Mercados digitais em perspectiva: o futuro do debate

Os principais interlocutores no debate sobre concorrência em mercados digitais, acadêmicos, economistas, advogados, autoridades e especialistas em tecnologia reuniram-se em Brasília no último dia 17 de fevereiro, em um encontro organizado pela Associação Lawgorithm em conjunto com o Instituto Legal Grounds.

O objetivo era debater a proposta de regulação do Ministério da Fazenda e, em particular, as práticas ligadas à gestão de sistemas operacionais para aplicativos em celulares. O tema é crucial na agenda de regulação do setor digital, que tem também em pauta a regulação de inteligência artificial e o combate à desinformação.

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Papel do Cade na regulação de mercados digitais

O primeiro painel debateu qual deveria ser o papel do Cade na regulação de mercados digitais, reunindo Felipe Roquete (Cade), Ravvi Madruga (Ministério da Economia), Sílvia Fagá (Ecoa Consultoria Econômica) e Vinicius Klein (UFPR).

Tanto no PL 2768/2022 quanto na proposta da Fazenda, admite-se a imposição de obrigações ou proibições gerais a grandes plataformas digitais. Mas se o PL 2768/2022 estabelece obrigações mais genéricas na lei, para serem fiscalizadas pela Anatel, na proposta da Fazenda o próprio Cade imporia obrigações mais específicas a agentes do setor e também faria a fiscalização. 

Como destacou Ravvi Madruga, considerando que o Cade já não é um mero tribunal administrativo repressor, o novo poder para criar obrigações agregaria ao Cade o papel de agência reguladora sui generis. Isso porque, ao contrário de outras agências, não regularia propriamente um setor de atividade econômica, mas diferentes tipos de serviço no ambiente digital, e as obrigações impostas seriam direcionadas a agentes específicos e não a todos os agentes que estão nos chamados mercados digitais.

Discutiu-se se a legislação, que ainda caracteriza o Cade expressamente como órgão judicante, deveria evoluir para reconhecer explicitamente a natureza de órgão regulador, o que teria consequências em termos da legislação vigente aplicada as agências e mesmo em relação a projetos de lei, como o de regulação da inteligência artificial, que traz competências específicas para agências reguladoras para fiscalizarem o uso dessa tecnologia. 

Outras dificuldades apontadas dizem respeito ao risco de erro na regulação, como destacado por Silvia Fagá, sem que haja análise de impacto na imposição das obrigações e a necessidade de participação de todos os interessados que podem ser afetados pela regulação. Esse desideratum contrasta com a tradição do Cade em realização de investigações contra agentes específicos.

Assim, a regulação teria que optar entre impor obrigações a tipos de serviços, com análise de impacto regulatório, ou impor obrigações a plataformas específicas, o que poderia trazer a necessidade de análise de eficiências, tornando o processo similar à imposição de obrigações ex post, típica dos processos administrativos sancionatórios. O grande desafio identificado está na extensão dos poderes do Cade frente à necessidade de resguardar a flexibilidade de eventual regulação a fim de não se afetar o desenvolvimento tecnológico. 

Sistemas operacionais para dispositivos móveis e concorrência

O segundo painel reuniu Amanda Flávio de Oliveira (UnB e consultora na UNCTAD/ONU), Cesar Mattos (economista e consultor na Câmara dos Deputados) e Mario Zúñiga (professor da Pontificia Universidad Católica del Perú e antigo conselheiro da autoridade antitruste do Peru). O debate apontou a dificuldade de definição de mercados relevantes e relação de concorrência no ambiente digital. Mario Zúñiga, por exemplo, defendeu que sistemas como Android e iOS da Apple são concorrentes e a análise de restrições estabelecida pelos operadores desses sistemas em relação aos aplicativos deve considerar pressões competitivas mútuas.

Cesar Mattos, por exemplo, apontou que restrições impedindo direcionamento de compras ou downloads fora da plataforma trazem mais segurança e esse é um vetor competitivo, no sentido que consumidores optam por sistemas Android ou iOS, em função da qualidade deles em termos de flexibilidade, de um lado, e segurança e privacidade, de outro. 

Amanda Flávio questionou até que ponto esse mercado apresenta novas questões concorrenciais, ou se é possível encontrar soluções para esses dilemas a partir de analogias com casos tradicionais, como o caso de shopping centers, por exemplo, em que lojistas também são proibidos de desviar consumidores para realizar compras fora do centro comercial. 

Também se discutiu a intersecção e os limites entre antitruste e política industrial para a promoção de inovação e produtividade a partir da economia digital. Foi sublinhado o contexto político atual, com menção por Cesar Mattos ao Draghi Report, que questiona o excesso de regulação da abordagem europeia e em que medida, intervenções demasiadas podem desestimular a inovação e competitividade do de um país nos mercados digitais. 

Sistemas operacionais para dispositivos móveis, segurança e privacidade

O último painel, que reuniu Miriam Wimmer (ANPD), Marcos Lima (economista e sócio da M&A Consultoria Econômica) e Mônica Fujimoto (professora no IDP e advogada), aprofundou o tema da proteção de segurança e privacidade nos sistemas operacionais, objetivos que são colocados na balança com a defesa da concorrência nos casos envolvendo sistemas operacionais.

Miriam Wimmer destacou a importância de analisar as externalidades negativas de cada medida regulatória – ou seja, eventuais externalidades de privacidade e segurança causadas por medidas impostas em prol da concorrência, ou a ampliação de poder de mercado de determinado agente em decorrência de medidas impostas em prol da proteção de dados pessoais.

Um desafio apontado para essa análise foi a assimetria informacional entre regulador e regulado, que é acentuada nos ecossistemas digitais. Para tanto, a cooperação entre ANPD e Cade foi considerada essencial, embora não sem desafios para a administração pública.

Conclusões

Ao final do evento, ficou evidente que o tema envolve questões mais amplas, necessitando uma investigação mais clara sobre qual seria o objetivo almejado com o uso da política de defesa da concorrência em relação aos ecossistemas digitais.

Seria o objetivo efetivamente corrigir falhas de mercado, ou o objetivo seria trazer mais equilíbrio na distribuição de receitas e oportunidades entre grandes plataformas e outros agentes que complementam suas atividades, ou ainda, se o real objetivo seria até mesmo evitar a concentração de poder político e de poder informacional, de modo a promover uma esfera pública democrática

De todo modo, há consenso em que a regulação da concorrência em mercados digitais e a regulação de moderação de conteúdo e desinformação em serviços digitais são temas distintos, que não devem se confundir nos esforços regulatórios. 

O evento foi gravado e pode ser acessado nos canais do YouTube da Associação Lawgorithm e do Instituto Legal Grounds.

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