We are Carnaval

A participação do Poder Público e a realização do Carnaval costumeiramente pautam debates às vésperas da maior festividade popular do Brasil.

No último Carnaval, notícias veiculadas no fim de fevereiro expuseram um conflito entre o município gaúcho de Canoas e a Associação das Escolas de Samba de Canoas (AESC), envolvendo o desfile de escolas de samba previsto para abril. A associação alegou que a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo teria negado a destinação de espaço público para agremiações cujo tema samba-enredo envolvesse religiões de matriz africana, comunidade negra e LGBTQIA+.

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A prefeitura, por sua vez, durante reunião realizada com representantes do Carnaval de Canoas e grupos de matriz africana, respondeu que não seria destinado dinheiro público ao Carnaval – de nenhum tema, em nenhum lugar – por causa de necessidades urgentes de investimentos na saúde, sobretudo após as grandes enchentes que assolaram o estado gaúcho em 2024. Reafirmou, contudo, seu compromisso com a liberdade de manifestação artística, cultural e religiosa no Carnaval.

A denúncia movimentou a Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba) e gerou manifestações populares, religiosas e sindicais em frente à Prefeitura. Depois da manifestação, a Câmara Municipal de Canoas realizou uma audiência pública sobre intolerância. Os fatos são objeto de investigação no Ministério Público Federal.

A cidade gaúcha de Canoas localiza-se no estado com a 2º menor população autodeclarada preta ou parda, mas com o maior percentual de adeptos de religiões afrobrasileiras.

Os ritos das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul já foram, inclusive, objeto de judicialização no Supremo Tribunal Federal, que declarou em 2019 que “é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício de animais em religiões de matriz africana” (Recurso Extraordinário 494.601).

Estava em discussão a constitucionalidade da lei do estado do Rio Grande do Sul 12.131, de julho de 2014, que introduziu dispositivo no Código Estadual de Proteção aos Animais – o qual veda diversos tratamentos considerados cruéis aos animais – para afastar a proibição no caso de sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade.

A discussão chegou ao STF em recurso interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul sob argumento de que, ao deixar de fora os cultos de outras religiões e priorizar os cultos de matriz africana, a lei estadual incorreria em inconstitucionalidade material por violar a obrigação do Estado laico, prevista no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal.

O Ministério Público Federal, por sua vez, atuante no feito como fiscal da lei, sustentou a importância do abate em ritos de religiões de matriz africana e ressaltou a necessidade de proteção contra o racismo, a discriminação e o preconceito que cercam o assunto.

A liberdade religiosa dos cultos de matriz africana teve destacada tutela da advocacia pública, com atuação da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul em defesa da constitucionalidade da Lei estadual.

Já na região Sudeste, nos maiores sambódromos do Brasil, a presença maciça de sambas-enredo com temas de religiões de matriz africana no Carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo recebeu várias manifestações contrárias e favoráveis. O movimento carnavalesco das agremiações parece comprometido a resgatar a origem negra do samba e do Carnaval. Contraditoriamente, a ausência de jurados negros na apuração e classificação das escolas de samba vencedoras foi explorada pela imprensa como ilustrativa da desigualdade no Carnaval.

O livre exercício dos cultos religiosos é assegurado como direito fundamental no inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal. O dispositivo garante a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, “na forma da lei”. Nesse sentido a lei gaúcha declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Também é direito fundamental a livre expressão da atividade artística, independentemente de censura ou licença (artigo 5º, inciso IX, da CF).

O texto constitucional consagra ainda que o Estado “garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” e “protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (artigo 215, caput e parágrafo primeiro, da CF/88).

Aliás, em 24 de abril de 2024 foi publicada a Lei 14.845, reconhecendo como manifestação da cultura nacional os blocos e as bandas de carnaval, incluindo seus desfiles, sua música, suas práticas e suas tradições, e atribuindo ao poder público a competência de garantir sua livre atividade e a realização de seus desfiles carnavalescos.

É dizer: a celebração do Carnaval e a manifestação de culturas populares afro-brasileiras – seja no Carnaval, seja em outros movimentos – são direitos fundamentais e devem ser asseguradas pelo Poder Público.

A capital gaúcha já tem essa compreensão formalizada desde 19 de junho 1990, quando editada a Lei do Município de Porto Alegre 6.619, estabelecendo o carnaval de rua de Porto Alegre, com todas as suas manifestações tradicionais, como evento oficial do município, com administração, execução e comercialização pelo Poder Público.

O compromisso tem também abrangência internacional, uma vez que o Brasil ratificou em 2013 a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (CIRDI, promulgada no Brasil pelo Decreto 10.932, de 10 de janeiro de 2022), comprometendo-se a prevenir, eliminar, proibir e punir todos os atos e manifestações de racismo e formas correlatas de intolerância, inclusive aquelas que signifiquem a negação a qualquer restrição ou limitação do uso de tradições, costumes e cultura das pessoas em atividades públicas ou privadas ou a negação a direito cultural (artigo 4º, IX e XII, da CIRDI).

O escopo legislativo traçado evidencia que é dever do Poder Público não só permitir a manifestação cultural no Carnaval, mas também assegurar seu livre exercício, viabilizar a diversidade de narrativas e a ampla e diversa participação popular. Não se trata de não atrapalhar, mas de realizar.

É certo que a desigualdade racial envolve não só as dimensões econômica, política e de representação, mas também cultural. O racismo cultural é também um discurso de ódio e alimenta a desigualdade e o estigma. Neste viés, a igualdade étnico-racial é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável previsto na Agenda 2030 para o governo brasileiro.

Uma vez estabelecidas competências ao Poder Público para assegurar o direito fundamental ao Carnaval, maior festa popular do país, exercício máximo do fomento à cultura, cabe à advocacia pública viabilizar juridicamente a política pública cultural-carnavalesca, atenta inclusive ao dever constitucional, legal e convencional do Estado brasileiro de adotar políticas especiais para assegurar o gozo ou o exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo e formas correlatas de intolerância – como o direito à livre manifestação cultural (artigos 9º e 5º da CIRDI).

É o que se espera de uma advocacia pública alçada pela Constituição Federal de 1988 como função essencial à justiça. É o que espera essa autora, mulher branca advogada pública, que escreve num sábado de Carnaval.

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