrativa no que se refere às capacidades nacionais de respostas às emergências de saúde pública. 

Regulamento Sanitário Internacional e capacidades nacionais de resposta às emergências de saúde pública

O RSI, aprovado pela OMS em 2005, prevê uma série de obrigações dos seus Estados-membros (dentre os quais o Brasil) para o desenvolvimento de suas capacidades nacionais de resposta às emergências de saúde pública, visando integrar todos os países em uma rede de resposta global às emergências de saúde pública de importância internacional.

Dentre estas capacidades exigidas pela OMS está a implementação e organização, em cada país, de um desenho de governança institucional capaz de dar resposta eficaz em momentos de crise. O RSI também exige que os Estados desenvolvam e aprovem uma legislação nacional que oriente os futuros governantes e que induzam os mesmos para que adotem as medidas adequadas, calcadas em evidências científicas, transparentes e resolutivas, para o enfrentamento de emergências.

A Lei 13.979/2020 perdeu sua vigência com o fim da emergência nacional de saúde pública, declarado em 22 de abril de 2022 por meio da Portaria GM/MS 913. Assim, o alcance da lei criada durante a pandemia da Covid-19 no Brasil limitou-se ao período da ESPIN no país, tendo sua vigência terminado junto com a declaração do fim da ESPIN da Covid-19.

Com o fim da vigência da Lei 13.979/2020, o ordenamento jurídico brasileiro voltou a ostentar importantes lacunas. A ausência de regulamentação clara sobre como deve o Estado brasileiro responder às emergências dificulta a gestão e o controle social sobre a atuação dos governantes nesses momentos de crise sanitária, aumentando os riscos de judicialização da saúde, em particular no que se refere à adoção de medidas de contenção da doença que são restritivas de direitos ou requerem mecanismos excepcionais de gestão. 

A Lei 13.979/2020 não só perdeu vigência como também não foi regulamentada de forma suficiente às necessidades da resposta à pandemia na época, ensejando intensa judicialização, o que, de forma geral, enfraqueceu as autoridades sanitárias, especificamente os serviços de vigilância.

O Estado e a sociedade, em seu conjunto, foram atingidos por reviravoltas constantes provocadas pela imposição de medidas cautelares pelo Poder Judiciário, em diversos níveis, muitas vezes com sinalizações contraditórias em termos de interpretação da legislação. Apenas no STF tramitaram 11.703 processos questionando a legislação brasileira vigente para o combate à pandemia.

Acompanhando estes julgados, a doutrina jurídica sobre emergências de saúde foi produzida à queima-roupa, refletindo, em parte, a polarização política daquele período, e necessitando ser revista com o devido recuo e aprofundamento neste momento pós-pandemia, cinco anos após a primeira morte de Covid-19 no país.

Brasil precisa de redesenho jurídico-institucional

A experiência da Covid-19 reforça a necessidade de uma legislação nacional capaz de orientar e fortalecer autoridades e agentes de saúde que exercem poderes de polícia, bem como de regulamentar as ações concretas a serem adotadas durante as emergências de saúde pública, especialmente na gestão e nas vigilâncias.

Também reforça a necessidade de oferecer garantias à sociedade em matéria de respeito aos direitos humanos durante as emergências de saúde pública e a efetiva participação dos destinatários das normas no exercício destes poderes. 

Neste sentido, fundamental que o Brasil desenvolva suas capacidades nacionais de resposta às emergências de saúde pública, notadamente, no que se refere às medidas relacionadas à proteção do direito da saúde dos brasileiros. Dentre as ações a serem tomadas, destacam-se: 

  1. formular, debater publicamente e aprovar no Congresso Nacional um novo marco regulatório para tratar das emergências nacionais de saúde pública; 
  2. estabelecer um amplo mecanismo de participação social (Conselho Nacional de Saúde e outras possibilidades participativas) para tornar o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) um instrumento institucional que implique a incorporação dos seus princípios na legislação de todos os setores; 
  3. criar uma instância institucional estratégica, no nível federal, com participação de gestores e especialistas de diversos setores do governo, dos estados e municípios e da sociedade civil, para coordenar a implementação e o aperfeiçoamento das capacidades básicas previstas pelo RSI e para orientar a execução de uma política nacional de resposta às emergências de saúde pública. 

Dentre outras capacidades que devem ser aprimoradas no país, mostra-se fundamental também atualizar o Plano de Resposta às Emergências em Saúde Pública e o Plano de Operação do Ponto Focal Nacional do RSI, com a finalidade de promover a integralidade em relação às diferentes capacidades essenciais do RSI, assegurar a sua sustentabilidade através da interação regular entre as partes interessadas. 

Também se mostra essencial desenvolver instrumentos de gestão e tecnológicos para a detecção oportuna e o alerta precoce de novas emergências nos diferentes setores e níveis federativos de governo, garantindo-se a interoperabilidade e interconectividade dos diferentes sistemas de informação em saúde da União, dos estados e dos municípios.

Finalmente, importante destacar que em junho de 2024 o RSI foi emendado, criando-se novas categorias jurídicas como as Emergências Pandêmicas, as Autoridades Nacionais de Saúde e os Produtos de Saúde Pertinentes, além de um novo mecanismo intergovernamental de controle de aplicação das normas do RSI.

Todas estas inovações devem ser incorporadas pela legislação brasileira relativa a emergências de saúde e deverão ser consideradas na formulação de uma legislação nacional capaz de reorientar nossas capacidades de resposta às emergências.

Urge, assim, uma nova legislação nacional para que o Brasil possa de fato desenvolver suas respostas às emergências de saúde pública de forma organizada, sustentada e eficaz, em observância às diretrizes estabelecidas pelo RSI.

Espera-se que, passados cinco anos da primeira morte de Covid-19 no Brasil, e com base em tudo que pôde ser aprendido no período, a sociedade brasileira seja capaz de compreender a importância estratégica desta agenda legislativa e do desenvolvimento de nossas capacidades nacionais de resposta às emergências de saúde pública.

Até o presente momento o Brasil continua dormindo em berço esplêndido e sem fazer a sua lição de casa, dando margem para que uma próxima emergência de saúde pública nos pegue novamente despreparados e com instituições inaptas para dar conta do recado, com riscos enormes para a população brasileira.

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