Processo seletivo simplificado e o dever constitucional de aplicação de prova

O Brasil adota o sistema de mérito como regra para o recrutamento de pessoal, que assegura a concretização de princípios basilares da Administração Pública, como impessoalidade, moralidade, igualdade e eficiência. Ainda assim, a qualidade das políticas públicas de seleção de pessoal carece de melhorias, especialmente sob a lupa dos profissionais temporários.

Em um contexto cuja regra é o provimento de servidores após aprovação em concurso público, é um contrassenso constitucional o crescimento exponencial de vínculos precários. Um estudo da organização Todos pela Educação[1] revelou que, em 2022, as redes estaduais de ensino possuíam mais professores temporários do que efetivos, cenário que persistiu em 2023.

Os órgãos de auditoria e instrução dos Tribunais de Contas de todas as esferas envidam esforços para combater os desvios de finalidade e a burla do texto constitucional. Porém, é necessário ampliar esse debate.

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A contratação temporária de servidores por necessidade de excepcional interesse público, permitida no inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, exige atenção especial no que concerne aos métodos de seleção.

A ausência de técnica para a seleção de talentos – exigida em quaisquer processos seletivos que a administração realize, atenta contra os princípios constitucionais e se reflete na qualidade do serviço público.

O processo de seleção aplicado para a admissão de pessoal temporário não se configura propriamente uma exceção ao princípio do art. 37, II da CF. Concurso público é um tipo de processo seletivo, e o processo seletivo simplificado é apenas um procedimento simplificado de concurso, com finalidade de admitir servidores a tempo determinado[2].

Magalhães, em obra dedicada ao tema, alerta para a necessária cautela ao se afastar o concurso, mesmo na arregimentação excepcional do inc. IX, art. 37 da CF. Para o autor, a fim de se preservar a igualdade de acesso aos cargos públicos e o princípio da eficiência, nas situações de necessidade excepcional sem a caracterização da urgência, o Poder Público deve ter como norte a regra do art. 37, II da Constituição, “sob pena de retornar-se ao spoils system, sistema por meio do qual os governantes eleitos preenchiam os cargos públicos de acordo com suas conveniências políticas” [3].

A doutrina, ao aprofundar o estudo do instituto, não encontra distinções substanciais entre o processo seletivo simplificado (PSS) e o concurso público, ambos devendo observar os princípios constitucionais para a seleção de candidatos a cargos, empregos ou funções públicas.

O respeitado professor Florivaldo corrobora a visão de existir baixa distinção entre os certames[4], afirmando que ambos os procedimentos visam garantir a publicidade, impessoalidade, moralidade e eficiência na escolha dos servidores que irão exercer as atribuições do Poder Público.

Diante desse contexto, o aperfeiçoamento dos processos de seleção se mostra crucial para garantir a seleção dos melhores profissionais, mesmo em situações de necessidade temporária.

A Constituição Federal passou a prever, a partir da Emenda Constitucional 106/2020, a realização de processo seletivo, ainda que simplificado, orientando a sua utilização, sempre que viável, mesmo no contexto de calamidades, para assegurar a competição e igualdade de condições a todos os concorrentes.

A publicação da Lei Geral dos Concursos Públicos (Lei 14.965/2024), por sua vez, estancou dúvidas ou receios com a ampliação do conceito de prova, legitimando a adoção de diferentes ferramentas de seleção, como provas escritas, orais, elaboração de documentos, simulação de tarefas, testes físicos e avaliações psicológicas que podem, inclusive, no todo ou em parte, serem aplicadas online.

Essa oferta de ferramentas de gestão converge com a necessidade de se promover a escolha administrativa mais adequada da modalidade de prova que avaliará as competências necessárias para cada função pública.

A avaliação por títulos, embora possa estar amparada por previsão legal, deve ser utilizada com prudência e associada a outros meios para se aferir a meritocracia, especialmente em seleções para cargos de nível médio e fundamental, sob pena de prejudicar a concorrência entre os mais jovens ou pouco acesso à titulação, na linha alertada por Carvalho Filho, ao analisar a utilização do parâmetro como passível de reprovação de candidatos. Igualmente, em relação às seleções curriculares ou de entrevistas para postos onde a notória capacidade técnica ou científica do profissional não é distintiva para a realização das tarefas.

A simplificação do processo de seleção pode se concentrar na redução do número de etapas e na celeridade do procedimento, sempre que não comprometer a impessoalidade e a eficiência da seleção. Gasparini defende a simplificação da fase interna do certame, como a obtenção de informações de orçamento e planejamento e elaboração do edital, e na fase externa, com a abreviação dos atos de execução, mas ressalta a importância de se garantir a observância dos princípios constitucionais.

A aplicação de provas que propiciem a escolha meritória em PSS, portanto, não configura mera discricionariedade administrativa, mas um imperativo constitucional para garantir a impessoalidade, a moralidade e a acessibilidade.

A dispensa de prova deve se restringir a situações de comprovada urgência ou calamidade pública que possam culminar em solução de continuidade dos serviços. Todavia, neste campo é preciso coibir abusos. Tal qual a nova Lei de Licitações propõe um antídoto para combater as sucessivas prorrogações de dispensa do certame nos casos de emergências ou calamidades (art. 75, VIII) ao impedir prorrogações ou renovações que se estendam por prazo superior a um ano, na arregimentação de pessoal ainda há muitos casos de “urgências fabricadas”.

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A tolerância com a admissão de pessoal temporário sem a devida aplicação de provas contribui para o aumento da utilização irregular deste procedimento e com o enfraquecimento da desejada profissionalização dos quadros da Administração Pública. Mais que isso, precariza o serviço público e sua eficiência, desvirtuando o princípio do concurso público.

Em conclusão, a realização de provas em processos seletivos simplificados, salvo em situações excepcionais de urgência ou calamidade pública, é essencial para garantir a eficiência, a impessoalidade, a moralidade e a acessibilidade na seleção de servidores públicos, coibindo o excesso irregular de servidores.

A aplicação de prova adequada à escolha de candidatos mais qualificados para a função a ser ocupada, contribui para a profissionalização do serviço público e o atendimento eficaz das demandas da sociedade.


[1] https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2024/04/estudo-professores-temporarios-nas-redes-estaduais-do-brasil-todos-pela-educacao.pdf

[2] Neste sentido também a doutrina do respeitado Professor Diogenes Gasparini. (Concurso Público: imposição constitucional e operacionalização. in MOTTA, Fabrício. Concurso Público e Constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 45).

[3] MAGALHÃES, Gustavo Alexandre. Contratação temporária por excepcional interesse público: aspectos polêmicos. São Paulo: LTr, 2005, p. 167.

[4] ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Regime constitucional da contratação temporária de servidores públicos. In: FORTINI, Cristiana. FORTINI (Coord.). Servidor público: estudos em homenagem ao Professor Pedro Paulo de Almeida Dutra, p. 123.

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