Do racismo estrutural à reparação integral

No contexto da Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) proferiu uma decisão histórica no caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil. Pela primeira vez, aquela Corte analisou de forma direta e detalhada a discriminação racial no acesso ao emprego e à justiça, abrindo um precedente crucial para a proteção dos direitos das pessoas afrodescendentes. 

Em 1998, Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira Gomes, duas mulheres negras, foram impedidas de se candidatar a um emprego em razão de discriminação racial. Embora tenham denunciado o fato, o processo penal se arrastou por anos e revelou a falta de diligência das autoridades brasileiras em investigar e punir o crime de racismo. As vítimas levaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2003, que, por sua vez, encaminhou à Corte IDH em 2021.

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Após a análise do contexto, dos fatos, das provas e das normas pertinentes, a Corte IDH responsabilizou o Estado brasileiro pela violação dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei, à proteção judicial e ao trabalho (artigos 8.1, 24, 25.1 e 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), em relação ao dever de respeitar os direitos sem discriminação. A decisão também reconheceu o dano ao projeto de vida das vítimas, causado pela discriminação e pela falta de acesso à justiça.

A Corte considerou que o Estado não apenas falhou em garantir um processo justo e célere, como também permitiu a reprodução do racismo institucional, revitimizando as autoras. Ressaltou que a extinção da punibilidade por prescrição de um crime constitucionalmente imprescritível evidenciou a fragilidade do sistema em proteger os direitos das vítimas de racismo.

Essa fragilidade não é um problema isolado, mas sim um reflexo do racismo estrutural presente na sociedade brasileira. A Corte IDH apontou a persistência de desigualdades históricas e a necessidade de medidas mais eficazes para garantir a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra.  O contexto apreciado na decisão serve como um alerta sobre a necessidade de transformação profunda do sistema de justiça e das políticas públicas para o enfrentamento efetivo do racismo.

É, portanto, necessário que o Estado brasileiro adote medidas concretas para garantir a devida diligência na investigação e o julgamento de crimes de racismo, incluindo a coleta e avaliação de provas contextuais e a adoção de protocolos que levem em conta a interseccionalidade da discriminação. 

Entretanto, o caráter estrutural do racismo enseja respostas estatais para além do Direito Penal. Vale lembrar o termo interseccionalidade, cunhado pela jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw no curso de um processo trabalhista em que se discutia a discriminação racial e de gênero contra as mulheres negras pela empresa General Motors. Na ocasião, em resposta aos quesitos separados, o júri não reconheceu a discriminação racial, pois havia trabalhadores negros na linha de produção; nem a discriminação de gênero, por causa das mulheres brancas que trabalhavam na área administrativa.

Foi necessário demonstrar que as mulheres negras ficavam no ponto cego do entrecruzamento dos eixos discriminatórios do racismo e do sexismo, ou seja, na intersecção das opressões. Desta forma, a discriminação contra as mulheres negras só seria revelada se as discriminações de gênero e de raça fossem simultaneamente consideradas em sua interseccionalidade.

O Direito do Trabalho tem um papel fundamental na promoção da dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, Constituição Federal). Da mesma maneira, normas e práticas que promovam a igualdade de oportunidades e de tratamento no acesso ao emprego, a prevenção e a punição da discriminação em processos seletivos e no ambiente de trabalho, a adoção de ações afirmativas e a garantia de igualdade salarial são essenciais para a efetivação do direito ao trabalho sem discriminações, conforme previsto na Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. 

A sentença da Corte IDH reforça a urgência de o Brasil implementar plenamente essas e outras convenções, adotando políticas públicas efetivas e mecanismos de monitoramento e fiscalização para garantir o acesso equitativo ao mercado de trabalho para grupos historicamente desfavorecidos.

A decisão da Corte não apenas expõe falhas no sistema de justiça brasileiro, mas também sinaliza um caminho para a reparação, com medidas ordenadas, que incluam indenizações, tratamento psicológico e publicações da própria sentença.  A garantia de não repetição, porém, exige uma profunda transformação cultural e institucional, com a adoção de políticas públicas robustas, capacitação dos operadores do Direito, coleta de dados desagregados por raça e gênero, e a efetiva implementação de mecanismos para promover a igualdade racial no mercado de trabalho. 

Nesse contexto, destaca-se o Protocolo Antidiscriminatório da Justiça do Trabalho, que visa auxiliar magistradas, magistrados e demais integrantes do sistema de justiça a atuar e julgar com uma perspectiva antidiscriminatória, interseccional e inclusiva. Nele são abordados temas como direitos humanos, gênero, raça, etnia, idade, deficiência e orientação sexual, oferecendo um passo a passo para a aplicação da igualdade e da não discriminação no âmbito laboral.

O protocolo busca garantir o acesso à justiça, como ordem jurídica justa, para todas as pessoas. Sua implementação está alinhada às determinações da Corte IDH e é fundamental para evitar a repetição de casos semelhantes. 

A Corte IDH enfatiza que os Estados têm uma obrigação reforçada na investigação e punição de condutas discriminatórias. As autoridades devem adotar todas as medidas necessárias para apurar os fatos, com diligência e em prazo razoável, considerando os padrões de discriminação racial estrutural e interseccional.

O Protocolo Antidiscriminatório da Justiça do Trabalho oferece ferramentas para cumprir esse dever, auxiliando na identificação e análise das interseccionalidades nos casos de discriminação. Além disso, auxilia as autoridades competentes a exercerem o controle de convencionalidade, aplicando os parâmetros fixados no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). 

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A formação é outra medida essencial para combater o racismo estrutural. Cursos como Acesso à Justiça Trabalhista e não discriminação: reflexões a partir dos estândares interamericanos, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), capacitam magistradas e magistrados a identificar e enfrentar a discriminação racial no âmbito trabalhista.

O caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil expõe a necessidade de uma resposta institucional mais eficaz contra o racismo estrutural. A decisão da Corte IDH reforça que leis antidiscriminatórias, por si só, não garantem a igualdade racial. É essencial a adoção de medidas concretas, como protocolos de investigação e capacitação contínua dos operadores do Direito, para assegurar a justiça e evitar novas violações.

Neste sentido, o Protocolo Antidiscriminatório da Justiça do Trabalho pode ser considerado um instrumento essencial para dar efetividade à decisão da Corte IDH no enfrentamento do racismo estrutural e institucional no Brasil. Sua aplicação de forma diligente e com perspectiva interseccional e inclusiva garantirá o acesso à justiça e a reparação integral de vítimas de discriminação no âmbito laboral.

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